Quando durante os anos noventa nos debruçarmos sobre as metáforas de sucesso dos anos oitenta, veremos que eram aquáticas. “Só água, só água”, dir-se-á, lembrando tudo o que, em todos os sentidos do termo, flutuava. Da cotação das moedas ao fluxo das imagens televisivas (o tema da "torneira de imagens"), do regresso olímpico da natação sincronizada à promoção da "glisse"1, e, para acabar em beleza, da liquidação (a Leste) do comunismo, sobre fundo de liquefação (a Oeste) do sujeito, é a mesma mensagem que passa: o indivíduo novo, esse anti-herói das sociedades democráticas massificadas, esse "átomo flutuante esvaziado pela circulação dos modelos e por isso continuamente reciclável" (Lipovetsky) é, fundamentalmente, alguém que tem de saber nadar. Como de resto fazer de outro modo num mundo onde um Baudrillard, de longe o melhor jornalista da década, lhe descreveu freqüentemente a “ultra-fluidez”. Mas as metáforas populares (“ça baigne”2) dizem também o espanto de não ir ao fundo, e, apesar da água engolida, a euforia resignada de se manter, graças a alguns movimentos limitados, à tona de água, longe das praias e das pedras da calçada dos anos setenta. A cultura, doravante, merece a designação de “caldo”, é aí que a mercadoria flutua como uma rainha e a sopa (não apenas a Campbell de Andy Warhol) tem mais comerciantes do que nunca.Como é que o cinema terá sobrenadado neste caldo? Não muito bem. Duas “histórias”, no entanto, a de um mergulhador em apnéia apolítica e a de um jogador de pólo aquático comunista, terão marcado estes últimos anos. Uma, a do Grand Bleu (1988), terá tido um sucesso meteórico junto do que resta do grande público e a outra, a de Palombella Rossa (1989), terá permitido aos que ainda precisam de cinema contarem quantos eram3.Os dois filmes não têm nada em comum a não ser o facto de falarem de formas muito diferentes da mesma coisa. Nos dois casos, há um herói aquático e sedutor, um “banho” ao qual o primeiro escapa “afundando-se” e o segundo ocupando a superfície. Nos dois casos existe uma dificuldade de comunicar que torna o primeiro quase afásico e o segundo doente da linguagem. Do lado de Édipo, o papá está no fundo do oceano e a mamã à beira da piscina, não há mulheres nem ligação sexual e, mesmo quanto às relações com outros homens, apenas uma ligação distante com a competição. Um é imbatível, o outro é um derrotado-nato, mas cada um deles tem apenas um “outro” a dominar que é ele próprio. Estes heróis, confrontados com o que Eric Conan chamava aqui mesmo o “grau zero da alteridade”, são bem do nosso tempo.
Desde a sua saída, Le Grand Bleu incomodou os profissionais da cinefilia. Demasiado inconsistente do ponto de vista estético, o filme tornou-se esta coisa triste: um fenômeno social. Não é portanto o fenômeno que foi analisado mas sim o que revelava do seu público jovem que, radiante, o via, a ele, dez vezes4. Ora Le Grand Bleu não é, como Jean de Florette ou Camille Claudel, o lifting acadêmico de um cinema cujo prazo acabou há muito, nem um enorme sintoma cujas falhas estéticas obrigam a abandoná-lo aos sociólogos. Se deu a tal ponto a sensação de “acertar” foi precisamente porque tinha qualquer coisa a ver com a estética. A única questão é saber se se trata ainda da do cinema. Voltemos à água e mergulhemos mais à frente. O que é desarmante em Le Grand Bleu é a forma como Besson parece contentar-se com o look que o mar há muito tempo tem em todo e qualquer spot publicitário (lembremo-nos do aterrorizador Ultra-Brite). Menos por inaptidão a filmá-lo do que porque o mar, para ele, é isso: um “grande azul” de síntese no qual se “hidrodesliza” sem fazer ondas. Enquanto que Beneix tem ainda um super-ego de artista que o faz sofrer imenso, Besson já utiliza a roupagem do cinema para produzir esses “seres de síntese” que são os indivíduos pós-modernos. É, neste sentido, o primeiro verdadeiro cineasta pós-publicitário, aquele que herda em completa inocência todos os “conceitos visuais” da publicidade e que, por isso, já não sofre com não ser “pessoal” e com alinhar apenas “lugares comuns”. É verdade que rodar um filme continua a ser uma aventura e um desafio desportivos, mas já não é uma aventura do olhar. A água é lisa e o seu fundo está vazio: já não há nada para ver5.O que é que nos diz a publicidade? Que as coisas já foram olhadas, que os olhares são arquivados e que o mundo é já visto. Besson sabe de uma vez por todas com que se parece um mar, um mergulhador, uma mulher, um golfinho, um italiano (ou mesmo uns peruanos). Tal como sabe intuitivamente com que se parecerá o “herói” do individualismo democrático massificado: com um corpo sem órgãos, fora do sexo, fora da linguagem, fora do desejo, programado para efetuar um único movimento. Com um robô sedutor, um autômato auto-legitimado. Por mais que custe aos media, Le Grand Bleu não representa forçosamente uma enésima “nova vaga” na história do cinema francês. É perfeitamente possível imaginar que o parque de salas de cinema só possa ser “salvo” do naufrágio por produtos audiovisuais como este (nem filmes de autor nem filmes de produtor, mas filmes de “promautores”), situados a meio-caminho entre a Disneylândia americana e os “sons et lumières” da cultura européia reciclada. O erro seria pensar que estes produtos não têm conteúdo nem estética. O interesse do Grand Bleu é, pelo contrário, fazer-nos admitir que a vizinhança, durante muito tempo estimulante ainda que turva, entre “cinema” e “publicidade” não tem já talvez razão de ser. Porque o cinema é demasiado fraco e a publicidade demasiado forte. O início dos anos oitenta terá visto a legitimação cultural e depois estética da publicidade. Mas no fim desta mesma década, ter-se-á começado a assistir à sua aplicação propagandista. São os cânones publicitários que servem doravante para tratar os “grandes temas”, quer dizer, para declarar guerra ao Mal (do clip antidroga ao negócio da telecaridade) e a unificar o público do lado do “lado bom”. E a fabricar, para o fazer, o “corpo” de síntese dos cavaleiros brancos.Le Grand Bleu (com uma candura muitas vezes tocante que o astuto Ours [O Urso] de facto não tem) deriva desta fabricação. O indivíduo contemporâneo já não é pensável através das velhas categorias de “pessoa” (pós-guerra, neo-realismo) ou de “sujeito” (pós-1968, novas vagas), exige, também ele, um mito fundador e é lógico que este, por seu turno, tenha algo a ver com a água. É do fundo do oceano que, novamente, surgiu o elo que faltava. Pequeno celacanto botticelliano, o mergulhador órfão tem como pai essa coisa simpaticamente lisa que é o golfinho. Neste aspecto é o contemporâneo exato do actual vitalismo ecológico. Se os indivíduos animais têm, também eles, “direitos”, têm certamente o de serem mitologicamente pais dos indivíduos humanos.
É com tudo isto na cabeça que é preciso repetir, com a última energia, que Palombella Rossa é um grande filme e Nanni Moretti o mais precioso dos cineastas. Palombella Rossa é, num certo sentido, a resposta do cinema ao audiovisual. Resposta minoritária porque o “cinema” passou doravante para a minoria (ativa, espera-se). O filme de Besson “acerta” porque propõe a um vasto público o espetáculo de um indivíduo autônomo, ao passo que o de Moretti “visa com verdade” porque fala a um público modesto de um indivíduo plural, estorvante e estorvado, jogador e jogado, falante e falado, insuportavelmente ligado aos outros.Voltemos então à água e mergulhemos de novo. Esta água já não mitológica mas social, a água sobrepovoada de uma piscina onde se ajusta ao mesmo tempo um grande número de contas: com a infância, com a outra equipa, com a política, com as palavras, com o jornalismo, com o cinema, com a memória. Onde a fundação mitológica exigia um efeito de profundidade, o laço social é agora um efeito de superfícies e, cada vez mais, de interfaces. É, dos dois, o filme “superficial” que é mais profundo porque vivemos num mundo onde este todo que é privado aflora à superfície e se torna “público” (a publicidade é precisamente o agente estético e econômico deste “afloramento”).É verdade que Moretti pertence à família dos cômicos que – de Chaplin a Jerry Lewis – tomam tudo (e tudo é demais) a “seu cargo”, mas pertence também àquela outra tradição que – de Keaton a Tati – renunciou a salvar o mundo, pela boa razão que o mundo, para surpresa geral, não se “afunda” (flutua). A água de Palombella Rossa não é nem a grande coisa amniótica de que se sai como de uma câmara de descompressão, simpático e regenerado, nem esse elemento gag onde se cai facilmente com um grande pluf: é o habitat doravante natural das sociedades desreguladas, das economias e das atenções flutuantes, dos interfaces cintilantes e dos encontros aleatórios (o “drible” como figura do laço social, como arte de apagar o adversário).No seu filme precedente (La Messa è finita), Moretti filmava um rapaz muito novo que não se cansava de atravessar a piscina de um lado ao outro: não o filho do golfinho que regressa do fundo matricial mas o pequeno peixe (pescellino) que, custe embora a alguns, “se masturba”6 enquanto desliza, à força de idas e vindas, nos interstícios do social. A cena era sublime porque, ele próprio nadador, Moretti filmava como David Hockney soube pintar: a materialidade da água, o movimento reconquistado e a liberdade da cria humana (que não tem nada a ver com a autonomia do mergulhador publicitário). A cena “respirava”, estava nos antípodas do que caracteriza o mergulho em apnéia: reter o fôlego, não respirar mais.“É aqui que estamos”, parece dizer Moretti. O cinema está aqui, apetece acrescentar. Não irá mais além. Custar-lhe-á. É hoje o nosso único fio condutor e a nossa única memória neste banho pós-moderno onde, à falta de combatentes, a ideia democrática triunfa sob os nossos olhos (“cosa significa oggi essere communista?”), onde rosna a guerra econômica, a aplicação das leis de mercado a todas as esferas da atividade humana e a difícil “subjetivação” de um indivíduo multifacetado, certamente enganador mas talvez mais “forte”7. Mais forte porque poroso, móvel e deslizante? Da água bessoniana surge um mutante demasiado liso e um autômato demasiado perfeito para não inquietar. Na água morettiana é toda uma população (italiana, européia) que se agita entre a nostalgia da História e a fuga em frente. Cada um em suspenso, à imagem do pólo aquático, esse desporto onde se nada menos do que se flutua. Porque flutuar ainda é trabalho. Serge Daney.
Libération, 29 de Dezembro de 1989.
Texto recolhido em Devant la recrudescence des vols de sacs à main, — cinéma, télévision, information (1988-1991), Lyon, Aléas Editeur, 1991, pp. 161-165.
Notas
1 Denominação reunindo esportes que implicam deslizar, como o surf, o ski, o snowboard...
(NdT)2 Está tudo a correr bem.
(NdT)3 Estranho sentimento, à saída do filme, de um regresso de cinefilia grupal, “à antiga”. Sentimo-nos de novo prontos a zangarmo-nos com o nosso melhor amigo caso ele não gostasse de Palombella Rossa. A ponto de passar por cima dos defeitos que o filme tem: um certo voluntarismo teórico, um certo desejo asfixiante de dizer tudo.
4 O psicanalista Jean-Jacques Moskowitz confiava ao autor que o seu jovem filho não parava de ver e rever o filme para o compreender melhor. Mas o que é que há de tão difícil de compreender nesta história tão simples? A resposta pode ser esta: Le Grand Bleu diz que a morte existe. Di-lo a crianças que não confundem as gesticulações dos mortos na televisão ou dos filmes gore com a morte, a verdadeira, aquela cujo espectáculo lhes é cada vez mais cuidadosamente escondido. Do mesmo modo, Sociedade dos Poetas Mortos, outro filme-culto para os adolescentes, começa com uma cena onde é significado aos alunos que morrerão um dia.
5 Isto ainda vai mais longe. No seu terceiro filme, Nikita, Besson inventa uma curiosa personagem, interpretada por Jean Réno e chamada “o Limpador”. A função do Limpador é fazer de modo a que não sobre rigorosamente nenhum rasto material de uma operação de espionagem que acabe mal. Ele atravessa portanto o filme como um exaltado, com o seu banho de ácido debaixo do braço. Daí os gags anatômicos bastante divertidos. Podemos ver no Limpador um herdeiro dos “Senhores Limpinhos” da publicidade. E, ao mesmo tempo, podemos ver nesta necessidade de “criar vazio” uma vontade bem firme de não herdar nada. Nem do mundo, nem do cinema.
6 Alusão furiosa à campanha publicitária que, na mesma altura, louvava a nova fórmula dos Cahiers du Cinéma: “já não nos masturbamos”.
7 É evidentemente a questão central da época e nada seria mais temerário do que responder aqui. O autor sente bem que faz parte daqueles a quem a porosidade do social pós-industrial mergulha numa certa soturnidade. Não é o único, mas terá por isso razão? Os apoiantes do “pensamento fraco” (do pensiero debole segundo Vattimo) não terão razão? A circulação dos significantes, a flutuação dos significados, o apagamento dos referentes não permitirão a uma sociedade de indivíduos resistir mais eficazmente a tudo o que a ameaça, fosse embora ao preço de uma certa mediocridade e de uma desqualificação progressiva do sagrado (pela secularização), do trágico (pelo “segundo grau”), da arte (pelo mercado da arte) ou mesmo da cultura (pelo turismo)? Os “roubos de malas de mão” serão um mal menor? E o “fim da história” não será apenas o começo das aventuras do “mal menor”? Vertiginoso.
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