sexta-feira, 15 de maio de 2009

Du coté de Racine

Em uma época na qual qualquer um proclama a importância de qualquer coisa, é temerário tentar exprimir o que enxergamos na obra de um cineasta há dois anos atrás desconhecido, ainda muito pouco considerado hoje em dia e que apresenta as características mais passíveis de excitar o desprezo grosseiro dos pensadores de primeiro grau. Chamo de pensadores de primeiro grau a inumerável corte de intelectuais sem gosto, sem julgamento e sem gênio que lotam os cafés, revistas e certos cineclubes ,ébrios de cultura e política, incapazes de dominar um mundo que eles apreendem através de filtros teóricos com colorações e deformações estranhamente variadas , incapazes por isso mesmo de sentir em uma obra a vida ou a ausência de vida. Eles pensam “em primeiro grau” porque apenas se importam com as aparências da obra, a ambição de seus temas, a complicação de suas formas, suas referências culturais, a tudo o que constitui este envelope mais ou menos ricamente ornado que não pensam em abrir.
Estas banais constatações devem ser atualmente repetidas, uma vez que os mal-entendidos não cessam, já que, depois de Fellini, depois de Bergman, agora é Antonioni ou Resnais que precisamos suportar. Nossos infelizes contemporâneos confundem tenazmente o estetismo e a beleza, o tédio e a gravidade, a inteligência e os professores.
Mas assim se deu em todas as épocas, e este preâmbulo teve apenas por objeto situar Cottafavi em seu verdadeiro posto de meteorito, “sereno bloco aqui decaído por um obscuro desastre”. Não um metteur em scéne a mais, entregue como pasto ao esnobismo devorador das multidões, não um “gênio” a mais, descoberto depois de mil outros por alguns adolescentes excitados, mas um dos raros cineastas que merecem que se tome a palavra , a fim de assinalar sua importância a alguns espíritos fraternais.
Se é preciso insistir sobre a possibilidade de um mal-entendido a respeito de Cottafavi, é por estima a uma obra que de forma alguma se inicia com Revolta dos gladiadores, , que não tem estritamente nenhuma ligação, a não ser por necessidades de roteiro, com problemas de ordem histórico-mitológica romana, ao contrário portanto do que se vê evocado nos artigos elogiosos, assim como antes quiseram discernir um auto-retrato no M de Losey. A verdade é que o melhor desta obra se situa antes do período cinemascope, em filmes em preto e branco, como Milady e os mosqueteiros, O carrasco de Veneza e Fille d’amour. Centrados ao extremo sobre dois ou 3 personagens, eles se estabelecem em um agudo registro passional, mais conforme às preocupações do metteur em scéne, como aliás se depreende de suas declarações, registro cuja existência se explica aqui pela relativa liberdade que tais produções com orçamento limitado e fraca difusão paradoxalmente permitiram.
É por isso que o entusiasmo de certos jovens diletantes pelo que seu representante mais dotado nomeia de forma galhofeira como “neo-mitologismo” aparece-nos como menos imprudente do que parece. É preciso ouvir Cottafavi falar, com a ironia aveludada que estende em torno de si como um véu, destas grandes máquinas ruidosas e coloridas que ele constrói, segundo ele, no espírito de desenhos animados para as crianças ( ele fala isso a propósito de Hércules). Ele também se mostra surpreso ao ouvir os elogios ou as críticas endereçadas a um “marivaudage’ antigo intitulado Les Vierges de Rome, filme do qual se diz responsável por apenas alguns planos cujo número se pode contar nos dedos.

Vittorio ainda não deu o melhor de si mesmo, embora seja necessário rever Milady, talvez inteiramente admirável. Mas este filme desertou de nossas telas há 2 anos, nos impedindo portanto de verificar um julgamento mais precoce.Uma mise en scéne espantosa se encontrava definida, preciosa e paroxística , que não devia nada a ninguém, sobretudo nada ao neo-realismo, então triunfante. Um cinema de paixão, de torturas, de terror e de amor se inventava diante de nossos olhos maravilhados, em gestos raros, em olhares de pedra, de gelo e de metal, em silêncios ensurdecedores. Podemos reencontrar em seguida, principalmente no Carrasco de Veneza, e em um grau menor na Revolta dos gladiadores e Legiões de Cleópatra, apesar do interesse intermitente que o autor portava a estes dois filmes, os mesmos reflexos de uma sensibilidade superaguda em torno de certas jovens mulheres, tratadas com extrema crueldade, flageladas, marcadas a ferro e fogo, devoradas pelas feras, esmagadas, mordidas pelas serpentes, e isto a tal ponto que não se poderia falar impunemente em coincidências, pois o verdadeiro tema destes filmes reside efetivamente no sofrimento da carne, sua angústia e sua morte.
A cada plano uma tragédia de ordem física se instaura, um mondo radioso torna-se uma potência eriçada de grilhões onde a criatura aprisionada se debate, transida de horror. Mas a tragédia é entrecortada de momentos de felicidade, que talvez fosse melhor qualificar de alegria, ou mais fisicamente ainda de prazer , prazer tão exacerbado quanto a dor que ele suprime, de tal forma é verdade que esta sensibilidade só existe como suplicante ou exultante, em todos os casos violentamente eletrizada. Eu vejo apenas nos filmes de Cottafavi este caráter ensolarado da fotografia, que determina uma crueza de negros e brancos, brancos quase calcários , algo que convém tão perfeitamente às cenas nas folhagens ou à beira da água.
Aliás, crueza que indica na técnica de Cottafavi desta época um amadorismo menos recomendável, mesmo se certos resultados sejam para nós fonte de encantamento, pois não admitimos o principio em voga, desde alguns meses, segundo o qual uma câmera que treme indica forçosamente genialidade , ou uma fotografia grisalha de atualidades possua mais estilo que as iluminações precisas que proporcionam a vida e o brilho.
Mas Cottafavi, dizíamos, inventa o cinema: é preciso lhe perdoar estes ‘maladresses” ( mal jeito, falta de jeito) de autodidata, preciosismos juvenis, enquadramentos desajeitados, découpage às vezes “travada”- o motor desengata, e parte novamente. Recordemo-nos que Fritz Lang começou a dominar sua mise en scéne aos cinqüenta anos de idade e vinte de carreira. O que conta aqui são algumas penetrações mais profundas, para além da malha dos hábitos e a máscara vermelha do Príncipe.

No início de Milady, o rosto da heroína, quando escuta o galope dos cavalos, se petrifica, enquanto ela murmura: “Os Mosqueteiros”... No Carrasco de Veneza, um duque se bate em duelo. Acaba de ser ferido. Ele se encontra fora de campo, mas torna, a figura e o corpo estupefatos, imerso na morte; ele entra marchando, como se descobrisse com um espanto imenso seu próprio fim, e pouco e a pouco é invadido por este, até finalmente tombar. Na Fiamma che non se spegne, anda não distribuído na França, uma cena nos mostra uma jovem que acaba de saber que seu marido foi morto. Ela compreende a notícia através de uma troca de olhares, pelo peso do silêncio que a acolhe quando entra em casa. Retira-se para seu quarto. Nós não vemos imediatamente seu rosto, mas ela se volta para a câmera com lágrimas que marejam seus olhos. Assistimos à invasão lenta e inelutável de uma alma pela dor , filmada face a face neste quarto, nesta solidão absoluta, como se, tendo penetrado aí por efração, contemplássemos com horror sagrado aquilo que ninguém deveria contemplar.
Estes exemplos ilustram uma dimensão capital da mise em scéne de Cottafavi, a noção de “irrupção” ( envahissement), que domina os instantes de crise. É o único cineasta que filma sistematicamente a instalação da crise, ao invés de passar diretamente à sua expressão “já instalada”. Toda atenção é fixada nesta passagem entre a calmaria e a tempestade, segundo infinito onde o ser é surpreendido em uma íntima transformação, que o desapossa de sua liberdade e de sua consciência lúcida, orienta-o totalmente em direção a um único fim e, de alguma forma, mineraliza-o em sua paixão.É esta petrificação do ser que a câmera descobre , dando-nos a vertiginosa sensação de violar um segredo, de penetrar em uma zona interdita, como o que se pinta no rosto de uma mulher no instante em que o prazer a invade e absorve.
Da mesma forma, nas cenas decorativas, no sentido nobre do termo, onde o sublime não é de natureza íntima mas espetacular e coletiva, utilizando, no limite de suas possibilidades, a simetria dos gestos e do cenário, que conduz à uma liturgia da preparação: preparativos de revolta, de execução capital, estes eventos são precedidos de uma “mise en place” do sistema , de que eles decorrerão como uma consequência geométrica; mise en place que retém a quase totalidade da atenção. Assim, no final de Fiamma, um soldado vai ser fuzilado. Toda a sequência é fundada sobre uma geometria dos deslocamentos dos soldados em relação a volumes regulares, falésias brancas, caminhões estacionados. À “irrupção” ( envahissement) interior corresponde o mesmo movimento exterior; o mundo toma uma única significação, que o preenche pouco a pouco até o transbordamento, até o desencadeamento do evento narrado.
Este é o mecanismo da tragédia. Estamos muito distantes da démarche fútil do “behaviorismo”, onde todos os gestos e eventos se equalizam, diante de uma exploração maníaca do tempo e do espaço. Se quisermos bem considerar que esta tragédia se ordena em torno do amor, do esfacelamento ( déchirement) secreto das paixões, em torno de certos rostos de mulheres, em um mundo de príncipes, vamos ser obrigados a reconhecer que Cottafavi está do lado de Racine , o que nos parecerá singular, paradoxal e exemplar.
Michel Mourlet
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Apologia da violência.

A violência é um tema maior da estética. Ultrapassada ou presente, latente ou virulenta, ela reside no seio de toda criação, mesmo enquanto primeiro momento de uma démarche que a negou. A negação da violência em uma obra de paz compromete esta obra nas dimensões mais secretas de seu ser, nos confusos limbos de sua gestação, mas também no exercício desta força que conforma a matéria à forma com um furor obstinado. A violência é uma “descompressão”: resultante de uma tensão entre homem e mundo, ela explode no ponto extremo desta tensão, à semelhança de um abscesso que vaza. É preciso passar por ela, se quisermos encontrar algum repouso. Assim, podemos dizer que toda obra a contém ou no mínimo a postula, se entendermos a arte como um caminho em direção ao apaziguamento, por meio do conhecimento dos termos do conflito, e o poder de resolução concedido por este saber.

Às vezes, falamos de cinema por aqui. É a arte por eleição da violência, já que vem ao mundo nos gestos do homem, no momento em que a força acumulada extravasa, rompe os diques, se impulsiona em jatos crescentes sobre seu obstáculo. Este momento, que as outras artes só podem sugerir ou simular, a câmera se apossa de forma natural, e empunha a tocha que a literatura lhe estende. Stendhal é superior a Losey, até o instante em que o tema de sua descrição efetua a passagem do ato intencional, da convulsão mental à sua encarnação no universo dos corpos e dos objetos. Neste preciso momento, Losey torna-se incomensuravelmente superior a Stendhal.

Exaltação do ator, a mise en scéne vai encontrar na violência uma constante ocasião de beleza. O herói destroça os malefícios, introduz em uma ordem nefasta sua desordem pessoal, que consiste na busca de uma harmonia mais real e superior. Assim, se encontra definido um tipo de herói cujos modelos são Charlton Heston, Fernando Lamas, Robert Wagner e Jack Palance. Herói brutal e nobre, elegante e viril, concilia a força à beleza ( ou, para Palance, uma feiúra admirável de grande felino), e representa a perfeição de uma raça senhorial, feita para vencer e pressentir ou conhecer a todos os êxtases.Exercício de violência, conquista e de orgulho, a mise en scéne, em sua essência mais pura, tende ao que certas pessoas qualificam de “fascismo”, na medida em que este termo , por uma confusão sem dúvida interesseira, recobre uma concepção nietzcheana da moral sincera, oposta à consciência dos idealistas, dos fariseus e dos escravos. Recusar esta busca de uma ordem natural, esta alegria do gesto eficaz, este brilho do olhar depois da vitória, é condenar-se a nada captar de uma arte que consiste na busca da felicidade a través do drama dos corpos. É necessária a simplicidade de certos teólogos para relacionar sua significação a uma entidade política que substituiu para eles o Diabo , e que eles vêem em todos os lugares, com seu pote de tinta preta. 1

Charlton Heston é um axioma. Apenas ele já constitui uma tragédia, e sua presença num filme é suficiente para provocar a beleza. A violência contida testemunhada pela sombria fosforescência de seus olhos, o perfil de águia, o arco orgulhoso das sobrancelhas, a saliência dos pômulos, a curva amarga e dura da boca, a potência fabulosa do torso, eis o que nos é dado, algo que o pior dos metteurs en scéne não consegue envilecer. É neste sentido que podemos dizer que Heston , unicamente por sua existência, independnete de todo e qualquer filme, nos dá do cinema uma definição ais justa que filmes como Hiroshima mon amour ou Cidadão Kane, cuja estética ignora u recusa Charlton Heston. Por ele, a mise en scéne pode aceder aos confrontos mais intensos, e resolvê-los pelo desprezo de um deus prisioneiro, agitado por vagalhões surdos. Nisto, Heston é um herói mais languiano que walshiano.

Pois o cinema nos propõe diversos tipos de violência. No nível mais baixo, a violência de Kazan, frenesi de guignols alcoólicos cuja expressão ideal é atingida pelo inominável Karl Maden. É o império do falso, do artifício, das mais derrisórias crispações. O infantilismo do pensamento rivaliza com o grotesco das formas, e não há nenhum conhecimento real do ator nesses excessos gratuitos, nestas experiências de esteta neurótico, inscritas sobre marionetes manipuladas por fios, que fazemos gritar ao pressionar seus ventres.
A violência de Welles é mais sincera, ela parece mesmo puramente autobiográfica, mas é curta, miserável, “em impasse”, sem ressonâncias para além do tohu-bohu sonoro onde ela se compraz. É a reação da criança que chuta o móvel onde se feriu: a cena onde o cidadão Kane se lança a depredações do mobiliário é significativa deste estado de espírito. Cego por seu próprio personagem, Welles só sabe destroçar figurinos de cartolina que ele desfila diante de nós, enquanto ruge nos alto-falantes.
Deixemos de lado a violência em Buñuel, em quem toda expressão, todo élan passional se encontram a serviço de algumas idéias de que ele não conseguiu se desembaraçar desde a idade ingrata ( Quantos de nós não descobriram o cinema, aos 17 ou 18 anos, graças a ele, a Welles? Mas nossa ingratidão a nós mesmos, esta não tem limites).

Uma escala acima, Nicholas Ray oferece da violência uma imagem mais carnal e ampla, mais verdadeira, infelizmente desenfreada: não a pressão formidável de uma massa d’água que sua liberação transformará em correnteza, mas a inundação permanente, o terreno lamacento, James Mason constantemente entre as lágrimas e as tesouras. Há alguns anos, um crítico dizia que, em Ray “a violência ‘inflama’ diretamente, é uma espécie de aura que acompanha cada gesto do herói; é mais uma violência que canta que uma violência que mata”. Este crítico não se apercebeu que procedia, com palavras que julgava lisonjeiras, ao julgamento sem apelação de uma mise en scéne desvitalizada por perpétuos transbordamentos. Toda intensidade real se torna impossível, a paixão se esgarça em intermináveis farrapos.

É com Walsh que encontramos, pela primeira vez, a verdadeira beleza da violência, centelha à passagem do herói, manifestação de seu poder, sua nobreza, em um instante postos em questão. Esta violência clara e retilínea não designa sua derrota, mas traça um caminho triunfal. Violência da guerra ou do conquistador solitário, exprime a coragem de viver, o reconhecimento de um confronto dos homens com os elementos, do homem com os outros homens, e o desencadeamento da força para a vitória. A obra de Walsh é a ilustração do aforismo de Zarathoustra: “O homem é feito para a guerra, a mulher para o repouso do guerreiro, e o resto é loucura”. À ilustração desta fórmula visam todos os honestos filmes de aventuras e de combates, mas unicamente os de Walsh se alçam de forma plena aos níveis da epopéia ou da tragédia.
O universo asfixiado de Fritz Lang é particularmente propício à eclosão e manutenção da violência, mas em um sentido muito diferente. Contida, refreada, presente e dissimulada em todos pos gestos e todos os olhares; ao invés de se diluir por rarefação, como em Ray, pelo contrário, ela se recolhe e se concentra, como o salto nos músculos do tigre. Se a violência de Walsh é solar, a de Lang é subterrânea , e sua dimensão trágica mais constante. Ela apenas se libera no terror; o mundo em torno desta desaba e enterra o herói.

Mas o cineasta que melhor soube mostrar e penetrar na violência foi Losey, é claro; Losey cujo discípulo incompreensível , Roberty Aldrich, delineia com ênfase a caricatura. Seria mais conveniente aproximar de Losey, ao invés do diretor de The big knife, certos espantosos reflexos de ator em Ida Lupino ou Mizoguchi. A abordagem loseyana da violência se situa no nível mais íntimo da carne; ela capta a palpitação frenética do ser no momento em que este se exaspera contra os obstáculos, a cada enervação amplificada do sangue. Ao apreendê-la, ela capta também a calmaria, a desintumescência. Esta violência abre uma brecha em direção à paz e anuncia estranhos excessos de felicidade.
Michel Mourlet

Tradução: Luiz Soares Júnior.



1. Referência do autor a Martinho Lutero, que segundo consta, dizia que o Diabo lhe aparecia e lhe atirava um tinteiro à cabeça.

A Revolta dos Gladiadores

Certo, um filme de época não é algo sério, necessariamente. Além do mais, este aqui está cheio de erros históricos. Por exemplo, Tito Lívio nos fala de um cão fidelíssimo, pertencente ao procônsul da Armênia, que atendia pelo nome de Medorus. Onde está este cão? Enfim, o roteiro é infantil, e só vejo o argumento da Flauta encantada de Mozart para rivalizar com ele em termos de ingenuidade e inverossimilhanças.
Vittorio Cottafavi é um jovem metteur em scéne italiano que realizou uma quinzena de filmes com títulos proibitivos, completamente desconhecidos dos amateurs de cinema. Pudemos ver na França: Femmes libres, Fille d’amour, L’’affranchi, Repris de Justice, Milady e os Mosqueteiros, O Carrasco de Veneza, Le Prince au masque rouge e esta Revolta dos gladiadores, co-produções dubladas, com um aspecto miseravelmente “alimentar”, distribuídas- com exceção da última- entre Belleville e a Porte Saint Martin. Todos estes filmes são interessantes, quatro ou cinco contém belezas às quais nenhum outro cineasta europeu pode aspirar emular, duas são obras-primas: Milady e Femmes libres.

Sem dúvida, Revolta dos gladiadores não constitui uma excelente introdução ao conhecimento de Cottafavi. A mise en place, até agora extremamente íntima, fundada sobre as possibilidades maiores de surpresa, de “surgimento” e de seleção, oferecidas pela tela normal, tem tendência a se diluir nesta primeira confrontação com o formato Cinémascope, provocando um certo relaxamento geral, e tempos longos desnecessários. No entanto, há ainda muitos planos tensos, “esfolados vivos”, agudos e ferinos como diamantes, para servir de suporte e referência a algumas proposições sobre o gênio de seu autor. Deixando seus compatriotas tateando nas brumas neo-realistas, este, à semelhança de Preminger e Mizoguchi, cinzela seu delírio em filmes preciosos, paroxísticos, oscilando entre os dois pólos de sedução, do amor e da morte, fantasmas maiores que se resolvem em uma sublimação dos gestos. Que me importam os pretextos, se os eventos se dissolvem na magnificência da expressão? Mais que qualquer outro, Cottafavi se liga aqui à beleza dos rostos, beleza crucificada, magnificada nos suplícios, nostalgia de um universo de príncipes onde apenas os jogos de príncipes são permitidos. Máscaras, venenos, flagelações, palácios, pesados cortinados, punhais (e seus equivalentes modernos) só conhecem duas conclusões possíveis , esta “lentidão “ ( ralentissement) súbito do homem que estaca diante de sua própria morte, os olhos perdidos, janelas sem fundo, ainda aqui e já fora do mundo, e nos oferecendo, em um último estilhaçamento, o segredo de uma divindade dolorosa, ou então esta cintilação de dois corpos enfim reunidos, grupo esculpido no instante e, no entanto, de dimensão eterna. Assim se encontra ilustrada a mise en scéne que amamos , seqüência de impulsos e de repousos, espelhamentos, gritos, jogo gratuitos e “fora de propósito” ( hors de propos) que nos falam do essencial.
Michel Mourlet
Tradução: Luiz Soares Júnior

A Terra do Milagre. Rohmer sobre Viagem a Itália

O termo "neo-realismo" se tornou tão discutível que eu hesitaria em usá-lo em relação a Viagem à Itália se o próprio Rossellini não o tivesse de fato invocado. Ele vê neste filme uma expressão mais pura e profunda de um “neo-realismo” que em qualquer um de seus filmes anteriores. Ao menos esse foi seu comentário para um membro da platéia na estréia em Paris. Pode-se certamente falar sobre evolução no trabalho do autor de Roma, Cidade Aberta. Se é verdade que seus filmes mais recentes só podem em parte ser colocados junto com todas as outras produções italianas – incluindo os filmes de Fellini, que é seu colaborador mais duradouro e o mais próximo a ele em idéias – não é verdade que ele negou seus amores antigos: ele somente se contentou em sair na dianteira, condenando seus rivais por estarem a salvo em seus lugares. Com cada tentativa ele se exibe (goes through the roof) com tamanha diligência que nós não temos nem tempo para ajustar nossos instrumentos e avaliar sua performance.

O público reage de um jeito particular com o que é novo. Observemos novamente os julgamentos nas primeiras exibições dos impressionistas ou do fauvismo, a primeira performance da Sagração da Primavera: ouvimos exclamações do tipo “Ele não sabe pintar”, “Eu posso fazer algo tão bom quanto”, “Não é pintura, não é música, não é cinema”. Assim como os estudantes de arte do último século forjaram uma convenção da "pose", então emergiu num salão sombrio uma convenção do natural. Tão deliberada quanto a recusa de Manet ao chiaroscuro, o autor de Viagem à Itália despreza a escolha mais fácil - de uma linguagem cinematográfica coberta com cinqüenta anos de uso. Antes de Rossellini, até o mais inspirado e original dos cineastas se sentiria obrigado a usar o legado de seus precursores. Ele estava familiarizado com todos os caminhos que, por algum tipo de reflexo condicionado, poderia provocar emoções particulares em uma platéia – encantada com o menor gesto ou movimento; e ele jogaria com esses reflexos mas não tentaria rompê-los. Ele criaria arte, isto é, um trabalho pessoal, mas feito de uma substância cinematográfica compartilhada. Para Rossellini essa substância não existe. Seus atores não se comportam como os atores de outros filmes, exceto no sentido em que seus gestos e atitudes são comuns a todos os seres humanos; no entanto, eles nos encorajam a olhar para outra coisa por detrás deste comportamento, algo além do que nosso papel natural de espectadores nos induziria a reconhecer. A velha relação entre signo e idéia é rompida: em seu lugar surge uma relação nova e desconcertante.

Do mesmo modo é a alta e novíssima idéia de realismo que descobrimos aqui. Não foi há muito que elogiei Stromboli ou Europa ‘51 por seus aspectos documentais. Mas em sua construção, Viagem à Itália não está mais perto do documentário do que do melodrama ou do romance de ficção. Certamente nenhuma câmera de documentário poderia ter gravado a experiência deste casal inglês desta maneira, ou, mais adequadamente, com este espírito. Tendo em mente que até a cena mais direta e menos planejada é sempre inscrita na convenção da edição, continuidade e seleção, e tal convenção é denunciada pelo diretor com a mesma virulência demonstrada em seu ataque ao suspense. Sua direção de atores é exata, imperiosa e ainda assim não é totalmente "atuada". A história é solta, livre, cheia de fraturas, no entanto, nada poderia estar mais distante do amador. Confesso minha incapacidade em definir adequadamente os méritos de um estilo tão novo que desafia toda definição. Até se pensarmos somente em seus enquadramentos e seus movimentos de câmera (onde até os maiores diretores não alcançam inovações há muito tempo), este filme é diferente de qualquer outro. Através de sua magia somente, ele consegue dotar a tela com aquela terceira dimensão tão perseguida nos últimos três anos pelos melhores técnicos nos dois lados do Atlântico.

Estou ciente da possível objeção: "Não atribua a uma habilidade suprema o que só pode ser o resultado acidental do descuido". Certamente não! Não se produz literatura tirando palavras da cartola, não se cria uma peça verdadeira de cinema tão original como esta vagando pela estrada com uma câmera de 8mm em mãos. É estranho como tudo em que a regra falta é como uma escrita automática. As novas e maiores erupções só podem vir da fenda mais estreita e menos perceptível. Com uma simples baforada de seu cigarro no declive do Vesúvio, a heroína desata uma abundante nuvem de fumaça - é assim que Rossellini, mestre da magia, mais do que doma sua matéria. Ele conta com esta cumplicidade como um músico tocando numa caverna usaria o eco a seu favor.

Confesso que enquanto assistia ao filme meus pensamentos se desligaram pra direções distantes daqueles da própria trama, como alguém que vai ao cinema pra matar o tempo entre compromissos e, com a mente mais em suas próprias preocupações do que naquelas do filme, é surpreendido ao se pegar tentando olhar o horário num relógio que um dos atores está usando. Este tipo de ilusão certamente não é aquela que um ator teria orgulho em criar. Eu admito que fui mergulhado em todos os tipos de absurdos fluxos de consciência: o modelo da jaqueta de George Sanders, quantos anos ele deve ter, o quanto ele envelheceu desde Rebecca ou A Malvada, o estilo de cabelo de Ingrid Bergman, pra não mencionar a forma dos crânios nas catacumbas ou os novos métodos arqueológicos – algo que não seria permitido numa trama com o tempo mais sustentado. Mas notei que até mesmo quando minha imaginação parecia vagar, de tempo em tempo ela cruelmente me forçava de volta à própria matéria do filme. Neste filme em que tudo parece acidental, tudo, até a mais maluca digressão mental, é parte essencial dele. Este argumento não será levado além do necessário. Diante de um trabalho desta estatura uma declaração de circunstâncias atenuantes é inapropriada.

Viagem à Itália é a história da separação de um casal e sua subseqüente reconciliação. Um tema dramático dentro dos padrões, e também o tema de Aurora. Rossellini e Murnau são os únicos cineastas que fizeram da Natureza o elemento ativo, o elemento principal da história. Ambos, devido à sua rejeição da facilidade do estilo psicológico e seu desprezo pela narração incompleta (understatement) ou pela alusão, tiveram o extraordinário privilégio de nos conduzir para o interior da região mais secreta da alma. Secreta? Deixem fazer-nos entender: não nas zonas problemáticas da libido, mas na vasta e iluminada consciência. Por eles se recusarem a iluminar seus mecanismos (mechanics of choice), ambos os filmes protegem sua liberdade tanto melhor. Assim a alma nos é entregue em sua própria origem e não encontra objetivo mais digno que o reconhecimento da ordem no mundo. Ambos os filmes são dramas com três personagens de fato; o terceiro é Deus. Mas Deus não tem a mesma face em ambos. No primeiro uma "harmonia pré-ordenada" governa de uma vez e ao mesmo tempo os movimentos da alma e as vicissitudes do cosmo: a natureza e o coração do homem batem com a mesma pulsação. O segundo vai além desta ordem – e sua magnificência pode revelar-se igualmente - descobrindo aquela suprema desordem que é conhecida como milagre.

Durante sua entrevista aos Cahiers no ano passado, Rossellini falou a respeito do "senso de vida eterna" e da "presença do milagre" que foram revelados a ele no solo de Nápoles. Essas duas frases são eloqüentes o suficientes em si mesmas e me eximirão de um comentário mais longo. Do museu de Nápoles às catacumbas, da fonte de enxofre do Vesúvio às ruínas de Pompéia, nós acompanhamos a heroína ao longo do caminho espiritual que guia da superficialidade dos anciãos sobre a fragilidade do homem à idéia Cristã de imortalidade. E se esse filme tem sucesso - logicamente, você pode dizer - através de um milagre, é porque aquele milagre estava na ordem das coisas, a qual, no fim, depende de um milagre. Tal filosofia é estranha à arte do nosso tempo. Os maiores trabalhos - até aqueles mais tingidos com misticismo - parecem achar sua inspiração numa idéia um tanto quanto oposta. Eles apresentam uma concepção do homem como uma divindade - senão completamente Deus - que é uma enorme tentação para nosso orgulho e que quase nos desfaleceu. Há preocupação sobre o desaparecimento da arte sagrada: o que importa, se o cinema está tomando o lugar das catedrais! Eu irei além: o que faz o Catolicismo tão maravilhoso é sua extrema abertura, seu poder infinito de enriquecer-se. Não um templo tomado pela hera, mas um edifício cujas pedras aumentam com o passar de cada século, enquanto sua unidade permanece inalterada. E não só através de seus dogmas (estou pensando no recém-proclamado dogma da concepção), mas de sua capacidade de se renovar na vida e na arte, ele cada vez mais despreza o frágil suporte da filosofia natural. Pela graça de sua música talvez uma missa de Bach possa nos encaminhar para mais perto de Deus do que a magnificência das catedrais. É essa a tarefa do cinema, trazer para a arte aquilo que as grandes riquezas de todo gênio humano ainda não souberam descobrir: a noção do milagre?

MAURICE SCHÉRER (Eric Rohmer)
Cahiers du Cinéma, 47, maio de 1955.

Traduzido de francês para inglês por Liz Heron. Traduzido de inglês para português por Luan Gonsales.

A marca da maldade

Grilhões do passado e A marca da maldade constituem o ápice do barroco wellesiano. O barroco, de que Borges deu uma definição breve e radical ( “eu chamaria barroca a etapa final de toda arte, quando ela exibe e dilapida seus meios”), convém maravilhosamente a Welles para a descrição de um mundo deteriorado, apodrecido, no limiar do estágio último de sua decomposição, neste fim de segundo milênio. Aliás, nenhuma das histórias contadas nestes filmes poderia se passar senão no século 20, em um universo terrivelmente velho aos olhos de Welles, que sempre tentou criar e encarnar personagens à imagem e à medida deste universo. Nesta empresa, sua juventude o incomodou bastante, e eis uma das razões de seu gosto pelas maquiagens e postiços, de que sempre usou e abusou. Se os que usa em Arkadin são quase tão catastróficos quanto os de Cidadão Kane, em A marca da maldade ele nos dá uma cativante composição de um destroço inchado e à deriva que nos faz completamente esquecer que o ator à época tinha apenas quarenta e dois anos. Tecnicamente, os estilos de Arkadin e Marca da maldade podem parecer opostos: montagem curta, chuva de planos criando um ritmo esbaforido e rico em surpresas em um, planos sequência cuja duração infla até se esvair em outro. No entanto, estes dois estilos chegam a um resultado idêntico, o de delinear o retrato e o balanço de um mundo em agonia,, cujos últimos sobressaltos são fixados com paixão pelo autor.

Aliás, Welles explicou que recorria aos planos curtos quando tinha pouco dinheiro, e aos longos, aos planos seqüências, quando tinha um pouco mais. É preciso ficar bem entendido, no entanto, que Welles utiliza o plano sequência numa ótica oposta a de um Preminger, que através do plano quer fazer esquecer o découpage e a montagem, neste sonho idealmente clássico de um filme que seria composto de um único plano. O plano sequência de Welles se designa e se reivindica como tal em cada um de seus segundos. É uma proeza, destinada a tirar o fôlego do espectador e a engendrar um suspense interno que concerne menos à ação propriamente dita que ao virtuosismo do diretor. No primeiro plano de Marca da maldade- trajeto do carro com a bomba( sem dúvida o mais espantoso e significativo de toda a carreira de Welles)-, estes dois suspenses coexistem e coincidem absolutamente. Quanto ao resto, ou seja, a fotografia violenta e contrastada ( Welles é o cineasta para quem o uso da cor é essencialmente alheio) o uso das curtas focais e dos enquadramentos insólitos ( plongées e contra-plongées), os dois filmes são idênticos e recriam este espaço crepuscular, percorrido por fantasmas expeditos , espaço este que o cinéfilo mais debutante reconhece como inegavelmente wellesiano.

Os dois filmes, no plano do roteiro, são de um nível muito inferior, mas este é um estímulo para que Welles se interesse mais pelos personagens que pela ação, e ainda mais pela atmosfera que pelos personagens. Os temas da corrupção e do poder, da memória inalterável e mortificante, da impossível mudança de identidade ( sublinhada por esta profusão de máscaras e de lugares diferentes onde os personagens buscam de forma vã se ocultar) ressurgem perpetuamente entre as linhas e as imagens. O roteiro de Arkadin é ligeiramente superior ao de A marca da maldade, pois toma sua construção de empréstimo de certos filmes noirs, cujo precursor foi Cidadão Kane, e também por não conter nenhum maniqueísmo. Todos os personagens “estão no mesmo barco”, e participam da universal corrupção do mundo. Já o roteiro de Marca da maldade é o mais cheio de convenções, complacências e inverossimilhanças que já se viu num policial depois da guerra. Pouco importa, pois permitiu a Welles encenar, uma última vez, em todo seu esplendor minado “ de dentro”, o seu teatro de sombras e pesadelos.

Nota: Sem dúvida, é abusivo colocar Welles entre os grandes artistas deste primeiro século de cinema. O tempo fará justiça a este erro, cometido ao lado de outros por histórias do cinema que ainda tem muito a explorar em uma arte tão difícil ainda de julgar, em vistas de sua novidade. Seria também injusto negar a Welles as qualidades que lhe pertencem: as qualidades de um grande “pequeno mestre”, que soube persuadir seus contemporâneos de que tinha gênio, as qualidades de um príncipe do artifício , ou de um brilhante megalômano cuja megalomania tornou conhecido e superestimado para além de toda medida e que foi, ao mesmo tempo, privado de realizar a obra abundante e constante, secreta e definitiva, que outros em Hollywood pacientemente construíram no ingrato conforto da obscuridade. Mas este não seria o destino e a última pirueta de certos barrocos? Inspirar-nos o lamento, através da dilapidação de seus dons, pelas obras sublimes que poderiam ter nos proporcionado?
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior

Festim diabólico

Primeiro filme de Hitchcock em cores, primeiro dos quatro rodados com James Stewart, , primeiro onde o diretor aparece como produtor. Data importante na carreira de Hitchcock, Festim diabólico é também um dos filmes mais sérios jamais filmados. É baseado na fórmula que, durante mais de quarenta anos, vai seduzir os públicos do mundo inteiro: um extremo formalismo posto a serviço de emoções elementares, de temas universais, ligados em sua maioria à moral. Realizar um filme de um único plano foi sempre o sonho- mais ou menos confesso e consciente- de um bom número de diretores. De fato, este sonho corresponde à passagem ao limite de uma das duas principais atitudes estéticas possíveis no cinema: dada a inevitável fragmentação da criação cinematográfica, ou podemos acentuá-la e tomar como ponto de partida pesquisas estéticas que valorizam a montagem e a multiplicação dos espaços, ou podemos negar esta fragmentação ao forjar uma continuidade que absorva todos os espaços em um único espaço, todos os planos em um único plano. O cinema da fascinação ( Lang, Preminger, Siodmak, etc), cultivado nos anos 40 nos Estados Unidos, vai levar esta tendência ao seu mais alto grau de refinamento, ao desenvolver o uso do plano seqüência. E não é espantoso que Hitchcock, que considera cada filme como uma desafio, um exercício de estilo, uma nova maneira de estarrecer o público, tenha tido nesta época o desejo de estender as possibilidades do plano sequência à dimensão de um filme inteiro. Pragmático, formalista, mas não esteta, Hitchcock vai levar a cabo este desafio em primeiro lugar tomando-o ao pé da letra: um plano é um plano; portanto, nada de mudança de local, portanto tempo contínuo, portanto nem um único raccord visível ( o que vai implicar a utilização de astúcias e truques visuais , uma vez que, tecnicamente, nenhum plano pode durar mais que dez minutos de projeção). O desafio proposto nos leva assim ao teatro mais fechado e claustrofóbico, enquanto que, por exemplo, no espírito de um Preminger , o sonho do filme em um único plano possui algo de cósmico: trata-se de abater as muralhas em torno da realidade a fim de apreendê-la em um único fluxo uniforme e em um espaço contínuo.


Curiosamente, em Festim diabólico, o “parti-pris”, a lógica do ponto de partida se perdem no meio do caminho ou, se preferirem, se desvanecem em um harmonioso compromisso. A razão estará em que a virtuosidade cansa facilmente o mestre do suspense? Em todo caso, uma mudança de plano será absolutamente normal e visível, o plano seguinte vai se efetuar sobre as costas de um personagem ( fusão sobre preto, “fondu au noir” disfarçado), e o último “fondu au noir” vai se dar excepcionalmente sobre a cobertura do baú.. Enquanto que um filme em média comporta entre duzentos e seiscentos planos, Festim só tem onze ( respectivamente, o de 1’54, 9’36, 7’51, 7’18, 7’09, 9’57, 7’36, 7’47, ‘0’, 4’36, 5’39). As dez mudanças de planos se operam da seguinte maneira: 1) mudança de plano correspondente a uma mudança de lugar ( é o único do filme: passamos do exterior ao interior do apartamento); 2) sobre as costas de John Dall; 3) normal; 4) sobre as costas de Douglas Dick; 5) normal; 6) sobre as costas de John Dall; 7) normal; 8) sobre as costas de John Dall; 9) normal; 10) sobre a cobertura do baú onde está o corpo.


Aliás, este filme que recusa a montagem é extremamente découpé e autoritário em sua mobilidade e sua maneira de apreender o espaço. Aí também ele vai na contramão da ótica do plano sequência segundo Preminger, que visa a fazer esquecer ao espectador a existência da câmera. Aqui, a câmera permanece, do começo ao fim, muito presente: ela, como sempre em Hitchcock, é o personagem principal da história, conduzindo, em seu percurso, um espectador submisso e satisfeito. Encenado com deleite por Hitchcock, este “huis-clos” onde a câmera circula no meio de compartimentos escamoteáveis e móveis com rodilhas contém a mais bela “descoberta” da história do cinema ( maquete de Nova York pouco a pouco tomada pela noite) e só visa a um único fim: acentuar de forma surpreendente a tensão e o mal-estar suscitados pela intriga. Nenhum filme de Hitchcock, tirando Psicose ( onde o mal-estar, a intervalos regulares, deságua no terror), engendrou uma atmosfera tão irrespirável. A abjeção dos dois assassinos é elevada a um outro nível, em face da mediocridade dos outros personagens ( notemos que Hitchcock evitou colocar em suas bocas o menor diálogo brilhante). O próprio pai, posto por Hitchcock à parte da mediocridade ambiente, participa do mal-estar geral enquanto vítima pateticamente impotente- depois, é claro, do próprio morto- deste absurdo holocausto. Quanto ao personagem de Stewart ( o professor), ele é aos olhos do diretor o mais culpado de todos. Neste sentido, Festim diabólico é um filme relativamente excepcional na obra de Hitchcock: o espectador não pode se identificar a nenhum dos personagens, a não ser talvez ao morto no baú, que espera ( ?) que seus assassinos sejam reconhecidos e julgados. Festim ocupa um lugar central no seio do edifício hitchcockiano , uma vez que consolida justamente a moral tradicional- universalista em seu princípio- do autor e elimina como monstruosa toda tentativa de uma moral individualista, elitista, que daria a um único ser ou a uma única categoria de seres um lugar à parte na sociedade. O filme sublinha também a responsabilidade do intelectual, cujas palavras, escritos, teorias, paradoxos devem ser considerados, tanto pelo autor como pelos outros, com tanta seriedade quanto se constituíssem atos. Vejamos que o filme não brinca em serviço. Outro aspecto do segredo de Hitchcock: ninguém antes dele ousou ser tão grave, sabendo permanecer extremamente divertido.

Jacques Lourcelles

Tradução: Luiz Soares Júnior

Alexander Névski

Como O Encouraçado Potenkim, trata-se aqui também de uma encomenda
( pessoalmente mantida por Stalin) que Eisenstein realiza. Os fins do filme são patrióticos e realizados com vistas a um futuro imediato. Não se trata mais de exprimir a ideologia marxista, mas de ilustrar uma propaganda nacionalista, e isto a tal ponto que Brasillach e Bardèche puderam apreciar no Névski “ o mais comovente dos filmes fascistas”. Efetivamente, Eisenstein emprega a figura da “metáfora histórica desviada”, utilizada com frequência na época no cinema fascista italiano e no cinema nazista. Com a ideologia marxista desapareciam também em Eisenstein os parti-pris formais que ele engendrou e a criatividade que estes tinham trazido para A greve e Encouraçado Potenkim. Aqui, o formalismo eisensteiniano se limita a construir para o herói Alexandre uma estátua decorativa, mas se mostra mais feliz quando se presta a pesquisas plásticas e estetizantes no célebre “morceau de bravoure” da batalha sobre o lago.
O cinema falado não trouxe nada para Eisenstein. Este não possui nenhum sentido do diálogo dramático, e as discussões entre personagens filmadas em planos aproximados demonstram um crasso academicismo; cada ator declama seu texto como um folheto verbal. O esforço de caracterização dos dois amantes de Olga é extremamente desajeitado, assim como as cenas do epílogo, após o combate. Este filme de 1938 poderia ser de 1932 ou 1933. O cinema falado só interessa a Eisenstein enquanto sonoro, e permite anexar às imagens o contraponto da admirável música de Prokofiev e dos coros cantados em off. No que se refere ao combate do lago, esta longa sequência de trinta minutos, a única que merece atenção no filme, vale sobretudo por seus planos gerais. Sua beleza plástica é devida aos capacetes e armaduras dos cavaleiros, aos movimentos da multidão quando esta é reduzida a colisões pictoriais de volumes, massas e linhas. Os planos aproximados, mostrando soldados russos que proferem uma ou duas frases enquanto combatem os adversários, se integram mal ao conjunto e são frequentemente catastróficos. A idéia do lago que se fende, espetacular em seu princípio, só se mostra enquanto tal na tela em um único plano, extremamente elíptico: o plano do cavaleiro parcialmente afundado no lago, cuja túnica acaba por ser tragada pelas águas. ( É verdade que a seqüência do lago foi rodada em julho, em terra firme).

Neste filme ilegítimo e desigual, que o próprio diretor julgou a mais superficial e menos pessoal de suas obras, Eisenstein está à vontade com as armaduras, os capacetes, a estratégia abstrata do combate, as massas brancas do lago e do céu, os cavalos, a natureza. Mas ele não sabe o que fazer dos homens. Eles só aparecem no prólogo e no epílogo ( que mesmo assim ocupam dois terços da duração do filme), para destilar a mensagem patriótica e nacionalista. Eisenstein, em Alexander Névski, ainda não aprendeu a integrar o homem em seu formalismo, agora que este formalismo suplantou em sua obra a ideologia. Para tanto, lhe seriam necessários ainda as duas épocas, os tormentos e a maldição de Ivan, o Terrível.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.