terça-feira, 17 de novembro de 2009

Forever Amber, Otto Preminger

Adaptado do best-seller, audacioso para a época, de Kathleen Winsor, é sem dúvida a mais bem realizada das superproduções americanas. No entanto, as coisas tinham começado mal, porque ao cabo de algumas semanas de filmagem o metteur en scéne John Stahl e a vedete principal, Peggy Cummings, haviam sido demitidos por Zanuck antes que Preminger, então sob contrato na Fox, fosse obrigado a retomar o projeto, fizesse reescrever o roteiro e se tornasse totalmente o senhor do projeto. Situação um pouco semelhante àquela na qual ele estivera, nas vésperas de rodar Laura, com duas essenciais diferenças: aqui, o projeto não era de Preminger (ao contrário: ele se opunha a este); e a intérprete que ele desejava para o papel ( Lana Turner) teve de finalmente ceder o lugar para Linda Darnell, transformada em loira para a ocasião. Não se poderia, no entanto, imaginar uma Amber mais perfeita. Através de seu personagem, Preminger estudou o conflito da ambição e da afetividade, pintando uma heroína colocada na situação, não de preferir sua ambição aos sentimentos, mas de imaginar que apenas sua ambição pode servir a sua afetividade. Tendo escolhido um parceiro apático e indeciso, sequioso de respeitabilidade, ela vai passar a vida a se aguerrir e a esperar que deste endurecimento lhe venha por fim a felicidade. Ela vai viver uma série de decepções que encontrariam bom lugar num melodrama, mas que Preminger preferiu colocar no mais glacial dos estudos de costumes, situado no seio de uma reconstituição histórica com um fascinante esplendor plástico.O filme torna-se assim um devaneio sobre a impossível secura do coração, sobre o fiasco de uma heroína que não cessa de se perder nos cálculos e complots que arma, e dos quais espera, de forma vã, a libertação. É a irmã de numerosas outras heroínas premingerianas, por exemplo a Cécile de Bom dia tristeza.
Sua frustração, sua tristeza, seu estado de decepção quase permanente se estiram diante dela como abismos, enquanto que para o espectador a frieza da heroína a torna ainda mais empolgante do que se derramasse torrentes de lágrimas. Sua breve e tumultuosa trajetória vai se efetuar por entre a mais extraordinária coleção de cínicos, elegantes crápulas e monstros jamais reunida em um filme. Amber foi em sua época um dos mais caros produtos da Cidade do Cinema.Podemos ver isto na tela, e não teríamos palavras para descrever o gosto, a riqueza dos figurinos e dos cenários, a suntuosidade do Technicolor manejado com gênio por Leon Shamroy ( sobretudo nos closes de Linda Darnnel). Todo este fausto serve de espelho à acidez impertinente dos diálogos e à desilusão dos personagens ( ” Lutei toda tarde contra o fogo nas docas, diz Charles II à sua amante; nunca teria me esforçado tanto para subir no trono se soubesse que exigiam tanto de um rei). Para este adepto da técnica invisível que é Preminger, a arte dos movimentos de câmera aqui se mostra no auge, e na curta cena do parto de Darnell, o diretor nos dá o que talvez seja o mais belo plano sequência da história do cinema. Por seu gênio plástico, apenas para citar um de seus gênios, Amber está tão distanciado de nós e do que vemos hoje em dia no cinema quanto podem estar , por exemplo, um quadro de Velásquez ou de Rembrandt.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Um americano tranquilo, Mankiewicz

O filme mais estranho e mais desconcertante de Mankiewicz, apaixonante como um romance de enigmas. Mas este romance não contém, falando propriamente, um enigma: ele próprio é integralmente um enigma. O domínio da construção não surpreende os espectadores familiares ao estilo de Mankiewicz. Como na Condessa dos pés descalços, uma substância romanesca extremamente rica ( em espessura, em perspectivas) é segmentada em longas cenas teatrais com diálogo abundante, inseridas em um flash-back. Aqui, à diferença da Condessa, há apenas um flash-back e um único narrador, que nos conduz com ele em seus devaneios impotentes perante a realidade, sua confusão, sua perplexidade, sua má consciência, em sua culpabilidade e hipocrisia, em suas mentiras pueris, sempre rapidamente desmascaradas. Sua narrativa possui a textura de um “pesadelo desperto” ( segundo a expressão de N.T. Binh, em seu primeiro livro publicado em francês sobre Mankiewicz, Rivages, 1986) e se encaminha inelutavelmente para um desenlace trágico que nada nem ninguém poderia impedir. Este movimento para a tragédia é o único elemento claro no filme. Quanto ao resto, Um americano tranqüilo é o filme do mal-estar, da incerteza, do porte-à-faux 1. Um destino vacilante priva os personagens ( e sobretudo o narrador) de sua lucidez, ou a torna derrisoriamente inoperante. Mesmo o importante papel atribuído aos diálogos acaba por ser negativo. Quanto mais os grandes personagens falam, menos compreendem o mundo, a história e a eles mesmos. Mankiewicz joga habilmente com as diferentes línguas faladas pelos personagens, afim de intensificar, sempre com ironia, sua confusão. A intriga mescla um aspecto sentimental e psicológico a um aspecto político, mesclar querendo dizer aqui misturar, confundir, obscurecer. Longe de mutuamente se valorizarem, estes aspectos se aniquilam, e este filme sem mensagem política coerente apresenta uma das heroínas femininas mais ternas da obra de Mankiewicz. Este vivia, na época da filmagem, um dos períodos mais tormentosos de sua vida. ( O estado mental de sua mulher, a atriz Rosa Stradner, se degradava cada vez mais, e ela iria se suicidar no ano seguinte, em 1958).

Mankiewicz explicou que seu interesse pelo romance de Graham Greene vinha sobretudo do personagem de Fowler: “Eu sempre quis fazer um filme sobre esses intelectuais glaciais cujo intelectualismo é apenas uma máscara que recobre reações totalmente irracionais” ( citado no livro de Kenneth Geist sobre Mankiewicz, “People Will talk”). A mensagem do filme consistiria assim em mostrar , em um ser aparentemente evoluído e senhor de si, o triunfo desconcertante do irracional e do emocional sobre a razão e a lucidez. Triunfo feito na medida para justificar esta cólera, esta amargura misantrópica que Mankiewicz ressente, de forma intermitente, em relação à humanidade, e sem dúvida, em primeiro lugar, em relação a si mesmo. Pois, em suas trevas e sua ambigüidade, Um americano bem tranqüilo permanece, no interior da carreira de Mankiewicz, uma obra extremamente pessoal e até mesmo íntima.



1. Em uma situação ou posição perigosa, instável, desequilibrada.
Jacques Lourcelles.
Tradução: Luiz Soares Júnior.



Pacto sinistro, Alfred Hitchock

Uma das cinco ou seis obras mais importantes mais importantes para o conhecimento de Hitchcock. É o filme onde o tema hitchcockiano de base- a troca das culpabilidades- aparece mais abertamente, e não apenas como tema mas como motor principal da ação.Esta ação, constituída em sua linha principal pela armadilha na qual se debate um dos personagens ( Guy, interpretado por Farley Granger), é refletida na luz cintilante, metálica e glacial forjada pelo diretor de fotografia Robert Burks, aqui em seu primeiro trabalho para Hitchcock. Enquanto falso culpado, Guy se encontra tão privado de iniciativa e de liberdade quanto seu homólogo Henry Fonda em O homem errado.Como Balestrero, ele expia uma culpa metafísica ligada ao pecado original. Para Hitchcock, parece que não há “falso culpado” integral: Guy, que pensou em matar, que desejou matar, já entrou no infernal círculo da culpabilidade. E o face a face central de Strangers on a train é aquele entre o Diabo ( admiravelmente interpretado por Robert Walker) e sua criatura. Esta no fim triunfará, depois de ter cortejado o abismo, pois Hitchcock, moralmente falando, se alinha entre os otimistas, ou pelo menos tenta nos dar esta impressão. Em seus últimos filmes, quando ele poderia ter escolhido- numa época mais liberal- encerrar seus filmes com a vitória do Mal, e não com um happy end, ele sempre recusou-se a fazê-lo. Seu estilo aqui é clássico, rigoroso, quase austero, mas com acessos febris que correspondem aos momentos de extrema tensão e de mais intenso suspense ( a sequência do assassinato de Miriam, a do paralelismo entre o match de Guy e a ida de Bruno ao parque de diversões, e enfm a sequência final do carrossel). É aí, quando o cineasta melhor tem seu público na mão, que ele se distancia da intriga propriamente dita para se entregar a arabescos visuais que compõem uma sinfonia de imagens e de sons onde o prazer de narrar cede o passo a um puro deleite plástico e dinâmico. Mas Hitchcock sempre espera que o espectador esteja sob seu domínio para enfim se dar o prazer de satisfazer sua verdadeira natureza: a de um formalista genial que utiliza a duração, da qual é mestre absoluto, para cinzelar imagens infernais e apocalípticas que exorcizam suas obsessões. Nestes instantes, que podem durar até longos minutos, ele com freqüência encontra a ocasião de inventar e utilizar com maestria tornada lendária todo um arsenal de truques, de efeitos óticos e fotográficos que permanecem a maior parte do tempo um enigma à primeira visão, e às vezes nas seguintes.
Jacques Lourcelles.
Tradução: Luiz Soares Júnior

Ivã, o terrível


Em 1940, Eisenstein pensa em fazer um filme sobre o tsar Ivan IV, cujo roteiro ele termina na primavera de 1941. A Mosfilm aceita o projeto um pouco antes da URSS entrar em guerra contra a Alemanha. A empresa vê aí um novo pretexto, depois do Alexander Névski, para exaltar o sentimento nacional. A filmagem começa em 1 de fevereiro de 1943 no estúdio de Alma- Ata, a guerra impedindo que se filmasse em Moscou. A segunda parte será filmada no estúdio Mosfilm entre setembro e dezembro de 1945; ela compreende partes em cor realizadas a partir de um estoque de película Agfa, tomado aos alemães no fim da guerra. A primeira parte é lançada em janeiro de 1945 com um grande sucesso,e obtém o Prêmio Stalin. Eisenstein termina a montagem da segunda parte em fevereiro de 1946. A doença e as críticas oficiais suscitadas por esta segunda parte o impedirão de rodar a terceira parte, apesar de esta ter sido minuciosamente escrita e preparada. Lembremos que nesta terceira parte ( intitulada Os combates de Ivan) Ivan, aliado à Inglaterra, deveria enfrentar vitoriosamente as tropas livonianas. Kourbsky morreria em um castelo cuja explosão teria sido voluntariamente provocada por um dos seus homens, a fim de evitar que este caísse nas mãos do inimigo. Maliouta morreria também nesta explosão. O filme deveria ter terminado com uma proclamação de Ivan, afirmando que de agora em diante a Rússia permaneceria no Báltico. Absolutamente falsa historicamente, esta terceira parte beneficiava Ivan com as vitórias conquistadas mais tarde por Pedro o Grande. Em setembro de 1946, o Comitê central do PC Soviético condenou Eisenstein nestes termos: " O metteur em scéne Sergei Eisenstein, na segunda parte do filme Ivan o terrível, revelou sua ignorância dos fatos históricos ao mostrar a progressista guarda de Ivan o Terrível como um bando de degenerados, do gênero Ku Klux Klan, e o próprio Ivan o Terrível, que possuía vontade e caráter, como frágil e indeciso, um pouco à maneira de Hamlet". No entanto, o Conselho artístico do ministério da cinematografia apreciou o filme, mas a última e definitiva condenação veio do Kremlin. A segunda parte só saiu na Rússia e no mundo em 1958. Viram neste Ivan, em seu amigo Maliouta e nos Opritchnicks uma metáfora mal velada de Stalin, de Beria e dos homens da KGB.
As críticas concretas endereçadas ao filme foram as seguintes: ausência do povo na condução da narrativa, importância primordial dada às intrigas da corte, formalismo. No essencial, é impossível negar que estas críticas concernem ao corpo essencial do filme, e se evidentemente temos de condenar a condenação, devemos assinalar que esta não é baseada – uma vez que isto não costuma acontecer- num mal –entendido. Nas duas partes da obra, Eisenstein deliberadamente sacrificou o histórico ao poético e ao trágico. Seu Ivan é um personagem shakespeariano, invadido pela dúvida e incerteza, às vezes mesmo roído pelo remorso, muito mais em luta consigo mesmo e contra seus próximos do que contra o inimigo estrangeiro. Seus adversários privilegiados são a nobreza, os boyards1, sua própria família e seus amigos; seu combate permanecerá individual, solitário, até mesmo confinado, mesmo se os temas em jogo são nacionais e imensos. Tirando a sequência do cerco de Kazan, o povo, as massas, e portanto a epopéia estão ausentes das duas partes do filme. O povo só intervém concretamente na procissão que encerra a primeira parte: sua única iniciativa consistirá em uma súplica com o objetivo de fazer com que Ivan volte para Moscou, exatamente como este havia previsto, ao se retirar provisoriamente em Alexandrov. Vistos por Eisenstein, a tragédia e o destino de Ivan são aqueles de um homem que não pôde se tornar o herói épico que desejava ser, constantemente impedido por seus próximos de se comunicar com o povo e de associá-lo às suas lutas. Em um outro nível, o destino de Eisenstein foi também o de não ter podido ser, por não ter nascido em uma boa época e meio, um poeta elizabetano, ou um grande cineasta hollywoodiano dos belos tempos ( uma espécie de poeta épico, à maneira de King Vidor por exemplo). As duas partes de Ivan, e mais especialmente a segunda, testemunham da ambição de Eisenstein de utilizar o cinema como arte total; mas a realização desta ambição se encontra limitada pelo caráter essencialmente teatral da intriga e do personagem central. Nennhuma dúvida de que a segunda parte é superior à primeira: podemos até mesmo dizer que ela não prolonga realmente a primeira, mas a refaz, a repete enriquecendo-a e lhe conferindo maior densidade. O caráter trágico e quase claustrofóbico do destino de Ivan torna-se mais e mais evidente, e a contribuição da cor dá uma dimensão extraordinária à concepção cara a Eisenstein do cinema como arte total. Ivan, o Terrível representa também o termo da evolução de Eisenstein em direção ao formalismo, ao mesmo tempo que seu máximo distanciamento das massas como o tema ideal de uma obra de ficção. Todavia, seria completamente errôneo dizer que Ivan constitui o triunfo do indivíduo no cinema de Eisenstein. Isto equivaleria e esquecer a total inaptidão do cineasta em representar o indivíduo em sua intimidade e verdade concreta. Os personagens dos dois filmes são, mais do que seres de carne e osso, marionetes alucinadas, ou máscaras, que tiram o essencial de sua força- que se pode julgar ultrajosamente artificial- de sua posição no interior de uma geometria plástica dos planos e do découpage. No plano visual, a metáfora do xadrez nos vem imediatamente ao espírito, os personagens e sobretudo os atores do filme não sendo nada além de peças manipuladas de cima pelo cineasta-demiurgo. É em relação a este nível do filme que se oporão sempre, como adversários irreconciliáveis, os laudatores e detratores do cineasta, os detratores constituindo uma minoria é verdade, mas no cinema a verdade está com frequência do lado da minoria. Um dentre eles, Michel Mourlet, escrevia na NRF ( Nouvelle Revue Française)quando do lançamento do filme em duas partes: "Ivan o terrível se coloca na encruzilhada de uma arte pueril, ainda petrificada em seu primitivo mutismo, e da decadência crispada de um esteta que alia a ingenuidade das metáforas à vacuidade chinesa das formas. Uma direção de atores hierática na exacerbação orna o espaço de letras maiúsculas, mas esperamos em vão pelo resto da palavra.Não há nada por detrás da agitação das superfícies, nada por detrás destas lentidões dispersas senão uma tentativa frustrada de grandeza, um sapo que incha e nem chega a explodir".

1.Boyard. do russo Боярин, refere-se a uma classe de aristocratas de certos países ortodoxos da Europa do leste.
Jacques Lourcelles

Tradução: Luiz Soares Júnior.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Barry Lyndon, Jean Pierre Oudart

Há sempre uma profunda moralidade, ao mesmo tempo mercantil e humanista, do cinema hollywoodiano, segundo a qual a ficção não deve jamais incorrer em perda ( travailler à perte 1); que esta deve ser ,de qualquer maneira, edificante. Apercebemo-nos disso hoje, com o filme catástrofe, onde o gasto de dinheiro, cenários e talentos é compensado por um ganho inaudito, inestimável: face ao apocalipse desencadeado na tela, na obscuridade do desejo dos espectadores, pensa-se: “Somos todos um só”. Unanimismo do espetáculo hollywoodiano, exigência de um assentimento profundo, moral, sentimental, para com ideais coletivos cuja ficção deve ( é esta a sua regra, sua lei) assegurar ao espectador a felicidade do reconhecimento.
Em aparência, Barry Lyndon é fiel a esta grande norma hollywoodiana. Sua ficção, que se desdobra em um vasto afresco histórico, pode passar, com o fito de destilar uma moralidade- a ascenção e a queda de um arrivista- como suporte de uma meditação pessimista, distante e altiva, sobre os grandes valores do mundo. Aí vem o crédito de Kubrick de ser um grande autor crepuscular, e seu filme um testamento, uma coletânea de reflexões sobre o mundo: um belo presente para os espectadores e para os críticos, afinal de contas.
Mas oras, é um filme que se subtrai de todas as maneiras possíveis. Em primeiro lugar, visivelmente, por um excesso de heterogeneidade em sua forma, contrária ao realismo hollywoodiano: os quadros ( tableaux), os planos, não se enquadram uns com os outros, uns por excesso de pictórico, outros por excesso de verdade arqueológica. Estas distorções não são decorativas; em todo caso, não tem nada a ver com o decorativismo hollywoodiano, que é sempre utilizado ora no sentido de magnificar cenicamente os personagens, ora de enriquecer os panos de fundo de notações históricas, de personagens secundários, para vantagem desta figura feudal gloriosa que é o star.
Visivelmente, em Barry Lyndon, o luxo dos planos não serve aos personagens, não os enquadra em uma postura gloriosa. A riqueza aparente tende antes a acentuar o pouco(ou o mínimo) de glória que esta história contém, a marcar com um selo de derrisão os personagens e suas ações. Mas sobretudo o excesso de verdade arqueológica, o hiper-realismo das cenas de gênero ( o falar, a maquiagem, as maneiras da época), longe de lhes conferir a marca da caduquice e o charme do “imagismo” rétro ( o prazer dos senhores de outro tempo), afeta-as com um coeficiente de estranheza ( etnográfica): a das seqüências sociais, dos ritos, de códigos cujo sentido estaria perdido. Portanto, de valor nulo para o espectador, se compararmos com o poder do imagismo rétro em evocar o prazer, o gozo ( jouissance) dos senhores no passado, e constituir no presente o signo de sua glória, ou mesmo sua mensagem: na medida em que o imagismo rétro , enquanto valor social, possui hoje o sentido de ser uma promessa- a promessa da perpetuação de um plus-de-jouir 2, marcado simbolicamente por uma ressacralização dos valores de luxo da burguesia. Tornarmo-nos nós mesmos aristocratas, incorrendo em pura perda ( pure perte).
A estranheza da história reside menos nesta temática da carta truquée 3, da aliança espúria (mésalliance) 4 e da má sorte, que ao fato de que todo o filme se desenrola sob o signo do “trucagem”, do estranho, do semelhante, apenas para acabar sob a forma do não-reconhecimento, da mutilação, da loucura; e que sua escritura, o ângulo de ataque e a linha de fuga de cada seqüência, a inflexão da narrativa fazem surgir das situações uma carga suplementar de horror.
A irrupção das máscaras assustadoras e grotescas, da violência, da morte, o personagem tomado num circuito de máquinas sociais infernais e de procedimentos onde ele se perde sem saber, fazem-se também como operações de escritura “a fundo perdido”, de um secreto catastrofismo: a parada militar, o encontro com o cavaleiro, a morte da criança, a assinatura do dote, déroutent 4 pela indecibilidade de sentido do ríctus do oficial, a máscara empoada, o rosto marcial, e por fim através de um ato jurídico eivado de loucura. Não se tratam de operações registradas pelo espectador nos termos de um ganho de conotação, de recuo crítico em relação aos personagens, ou de derrisão para com o melodrama e à cena hollywoodiana, mas de sobressaltos de ironia que o tocam no cerne de sua convicção: que na falta de uma moralidade de situações ( comprometida pela vacuidade psicológica dos personagens), ele pode contar com uma moralidade da narrativa, com uma jurisdição de seu sentido, que também se encontra ausente aqui.

Cada vez que ocorrem reconhecimentos 5( du tuchè!), as máscaras se impõem como figuras da falta de sentido ( non-sens); cada vez que a narrativa está a ponto de proferir sua moralidade, o achatamento ( platitude) das imagens, do comentário em off, a subtraem de nós.

Jean-Pierre Oudart, Cahiers du Cinéma, 271, novembro 1976. Páginas 62-63.

Tradução: Luiz Soares Júnior.


Notas:



  1. travailler à perte: Fala-se da privação ( do privar-se) de algo inestimável, vantajoso. Quando estruturalistas ( e depois pós-estruturalistas) como Oudart e Daney falam em gain ( ganho), perte (perda), na verdade usam referências psicanalíticas, embora a analogia metafórica repouse na “economia”: trata-se de economia pulsional, no caso. A dificuldade da tradição literal reside justamente em que são termos que “não tem muito sentido” na linguagem corrente, muito menos na linguagem corrente cinematográfica; são específicos de disciplinas e doutrinas específicas, como Psicanálise e marxismo.

2. un plus de jouir: um mais, uma plenificação na potência de gozar, de usufruir
( Psicanálise de novo!)

3. No sentido de carta marcada, jogo falseado, pois já está dado/decidido de antemão.

4. Casamento com alguém julgado de condição inferior.

5. Dérouter: No sentido de decepcionar, distrair, desviar do caminho da narrativa, frustrar nossas espectativas em relação a estas.

Adolfo Arrieta, Por Jean Claude Biette

Quer ele avance sobre as “échasses” 1 de uma narrativa simulada, regida por roteiros com caráter feérico ( o Castelo de Pointilly, Tam-Tam, Flammes), quer ele persiga com uma intuição segura esta percurso em caracol de uma filmagem às cegas, que só conseguirá ser retomada nas últimas decisões da montagem ( Le Crime de la toupie, este extraordinário Imitação do anjo, Le jouet criminel, As Intrigas de Sylvia Kousky), a arte cinematográfica de Arrieta exprime antes de tudo nas questões humanas aquilo que desliza entre as malhas do real, o que se esfiapa entre os diálogos.

Poder-se-ia crer, vendo apenas um ou dois desses filmes, que Arrieta se empenha nos diálogos, no que se diz e no que se troca. Errado: ele os utiliza apenas como encantamentos que joga ao acaso. Os significados são piões, os diálogos simples lances de paciência ( carpette) 2, e os personagens as peças, com frequência vestidas de anjos, de um grande jogo misterioso que não é conduzido pelo destino, por Deus ou por uma ideologia, mas pelos componentes tangíveis de uma concepção enigmática do cinema de que Arrieta busca há anos, a cada filme, emitir novas provas. Ele flertam com um número incalculável de sombras que nos encantam, mas que escapam a quaisquer que tentam convertê-las em objetos.

Este jogo do cinema, que adquire às vezes em seus filmes a aparência do milagre, traduz uma poética dividida, contraditória, que se burila, não sem dificuldade, para derivar no sentido das duas direções indicadas na repartição feita acima. Esta divisão em duas tendências da obra- cinco longas-metragens e dois curtas são suficientes neste caso preciso para falar em obra- aparece na percepção simultânea da cor dramática, da forma técnica e da tonalidade de conjunto ( o resultado estético) de cada um de seus filmes. Os primeiros, claramente dialogados com seus textos gravados ao mesmo tempo que a ação filmada ( em som direto), submetem um pouco à sua lei os planos de ação que poderíamos, por economia e exigência de mobilidade, tornar mudos e acrescentar o ruído em seguida, “por cima” ( sim, “fazer ruído”, pois Arrieta não hesita, por exemplo, em emprestar sua voz à imagem de um cão que late). Estes filmes dão a impressão de uma maior hierarquia entre seus componentes que os segundos. Estes, pouco dialogados, com seus sons um pouco sufocados de conversações ou de julgamentos sem respostas, propõem uma narração fantasma que não inspira medo mas, de forma muito mais sutil, busca tranqüilizar.3

De que se trata então este jogo e em que ele é cinematográfico? Que são estes “trotes”

( pièges) vãos que no máximo nos enervam ( mas já se trata disso?) Neste dispositivo que imita a negligência (dos raccords, da luminosa continuidade, da percepção auditiva mediana, do jogo coerente e composto dos intérpretes)- e esta negligência exaspera-, ocorre a busca obstinada ( e pouco prestigiosa) por exprimir em estado de filme a grande desordem, raramente explorada, da vida , ou seja, de comunicar um sentimento tão forte quanto possível ( não”mimado” por efeitos formais nem imposto pela vontade ou aprisionado pelo roteiro, , mas ganho no espaço material do filme, em seus componentes os mais prosaicamente técnicos) de liberdade. Os filmes de Arrieta abrigam tesouros de olhares, de gestos e de frases sem sentido ( insensés): estes não exprimem nada, eles estão aí para estarem aí e afirmarem imediatamente a existência, aqui e não em outro lugar, de indivíduos atores ou não, que uma câmera que se diria “chargée à blanc” 4 interrompe alguns segundos, no meio de uma conversação ou no decorrer de um passeio. Nesta aptidão a combinar dispositivo obstinado e desordens, a partir de uma cultura, de um ponto de saber, de uma biografia que diferem, Arrieta não está muito distante de Jean Rouch ou de Jacques Rivette”.

Jean Claude Biette, Cahiers du Cinéma, número 290-291, julho-agosto 1978.


Tradução: Luiz Soares Júnior.


Notas:
1. pernas de pau.


2. Espécie de jogo de cartas ( paciência) que se joga entre dois jogadores.

3. Joue à rassurer. Jouer tem o sentido, no caso, tanto de jogar ( ou interpretar, dirigir, encenar) quanto de divertir, de brincar.

4.
Diz-se de uma arma carregada com um cartucho em branco, sem balas

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Ponto de vista. Por Serge Daney

2 de Dezembro 1989 – Velho princípio da “nossa” cinefilia: o ponto de vista. Para mim, o ponto de vista é precisamente o que vem no lugar de um corpo que é elidido na imagem, o que pode ser visto do ponto cego. O ponto de vista refere-se ao que pode ser visto por um personagem que estaria sempre no lugar da câmera. Persistir com esse ponto de vista diretamente significa confrontar problemas de mise en scène (desde que haja imagens proibidas, o que não seria consistente com o ponto de vista único). A questão do “ponto de vista” vem para perguntar quem está olhando. Quem é o personagem adicional? Por exemplo, no filme de Depardon, outro guarda, o guarda “que saberia”. O cinema do ponto de vista único está desaparecendo/ausentando-se (em ambos sentidos do termo) em sua (mística, pictória) relação com o “real”. Ele abole a si mesmo. Ele nunca teve muito sucesso, visto que confisca para si mesmo o imaginário (e priva a audiência disto: Antonioni, Depardon). Obsessivo.
O cinema do ponto de vista duplo é o cinema popular por excelência, visto que este acampa firmemente entre o plano e o contraplano (leia o livro de Warren), bancando o “pequeno objeto a” ( petit objet a) entre dois objetos capturados numa luta de forças (veja minha velha idéia sobre Tubarão: o tubarão e a perna da criança). É popular porque cria uma identificação vertiginosa entre dois pólos: ativo/passivo, caçador/caça, torturador/vítima, etc. Histeria.
Isto deixa o cinema com n pontos de vista; no fim, é isso o mais importante. Algumas vezes é popular, mas não necessariamente. Ele tem que brincar/fazer malabarismo com a paranóia, a lei, a loucura. Não consigo imaginar um filme melhor que The Night of the Hunter nessa categoria, a categoria da polifonia, do carnaval (talvez junto com Ivan o Terrível, 2001, alguns filmes de Ford).
Tiebreak (set de desempate): o cinema sem nenhum ponto de vista é possível? Não. Nós teríamos que analisar televisão não com metáforas visuais mas táteis (“ponto de toque”, acolchoamento tátil) e proxêmica1.
23 Julho 1988 – DEMY (tv). O fim de Duas Garotas Românticas. Estúpido, devastado, emoção definitiva. Uma emoção tão forte que tudo que eu sempre pensei – e escrevi – sobre Demy continua verdadeiro. Um cineasta difícil, não completamente sentimental, mórbido e alegre.
Só uma “idéia”. Melancolia não é nostalgia. O mundo de Demy (o meu também, suponho) é melancolia instantânea. Não há mundo perdido, nenhum ideal que se foi, nenhum estado prévio pelo qual nos lamentamos. Pela simples razão (perversion oblige 2) que não queremos saber nada desse mundo “do qual viemos” (mais aliança do que parentesco, etc). Melancolia é instantânea como uma sombra. Coisas se tornam melancólicas imediatamente, graças à música e à música do diálogo. É a boa disposição ( good mood) com a qual os personagens falham em tudo (exceto talvez no essencial) que é terrível e comovente ao mesmo tempo. Um não falha nas coisas porque não as vê mas porque ele descobriu muito rapidamente um jeito de esvaziá-las do seu conteúdo, de circular ao redor delas, de dançar. Darrieux descobre quem é o sádico e diz: “E ele comandava tudo enquanto cortava o bolo!”
O essencial era o amor mas este seguiu perdendo suas cores. Já nesse filme a beleza do “último minuto” porque todo final feliz é puro voluntarismo. Porém, mais tarde (Pele de Asno, etc) este se atrita mais e mais. E voluntarismo é precisamente o assunto de Une chambre en ville.
A força absoluta de Demy é relacionar tudo de um ponto de vista perfeito: o da mãe. A mãe que nunca cresceu, que é frívola, que esqueceu de parar de ser uma garotinha. O mundo é organizado a partir desse ofício cego.
A dançar: Gene Kelly.
26 Março 1988 – Ontem, entre a tarde e a noite, em frente à TV. Abandono rapidamente 8 ½, mesmo que nunca o tenha visto, mas me exaspera e me pego assistindo até o fim um filme que objetivamente acho mal feito, mal contado, mal tudo: O Veredicto de Sidney Lumet. Esquizofrenia da televisão: nós não só assistimos o que não é bom (não é bem feito), mas nós vemos até melhor do que no cinema (edição, por exemplo), e mesmo assim nós preferimos ver um filme mal feito do que um bem feito. Ou ainda: os conceitos de “bem feito” e “mal feito” não são relevantes na televisão. Ou o filme tem uma força tamanha que se impõe ou nós estamos na relatividade de um mundo de imagens, numa banheira do imaginário, onde tudo é interessante. Isso depende do clima do momento. Ontem eu preferi assistir Mason e especialmente Newman compondo com idade, com tudo. Lumet é o arquetípico cineasta que filma do ponto de vista de ninguém, portanto com uma eficiência abstrata, tão abstrata que é reduzida ao nonsense de roteiro. Ele acelera quando não há razão pra isso. Um belo momento. Newman finalmente encontrou a enfermeira que “sabe” o que aconteceu. Ela cuida de crianças em Chelsea. Ela tem uma bela face de santa de sindicato. Ela está no playground; Newman, que chegou de Boston, está abordando-a desajeitadamente. Close-up no bilhete Boston-Nova Iorque, que cai de seu bolso. E lá, um pequeno truque do velho Lumet, um pouco da verdadeira velocidade: contracampo em Newman que não está mais aparecendo: "Você vai me ajudar?" Ela vai ajudá-lo, não porque o roteiro exige isso, mas porque nós fomos colocados no lugar dela (pela mise en scène) e ela no nosso, e porque o desejo de que ela o ajude foi inscrito no filme. Coisas velhas mas existentes, pelo amor de Deus!
O exemplo do filme de Lumet, uns dias atrás (“Você vai me ajudar?”) soma tudo isso. É impuro ( ou pouco refinado) mas suficiente. O plano de Newman – de um Newman que pede ajuda e pede duas vezes: para o outro personagem (off) e a mim que – por um instante – fui capaz de me colocar no filme no lugar desse personagem ausente da imagem. E ele será ajudado duas vezes: no roteiro e por mim (neste momento, eu aceito seguir com o filme, e então fazê-lo funcionar).
Notas:
1.O termo proxêmico foi cunhado pelo antropologista Edward T. Hall em 1966. Consiste no estudo de distâncias mensuráveis entre as pessoas à medida em que interagem. “Como a gravidade, a influência recíproca entre dois corpos é inversamente proporcional, não apenas ao quadrado de sua distância mas até possivelmente ao cubo da mesma”.
2.Paráfrase da expressão clássica em francês Noblesse oblige ( Nobreza exige, ou obriga), referindo-se a regras fundamentais e imprescindíveis de etiqueta. No caso, de perversão.
Traduzido do livro L'exercise a eté profitable, monsieur. Tradução original do francês para o inglês por Laurent Kretzschmar.
Traduzido do inglês para o português por Luan Gonsales.
Revisão e notas: Luiz Soares Júnior.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Quando das atualizações deste blog, deixarei anúncio, além do meu blog, no twitter:

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O festim da aranha, Jean Narboni

É impossível falar de Bergman sem um mal-estar cuja causa essencial é esta: objeto de falatórios inumeráveis, animados tanto pela admiração quanto pelo ódio, este autor parece-nos hoje em dia “sem perigo”. Se a urgência e necessidade de uma obra concernem aos novos sentidos que libera ou desnuda, além das questões que suscitam as questões desta obra, convenhamos que a obra de Bergman esteve submetida por um bom tempo a um movimento de neutralização: ou se contentaram de repercutir suas interrogações com um eco respeitoso, ou tentaram nelas infiltrar – mal tinham sido formuladas- a figura reconfortante de uma resposta, mesmo que de desespero.Ora, os filmes de Bergman- nisto, são de uma absoluta modernidade- não são mais assombrados pela questão: “do que se fala?” mas por esta: “quem fala?”, ou mesmo esta, que não se pode igualmente descartar: “quem escuta?”

No final de Prisão, um metteur-en-scéne se recusava a fazer um filme sobre o Inferno, pois o silêncio daquele a quem deveríamos colocar as questões implicariam- segundo ele- na inutilidade do projeto: ignorante de que toda questão encontra sua resposta- mesmo que esta consista num devorador silêncio-, e que deste silêncio Bergman iria fazer seu tema essencial. Se desde este filme o autor introduz o cinema no cinema, como fará mais tarde com a música e o teatro, não nos enganemos: é para se interrogar sobre a Arte em suas interferências para com a vida, sua função, seus efeitos ou suas figuras, mas não ainda sobre seu ser, que é a via na qual Bergman se coloca hoje.
A criação artística sempre se manifestou para mim como uma fome(...). Agora, nestes últimos tempos, em que ela tendeu a se apaziguar e a se transformar em outra coisa, experimento a imperiosa necessidade de buscar a razão de minha atividade artística. “ Deveríamos aproximar esta declaração de Bergman ( Cahiers du Cinema, 188, A pele da serpente) de outra, muito próxima desta, de Jean Renoir: “ Acho que num filme não deve haver nada de passivo. Um único personagem deve ser passivo e sofrer tudo, deve ser uma boca engolindo tudo, um estômago ingerindo tudo, é o autor do filme. Mas todos os elementos que ele absorve devem ser ativos: o cenário, os personagens, tudo isso tem de ser vivo; ou seja, é preciso “nos fazermos de mortos”- não, não de mortos, de adormecidos: abre-se largamente a boca, e absorvemos tudo, não é?, e depois digerimos, o devolvemos de uma outra forma...” ( Cahiers 186).
Não se trata de estabelecer aqui uma comparação entre Bergman e Renoir, e muito menos de constituir numa oposição no modo através do qual, enquanto autores, eles se comportam em relação às suas opiniões sobre a criação como “ato de devorar”. Trata-se apenas de indicar que, numa frase na declaração do segundo, se vê precisada a opinião do primeiro: “é preciso nos fazermos de mortos- não de mortos, de adormecidos”. Proposição capital, pela qual se explica a démarche dos últimos filmes de Bergman. A trilogia, Toutes ses femmes e Persona constituem, com efeito, uma das interrogações mais radicais às quais um autor de filmes se submeteu e submeteu sua arte, e aqui ainda, como em outros pontos que não nos cabe evocar agora, o parentesco entre Bergman e Godard aparece-nos de forma marcante. A má consciência do artista se exprime em agir por “desapropriação”, escamoteamento do outro, roubo de sua substância e assimilação da mesma à do artista. Mas esta avidez não demanda nenhum esforço para ser satisfeita. O artista não é mostrado perseguindo suas presas, mas “se fazendo” de morto, de adormecido, ou mesmo em silêncio; camuflado, invisível ou desapercebido, falsamente ausente, para que suas criaturas venham até ele. Ele dispõe, em relação a elas, de um espaço de retração, uma zona de atração ou imantação; suas criaturas, quando ultrapassam a fronteira, estão aprisionadas, submetidas ao mecanismo e insensivelmente conduzidas até ele, reduzidas a não serem nada além da etapa última e central de sua construção.

A teia da aranha figura bem adequadamente o jogo e a configuração de semelhante armadilha. Desde esta etapa decisiva, segundo vimos, que constitui para ele Prisão, Bergman vai se referir a isso: dois personagens projetam num sótão um slapstick 1 de solavancos, onde vemos um esqueleto que pula de um cofre e um homem despertado por um ladrão, além de uma imensa aranha suspensa por um fio. Slapstick que vai ressurgir no início e no fim de Persona ( os planos não são exatamente os mesmos, mas semelhantes os personagens, como se tratasse de um “remake”, ou de rushes ulteriores, utilizadas do primeiro). A etapa intermediária desta metáfora aracnídea é constituída por Através de um espelho, com este Deus aranha vampiresco, com o qual Karen se assusta ( vemos aí se sucederem uma cadeia de substituições, onde figuram alternadamente ,e às vezes ao mesmo tempo, o pai, o artista e o nome da divindade). Quanto a Todas estas mulheres, longe de ser um filme aberrante ou marginal na obra de Bergman, inscreve-se abertamente na linha deste pequeno filme: aparentam-se com efeito seus movimentos dissonantes e sua coreografia cadenciada , certa jovialidade pessimista, o excesso e a estilização de suas figuras. Os conjuntos e os tableaux que as criaturas que evoluem retomam periodicamente em torno do caixão do professor evocam estes movimentos de auto-expiação aos quais finalmente consentem em obedecer, e que precipitam os sobressaltos falsamente libertadores das vítimas que participam da armadilha do professor.
Demarcar esta gravitação esbaforida em torno de um silêncio, de uma ou várias vítimas na iminência de serem tragadas pela danação, este é o propósito de Bergman a partir daí ( Persona é o filme que propriamente destila a impressão da queda final no abismo).A reação de Karen, ao descobrir no diário de seu pai que ele não pode se impedir de observar com interesse a deterioração de seu psiquismo é um esboço en mineur do movimento de ruptura que afeta Persona no momento em que Alma se apercebe de que a atriz, protegida por seu silêncio, a vigia e se deleita com seu tormento. Estes casamentos perigosos, estes transbordamentos do ser, estes jorros de palavras duras, indispensáveis à sobrevivência do Outro ligam ( raccordent) os filmes de Bergman ao tema do vampirismo. Um silêncio absorve e reabsorve uma palavra através da qual o Outro se esvazia e se rompe, ao entregar-se. Não nos espantemos enfim ao ver se operarem estranhas interferências entre o vampirismo e o cristianismo. Em Bergman, Deus é o vampiro supremo, aquele que disseminou seu sangue, sua substância, mas sobretudo que espalhou sua palavra pelo mundo, distribuiu seus germes nocivos em um movimento de ilusória generosidade, cujo poder se reativa durante a comunhão, quando os fiéis absorvem seu corpo e seu sangue. Mesmo assim, este estado de possessão do crente ( ou tomada de posse: prise de possession) não é o mais pernicioso. O verdadeiro horror acontece quando a divindade silencia, e as vítimas contaminadas não reencontram mais seu sabor, quando se faz sentir a ausência e a privação que conduzem os fiéis à busca de seu mestre e senhor, a segui-lo em sua retração, a se perderem em sua cripta de proteção e de recuo. Ainda mais que na alusão ao Deus-aranha de Através de um espelho, ou no abandono desolador de Os comungantes, a fulgurância do plano da crucificação da mão, no começo de Persona, conjuga os dois grandes temas mortais de sua obra.


É preciso retomarmos sempre uma mise en garde2 , no sentido de que se não tomemos o que ficou aqui descrito por um catálogo ou inventário de temas e obsessões no aprofundamento dos quais Bergman se empenharia hoje. Se fosse apenas assim- se a vertigem da queda, a ausência, a perda e a dissipação fossem os únicos temas a serem evocados a propósito de seus filmes- ,e se mesmo se, assim sendo considerados, eles não participassem intimamente da matéria da narrativa, tanto quanto da própria, correríamos o risco de fazer Bergman recair sob a reputação desagradável de “cineasta de idéias”. Ora, Bergman se coloca contra este clichê exatamente na medida em que as forças da “desapropriação autoral” afetam estruturalmente seus últimos filmes. Não que se manifeste neles uma abstração cada vez mais marcada, este ressecamente e gosto por agenciamentos matemáticos através dos quais uma convenção deseja que se reconheça um autor que chegou à maturidade. Não percebemos, do primeiro ao último filme, nenhum desperdício importante de conteúdo, nenhuma “desencarnação” em proveito de uma ordem estritamente relacional das figuras ou de uma acuidade gráfica: pensemos, neste sentido, na presença plena e opressora dos corpos, no calor e na umidade de O silêncio, ou na acumulação de incômodos e de entraves físicos que atormentam os personagens de Os comungantes ( Luz de inverno). Parece-me apenas que o espaço e a luz onde se dispõem os corpos sofreu uma mudança. Como se um universo esférico, denso e saturado, estreitado sobre sua plenitude e seu peso tivesse pouco a pouco sido submetido à forças de disjunção, eriçado de lacunas, esvaziado, penetrado por um poder de dissolução, disposto em uma espécie de concavidade voltada para nós, tomado em um movimento de arruinamento que teria conservado intacta uma única plataforma, sobre a qual as criaturas se disporiam como fantasmas. Fantasmas agitando-se no precipício da obra e designando como obra- como o tema e o próprio perigo da obra- esta zona branca onde os personagens não mais existem. Por longo tempo mantidos no limiar dos filmes, as forças silenciosas e o poder de gerar o vazio foram insidiosamente deslizando na própria textura da obra, dissipando os seus volumes, borrando seus contornos, tornando menos nítidos os seus relevos e menos precisas suas fronteiras.

Concebemos então que os filmes cuja proposta está em jogar com o risco destas ameaças escapam à certeza psicológica, , e que os próprios filmes sofrem esta “regressão” que ocupa em sua totalidade a obra de Bergman. O silêncio, o mutismo, não são mais acordados a algum personagem em particular. A cadeia metafórica onde se alternam as figuras do pai, de Deus e do artista não admite mais nenhum destes três termos como autoridade superior ( durante um longo tempo, acreditou-se que a figura divina, ou sua ausência, fossem a instância suprema da obra bergmaniana e sua transcendência). Nenhuma precedência é mais acordada a um dos termos sobre outro, cada termo aparecendo como um acidente passageiro ou a figuração momentânea de um poder mais profundo, neutro, impessoal, indiferenciado.

Se em O Rosto, o ilusionista Vogler ( nome que é o mesmo de Elizabeth em Persona) cultivava o silêncio, era, confessava ele ao fim do filme, por não estar seguro de seus poderes de mágico. Desde então, o silêncio em Bergman não é mais designado como um poder, um atributo do qual qualquer um disporia a seu bom grado; agora, ele excede a decisão e a escolha, torna-se este poder através do qual aquele que é por ele afetado sofreria o mesmo grau de soterramento espiritual e regressão que o silêncio provocara no Outro.A força de apelo e de retirada ( retrait) 3 submete à sua lei tanto aquele que padece da mudez quanto aquele que fala diante dele. A atitude da atriz em Persona não se motiva. As explicações , tanto do médico- que evita se identificar com as opiniões de um meio medíocre- quanto de Alma, ditada pelo orgulho, são do domínio da psicologismo. E esta não é a armadilha menor deste filme- simular o silêncio de Elizabeth como algo advindo por vontade própria dela, silêncio decidido e guardado, acontecido, palavra bloqueada-, depois reduzir a nada esta interpretação, revelando este silêncio como aquele que não se pode guardar( deter a guarda), que escapa e submerge, fusiona por todas as partes, silêncio em direção ao qual remontamos como à fonte culminante de toda linguagem, silêncio anterior à toda palavra.

Refiramo-nos aqui a um texto de Bergman onde ele conta o terror que lhe causava, quando era vítima de uma doença infantil, uma cortina que balançava. ( O que é fazer filmes?, Cahiers du cinéma, número 61, p.16): “ Era uma cortina preta, dessas mais comuns mesmo, que eu via no meu quarto de criança, na aurora ou ao crepúsculo, quando tudo adquire vida e se torna um pouco assustador... Era sobre a superfície que as coisas se encontravam: nem homens bons, nem animais, nem cabeças, nem rostos, mas coisas para as quais não existia nome!...Elas eram implacáveis, impassíveis e assustadoras...”
É na tentativa de reencontrar estas formas inomináveis, esta indistinção originária onde se reabsorvem todos as figuras que o autor se esforça hoje. Lugar aterrorizante, núcleo onde se desfazem as significações, zona de a-simbolização primária. O sem-figura, o sem-rosto, falando propriamente o inqualificável. Indiferenciação primitiva que não constitui o retorno à unidade- onde tudo viria a se resolver e se apascentar, na plenitude do Único-, mas o sem-coerência, sem-certeza. As horas que afetam Bergman, aurora e crepúsculo, são- além das propícias à formação e à dissolução dos vampiros-, as horas onde ainda não se efetuou a divisão das luzes, onde ao mesmo tempo o dia cai e a noite ascende.
Ao fim, restaria apenas, para a compleição do processo, tender à própria dissolução. Trabalho côncavo que se efetua em muitas regiões em Persona: inscrição do filme em uma projeção de filme,” invagination” 4 da narrativa em si mesma ( o campo-contracampo já célebre onde o mesmo texto se encontra escutado por aquela que fala e dito por aquela a quem este se dirige), ameaça de interrupção marcada pela “queimadura” da película no exato momento de seu desenrolar, a obra esboçando nesta inscrição o movimento de se abismar em sua própria fissura. Momentos onde se confirma a relação direta de Bergman a Murnau como cineasta do horror, mas cineasta onde a obra se destinaria a tornar-se o próprio horror.


Jean Narboni, Le festin de l’araignée, Cahiers du Cinéma, 193, setembro 1967
Tradução: Luiz Soares Júnior

Notas do tradutor:

1. Slapstick: Tipo de comédia, muito comum no cinema mudo, envolvendo ações tresloucadas e intensa violência física. Mack Senett, Fatty Arbuckle e The Keystone Cops foram alguns de seus representantes mais famosos ( e mais esquecidos hoje).

2. Pôr-se em guarda contra, defender-se de.

3. Retrait: a palavra é usada aqui no sentido de uma metáfora que indica o poder movediço, de “retirada de cena” que a força superior exerce sobre o personagem, como se este tivesse sido “sugado” para o interior da cripta do vampiro, para fora do campo – o caráter sinistro da expressão e a analogia com filmes de terror não me parecem casuais- por uma força misteriosa, e sobretudo silenciosa, irrepresentável. Qualquer analogia igualmente com a pulsão de morte freudiana também não me parece mera coincidência.

4. Invagnation: Em português: intussuscepção. Termo médico que designa a incorporação de um segmento do intestino numa região mais profunda do mesmo. No caso, a narrativa incorpora ( ou deglute) a si mesma, em Persona.

As lixeiras verdes de Gilles Deleuze, Por Luc Moullet

Com frequência, nas provas de meus alunos na Universidade de Paris III, encontrei referências a um certo Gilles Deleuze. Intrigado, fui à biblioteca municipal mais próxima, onde tomei emprestadas as duas obras deste autor consagradas ao cinema.

A imagem-movimento e a imagem-tempo...Eu pensava que leria no primeiro volume estudos sobre Renoir ( o balé dos personagens na Regra do jogo ou em Carruagem de ouro), sobre Ophuls, Mizoguchi, Fuller ou Téchiné, e no segundo uma análise da arte de Stroheim, Ford, Duras, Pagnol, Rozier, Leone, os grandes mestres do tempo. Bem, nada disso. Ocorreu até mesmo o contrário do que eu esperava. Ophuls só é citado na Imagem-tempo, e Stroheim apenas na Imagem-movimento. Pagnol, Rozier, Leone são totalmente esquecidos.

É que, para Deleuze, o movimento não é o movimento, e o tempo- de forma menos agressiva, no entanto- não é exatamente o tempo. A imagem-movimento seria “um conjunto acentrado de elementos variáveis que agem e reagem uns sobre os outros ( p.291), o jogo que conduz uns aos outros. Sob esta perspectiva, poderíamos sustentar que Apotheosis, de Yoko Ono, feito de um único plano seqüência, um perpétuo travelling vertical, não é imagem-movimento, mas imagem-tempo ( voltarei mais tarde nisso aí). Ok. Esta definição talvez ficasse mais clara se Deleuze tivesse falado de movimento dialético.
Na página 291, Deleuze enumera várias categorias de imagem-movimento, , notadamente a imagem-percepção ( “conjunto de elementos que agem sobre um centro”) e a imagem-ação ( “reação do centro ao conjunto”). É no mínimo curioso que estas variedades da imagem-movimento se refiram a um centro, já que Deleuze define a imagem-movimento como um conjunto descentrado. Tenho dificuldade em entender isso...

Deleuze nos propõe um exemplo preciso de imagem-percepção: no Broken lullaby, Lubitsch mostra um grupo de homens, de pé, vistos à altura do chão, a câmera colocada “sob a perna que falta de um inválido”, igualmente de pé. Eis um enquadramento que parece totalmente gratuito. Mas o plano seguinte revela que se trata do ponto de vista de um cul-de-jatte 1. O que tomáramos por um simples maneirismo era na verdade a visão subjetiva de um indivíduo. Há aí um movimento na narração e na consciência do espectador que nos permite chegar a esta conclusão.

A imagem-afecção, segunda variedade da imagem-movimento, “é o que ocupa o intervalo entre uma ação e uma reação, o que absorve uma ação exterior e reage internamente”. Primeiro exemplo: o close de um rosto, reflexivo ( em que você está pensando?) ou intensivo ( o que você está sentindo?). É verdade que, com frequência, o close mostra uma reação do rosto ao que se passara no plano precedente, geralmente mais amplo, mas esta constitui uma técnica vulgar, primária mesmo ( que pode dar resultados magníficos, mas que foi super explorada por todos os cineastas tarefeiros). Portanto, não se pode escrever que o close constitui um intervalo entre uma ação e uma reação, já que ele próprio é a reação, contém em si mesmo a reação, que se situa aliás quase sempre no início do plano.
E limitar o close a este valor de resposta para uma ação ( o que é estudado por Deleuze ao longo e ao largo de vinte e cinco páginas) leva a mascarar de forma muito redutora os outros usos, mais inovadores e criativos, do close, aqui omitidos: se um filme começa pelo close, ou constitui-se em uma série de closes, como no húngaro Princesa ou na Jonana D’arc do Dreyer, não se trata forçosamente de uma “seqüência” à ação, ou da absorção de uma ação exterior. Mais de cem fotogramas de Gérard Courant ( únicos closes-sequências de rostos) são sem referência a uma ação prévia ou exterior. Tampouco quando uma personagem em close come, escova os dentes, morde seu vizinho ou faz um gesto zombeteiro pra platéia. Neste último caso, é inclusive a ação que provoca a reação, o exato inverso do que afirma Deleuze, contradito também pelo close pillow-shot ou plano de corte, ou a sequência lírica de closes breves, mais ou menos idênticos, ou mesmo o plano de um homem que recebe uma bofetada no campo: neste caso, o intervalo entre a ação e a reação é imperceptível, da ordem de vigésimos de segundos. E aqui a ação não é de forma alguma exterior.

Estes dois modos de dialética presumida, que Deleuze completa pelo estudo do par sombra-luz, se fundam sobre uma certa especificidade do cinema, ligada à sua gramática, à sua técnica ( découpage, close, flou, iluminação). Ora, é bem evidente que as linhas dialéticas, no cinema, ultrapassam estas especificidades. É justamente por isso que Deleuze inclui uma terceira forma de imagem-movimento, dita imagem-ação que, ao que me parece, não tem nada a ver com a definição popular de ação no cinema. Trata-se de uma dialética entre o indivíduo e a sociedade, o detalhe e a totalidade, a ação particular e a situação geral. Quando o cineasta parte do indivíduo para atingir a sociedade, chama-se “pequena forma” ( Lubitsch seria o mestre nisso), e quando dá-se o contrário, a “grande forma”: assim, as superproduções de Cecil B. DeMille. A distinção é às vezes meio ociosa: se Male and female ( DeMille, 1919) começa por planos bem gerais ( o céu, o mar, o canyon do Colorado, uma citação da Gênese), chegamos em trinta segundos à vassoura, ao balaio e ao balde d’água,e permanecemos mais ou menos nesse nível durante o resto do filme, salvo- no meio- quando do episódio babilônico. Teoricamente, trata-se da grande forma, mas este começo fanfarrão é tão breve...é o mesmo problema no caso de vários filmes americanos, que começam por apresentar de forma breve uma cidade ( Beyond the forest, Pride of the marines, The seven year itch) antes de se ligarem definitivamente a um itinerário individual. As idas e vindas do particular ao geral se emaranham, se invertem freqüentemente, e desemaranhar a pequena da grande forma muitas vezes equivale a recair na velha questão da prioridade do ovo sobre a galinha.
Neste catálogo de movimentos dialéticos, vamos constatar um número de notáveis esquecimentos, quer sejam as dialéticas fundadas sobre técnicas do trabalho, overplay e underplay ( Kazan), visível-invisível ( Tourneur), gênero e não-gênero ( Monte Hellman), sobre noções mais vastas, como natureza e cultura ( Boudu), cidade e campo ( Vidor), lentidão e velocidade ( Rising of the moon, Ford), risos e lágrimas ( Chaplin), trivialidade e sublime ( Godard), lógica e absurdo( Hawks, Buñuel), amor e ação ( o cinema hollywoodiano), ou sobre valores ideológicos, nacionalidades e classes sociais ( A grande ilusão), racismo e tolerância ( La derniére chasse), eficácia e justiça ( Marca da maldade), isso sem falar das dialéticas medíocres ( os bons e os maus, a fuga pro México ou a prisão) que atravancam a maior parte das telas. Algumas destas categorias ao menos poderiam ter sido objeto de menção neste díptico de vastidão enciclopédia.

Ao invés disso, espremida entre a imagem-afecção e a imagem-ação, Deleuze introduz uma nova categoria, a imagem-pulsão, que cai aí como um cabelo na sopa. A pulsão, segundo Deleuze, seria ligada ao naturalismo, onde o movimento se criaria na passagem do homem ao animal ( o que nos prova bem que Deleuze não dispensa sistematicamente as dialéticas com fundamento extra-fílmico, e que se livra delas quando bem quer, aliás).
A história toda é um pouco dura de engolir, sobretudo pelo fato de que o “animal” ( no naturalismo) é com frequência colocado desde o começo do filme ( Foolish wives, Manèges de Allégret), e não é portanto o resultado de um movimento visível. De fato, pulsão e naturalismo seriam antes dois pólos antagônicos, pois a pulsão, frequentemente pulsão de um personagem que reflete a do realizador, está muito distante do princípio do naturalismo ( a realidade deve ser descrita sem alguma interpretação, devida ao espírito do autor). Calor da pulsão, frieza do naturalismo.
Os exemplos dados por Deleuze deixam o leitor estupefato. Poderíamos crer que Deleuze, a propósito do naturalismo, citaria os filmes do Kammerspiel, o Rail, a Noite de São Silvestre, a Última gargalhada, a Rua sem alegria, Um homem anda pela cidade de Pagliero ou Manéges, ou os Renoir como On purge bébé, A cadela ou Boudu, Umberto D., Honeymoon killers de Kastle. Bem, nada disso. O naturalismo seriam Vidor, Ray, Losey, Fuller. Todos, é verdade, muito dependentes de suas pulsões. Mas que autor se distancia mais do naturalismo que Vidor? Apenas The crowd e, em certa medida, Cenas da rua poderiam ser classificados como filmes, digamos, realistas. Podemos dizer de Vidor que ele é romântico, lírico, delirante, expressivo, idealista, assim como Gance e Dovjenko, a quem o comparam sempre. Mas o mundo de Ruby Gentry, de Fountainhead, de Hallelujah, da Grande parada é totalmente irrealista, surrealista mesmo. O cúmulo é que Deleuze qualifica seu Duelo ao sol de “western naturalista”, quando se trata do sumo do artifício hollywoodiano , da loucura romântica wagner-nietzscheana. No Jornada tétrica de Ray, que Deleuze descreve como uma “obra-prima do naturalismo”, a paisagem tem uma grande importância ( assim como no Duelo ao sol), então nos damos ao direito de achar que Deleuze cometeu um erro crasso, digno de um colegial, algo que julgávamos inadmissível de sua parte. Ele confundiu o naturalismo à la Zola, onde a arte deve reproduzir a natureza em todos os seus aspectos, mesmo os mais feios e repulsivos, com o trabalho do naturalista, que estuda plantas, minerais e animais. Devido à pobreza da língua francesa, um convite a isso, ele pôs no mesmo saco Emile Zola e Bernardin de Saint-Pierre, Huysmans e Buffon: era de se esperar...Não há outra explicação: o barroco do bordel no Jornada tétrica, a truculência de Gueule-de-Cotton que, agonizante, chama os urubus: “Vinde a mim, sou gordo e roliço”, se junta ao hénaurme 2 de Jarry, Hugo, Rabelais ou Céline, e não tem nada a ver com o escalpelo de Zola. Ray testemunha um lirismo que exprime conivência até mesmo com seus personagens mais negativos. Outros supostos nomes do naturalismo, Fuller ( que não recua diante de nenhuma inverossimilhança, e realizou o filme mais louco de todos, Shock corridor, com um negro que milita pela Ku Klux Kan) e Joseph Losey...
Poderíamos, em um certo limite, aceitar o epíteto realista no caso de filmes como The big night, the lawless ou Imbarco a mezzanotte( realistas no mesmo sentido que centena de filmes americanos ou italianos um pouco “medíocres”), filmes que Deleuze não cita. Em revanche, os exemplos que evoca, Time without pity, Secret ceremony, Eva, The damned, Mr. Klein, The servant, não tem nada de realmente realistas, ainda menos naturalistas. Os dois últimos são fábulas, e os outros se ligam ( assim como seus personagens) a um frenesi neurótico totalmente irrealista.
“Não há poucas diferenças entre o naturalismo de Stroheim e de Buñuel”, avança Deleuze ( página 183),que precisa que a diferença entre Stroheim e Buñuel seria concebida não tanto como entropia acelerada, mas sim como repetição precipitante, eterno retorno”. O problema é que, em Buñuel, há naturalismo e repetição, ok, mas os dois jamais estão ligados: o naturalismo pertence à primeira parte da obra ( Las Hurdes, Los olvidados, El bruto, mesmo Suzana e o Diário de uma camareira), em uma época em que Buñuel não possuía muitos meios, e poderia dificilmente filmar algo que não fosse a realidade. Este naturalismo recusa frontalmente a repetição, que vai dominar em sua obra nos anos finais, melhor dotados financeiramente ( O anjo exterminador, Belle de jour, O discreto charme da burguesia, Este obscuro objeto de desejo), e que expulsará de sua órbita todo naturalismo. Há, claro, aqui e ali, evocações breves de perversões sexuais, a presença dos W.-C, vestígios do naturalismo, mas que ora são tratados como elementos oníricos ou irônicos, ora possuem um status incerto e indefinível, uma terra de ninguém que permanece também totalmente alheia ao naturalismo.
Portanto, não vou me demorar mais tempo nesta imagem-pulsão, de longe o pior capítulo do díptico deleuziano; partirei para a imagem-tempo...


Até aqui Deleuze tinha se esforçado para dar definições de seus neologismos, mas ele não consegue precisar em que consiste a imagem-tempo. Ele define o tempo ( páginas 49 e 50 do tomo 1) em ocasiões “como intervalo” - mas Deleuze não se demora nesse intervalo no cadre da imagem-tempo. Antes assim!, pois este intervalo parece-se muito com o intervalo da imagem-movimento, e sobretudo da imagem-afecção. Ou então define o tempo “como tudo”, ou seja, os dois extremos, o dia e a noite. A imagem tempo me lembra essas lixeiras verdes onde, no meio dos compartimentos azuis para os jornais velhos, compartimentos amarelos para as embalagens e brancos para garrafas, enfiamos todo o entulho que nos vem à cabeça na hora. Podemos dar da imagem-tempo uma definição negativa: é tudo o que não é imagem movimento, ou mais exatamente tudo o que não está subordinado a ela ( como está indicado na página de abertura da Imagem-tempo), o que constitui um centro, enquanto a imagem-movimento é um princípio sem centro. Da noção de centro ( intervalo), que pressupõe a existência de extremos, passa-se à noção de conjunto, de todo, que pressupõe a inexistência de elementos exteriores. E o todo seria o resultado da montagem, e constituiria também o tempo, pois é também a montagem que cria o tempo do filme. E o todo estaria em relação direta com o tempo. O todo e o tempo, aliás, combinam muito bem entre si, pois tanto um quanto o outro- ao contrário do movimento- tendem a nos escapar, e permanecem indecomponíveis e misteriosos. Sabemos quase tudo do movimento- se ligarmos este termo ( seguindo a definição clássica, e não a deleuziana) à noção de espaço-, sobretudo desde Magellan3 e Neil Armstrong4, enquanto que o tempo passado é cheio de obscuridades, e sempre permaneceremos ignorantes em relação ao tempo futuro, o tempo – é certo!- que nos matará.
Curioso amálgama esta aliança centro-todo-montagem-tempo... Deleuze se vira por meio de astúcias. “Eisenstein não cessa de nos lembrar que a montagem é o Todo do filme, sua Idéia”. Mas é Eisenstein quem o diz. Ok, é um cara genial, mas em que isto implica que ele tem necessariamente razão? Podemos sustentar que a montagem talvez fosse “tudo” para ele ( como também para Godard, Resnais e talvez Welles); mas não seria forçosamente “tudo” para os outros, para seus detratores, nem mesmo para ele, Eisenstein: seu último filme, Ivã, o Terrível, é uma obra-prima onde há um mínimo trabalho de montagem. Talvez esta idéia da Montagem identificada ao Todo fosse uma idéia de juventude de Eisenstein, que ele teria abandonado ao fim da vida, e que teria nascido do fato fortuito de que, no começo de sua carreira, com os racionamentos na Rússia da época, ele só dispusesse de pequenos pedaços de película.

Quanto aos outros... Aos nossos amores de Pialat permanece um imenso filme, embora seja mal estruturado, mal decupado e, portanto ( quase forçosamente) mal montado ( nesse sentido, como separar – a não ser em relação ao documentário e ao filme improvisado- o que pertence à montagem e ao découpage? Os Oscars e Césars de montagem sempre me deram vontade de rir...). Em certos cineastas minuciosos ( tipo René Clair), o todo é mais o découpage que a montagem, e este é terminado antes mesmo da filmagem. Para uma série de grandes cineastas, o todo está antes nos atores do que na montagem ( assim, o caso de certos filmes de Doillon, Cukor, Ray ou Renoir, que era provavelmente o maior de todos, mas que não era um montador muito bom). Ganância, Soberba, A mulher na praia ( e também Que viva o México!) atingem os mais altos níveis de cinema, mesmo que seus autores não tenham podido controlar a montagem e tenham renegado a versão montada. E que dizer da montagem no filme com plano único ou em plano seqüência, tipo Jancso?

Ok, quase sempre é a montagem que cria o tempo do filme ( quando não se trata do plano seqüência ou do fluxo do plano curto), mas este tempo criado é o tempo no sentido de tempo, de ritmo, de duração, de respiração, mas quase nunca – ao contrário do que pretende Deleuze- o tempo no sentido de uma oposição presente-passado, flashback ou flash-forward. Jogando 5 com as palavras, como é seu hábito, Deleuze coloca esta tempo sob as sub-categorias da imagem-tempo.A relação presente-passado, quase sempre prevista no roteiro ( DeMille, Godard, Intolerância, As três luzes de Lang, François Ier) participa quase sempre de uma dialética: trata-se da imagem-movimento( com exceção de certos filmes de Resnais).

Apercebemo-nos que a imagem-tempo, tal como concebida por Deleuze, só existe muito raramente, e com freqüência não onde ele a situa. Hegel nos dizia que tudo era dialética, e portanto movimento. Às vezes, quando não percebemos o movimento dialético, é que ele se mostra de forma muito sutil, muito sub-repticiamente dissimulada. É o caso quando o diretor é genial. Filmes como La choette aveugle ( Ruiz, 1987) Puissance de la parole ( Godard, 1988) parecem à primeira vista magmas ( termo mais conveniente que o de imagem-tempo), mas um esforço de análise acaba por precisamente esclarecer as linhas desta dialética. Exagerando um pouco, eu diria que a existência da imagem-tempo não passa de um atestado das insuficiências do espectador, da minha portanto. Não há imagem-tempo na equação espaço-tempo ( com a exceção de Resnais) ou no neo-realismo, que Deleuze descreve erradamente como o preâmbulo da imagem-tempo. Segundo ele, o neo-realismo seria a “irrupção de imagens puramente óticas e sonoras ( tomo 2, pg. 9), como para um documentário bruto. Ora, na verdade, se o neo-realismo, evocando o magma bruto da realidade, oferece certas características do documentário, ele as perverte pela existência de um roteiro, pela música, pela intrusão de personagens principais, pelo sentido social, pelo pathos. O primeiro tema do neo-realismo é a relação do indivíduo com o mundo, do homem com a sociedade, é portanto a imagem-ação no sentido deleuziano, assim como o filme americano clássico. Com exceção do raro caso em que não haja um personagem principal, a identificação é soberana ( nos identificamos com o ladrão de bicicleta e com a criança). E o mesmo Ladrão, pela composição de uma luminosa atmosfera, que reflete o mood dos personagens, não está tão longe assim do expressionismo estudado na imagem-afecção. O indivíduo ( ou o casal) que se sente estrangeiro ao mundo mostrado, que luta contra ele, esquema típico do cinema-ação, nós o reencontramos em Viagem a Itália,Europa 51, Stromboli ( Deleuze tinha previsto esta objeção, mas se sai dessa enrascada por meio de uma pirueta: com os Bergman-Rossellinis, trata-se de um “cinema de clarividente”, e não mais de ação. Nova categoria a inserir na imagem-tempo, o cinema do clarividente... Mas Mr. Smith e Mr. Deeds são também clarividentes, e eles estão no meio do cinema da imagem-ação...), Alemanha ano zero, Roma, cidade aberta, Ladrão de bicicletas. O neo-realismo descrito por Deleuze é um neo-realismo idealizado, tal como deveria ser, tal como jamais existiu. Talvez haja exceções, o Umberto D... em minha opinião, a única verdadeira exceção se situa em 1968, no período posterior ao neo-realismo, com Fuoco de Baldi, magma fundado sobre a pulsão e aparentemente desprovido de dialética.

Deleuze- o delusivo 6 Deleuze- dá às palavras significações que não tem nada a ver com as significações correntes. Ok. Mas o hic é que, no calor do discurso, ele re-introduz estas palavras com seu sentido corrente e assim conforta suas teses, assegurado da aprovação do leitor, que vai coincidir plenamente com as reaparições “aliviantes” da palavra em seu sentido banal. Se seguirmos a lógica deleuziana, seríamos levados a reconhecer que Ladrão de bicicleta e Viagem a Itália permanecem perfeitos exemplos de imagem-ação. Mas como há pouca ação nestes fIlmes, podemos aceitar mais facilmente a exclusão dos mesmos desta categoria. Da mesma forma, seríamos tentados a incluir os Dez mandamentos de 1956 na grande forma do cinema-ação, por ser um filme caríssimo e espetacular. Mas a grande forma, isto é, a passagem do geral ao individual, inexiste neste filme, pois Moisés não possui um comportamento que o individualize e permanece o perfeito autômato a serviço do Deus cristão. Como o filme se lambuza no geral, sem jamais dele sair, poderíamos sustentar que não se trata de imagem-ação, mas de imagem-tempo, com este magma típico das altas esferas do dogma religioso convencional e da estilística sulpiciana 7. Não vou aliás tão longe, pois este querido filme se funda sobre uma linha dialética muito pobre: o Deus cristão contra o Deus egípcio. Mas eu sustento vigorosamente que um filme recheado de ação como A guerra do fogo, precisamente por não ser nada além de ação, não pertence à imagem-ação ( pela falta de uma dialética entre a ação particular e a situação geral),e ainda menos trata-se de um filme da grande forma; trata-se de um filme da imagem-tempo, pois eu o sinto como um magma puro.E finalmente, um dos melhores exemplos do cinema-ação da grande forma é, não uma superprodução, mas um filme relativamente pobre, Jeux interdits, com quinze minutos de guerra violentíssima em seu começo, e em seguida o itinerário íntimo de duas crianças.

Outra vez Deleuze troca as bolas com suas definições contraditórias. Vimos isto com a dialética passado-presente, classificada de forma abusiva na imagem-tempo ( quando esta dialética é frequentemente da ordem do movimento); e o duo naturalismo-naturalista, Paul, Emile ( Zola) e Virginie. Ou ainda, quando ele fala da crise da imagem-ação, refere-se unicamente ao cinema americano, por ser um cinema fundado sobre a ação. Ao invés de falar em imagem-movimento e imagem-tempo, seria melhor falarmos, por exemplo, de nelbugoz e de dagmalouak, isto teria lhe poupado muitas contradições...
Ele dedica um capítulo à imagem-cristal. O cristal, para Deleuze, é o aspecto multifaces, estilo Ophuls, Dama de Shangai, a polivalência barroca. Mas pouco depois ( tomo 2. pág. 176), fala de “descrições óticas e sonoras, puras, cristalinas”. O termo cristal designa aqui portanto a pureza, a limpidez. Multifaces e limpidez: dois sentidos muito diferentes.

Ele retoma aí os jogos de palavras godardianos ( sem o humor), abusivamente transferidos da esfera artística para a filosófica, que deveria ser a de Deleuze. Da mesma forma, ele coloca a pulsão na imagem-movimento, antes de se contradizer, feliz e inconscientemente, afirmando no cadre do estudo da imagem-tempo ( tomo 2, pág. 207): “ O Todo não é mais o Logos que unifica as partes, mas a embriaguês,o pathos que as banha e se espalha por elas”. Me sinto no direito de aproximar a noção de pulsão daquela de embriaguês e pathos, e portanto de deduzir que a pulsão seria, não da imagem-movimento, mas uma forma do todo, e imagem-tempo.
Ao fim das contas, se fizéssemos um inventário das situações da imagem-tempo, poderíamos definir cinco sub-grupos:

- O todo definido pela montagem, que repousa ( o próprio Deleuze o reconhece) sobre movimentos dialéticos prévios, e que, em geral, apenas os “re-copia” de forma servil;

- o todo definido pela montagem, que se exprime pela criação de um tempo resultante de linhas dialéticas temporais ( adágio-allegro), que Deleuze estuda de forma muito apressada, também elas avalizadas pela montagem;

- o todo definido pela montagem, que se exprime pela criação de um tempo sem dialética; trata-se talvez do caso de Pagnol, Rozier, Leone, esquecidos por Deleuze, de Duras ( que ele evoca na Imagem-tempo, mas sobretudo para assinalar seus movimentos dialéticos entre som e imagem, entre voz off e voz on, sem estudar seu trabalho sobre a respiração do filme), e enfim de Stroheim ( que ele limita, por um contra-senso flagrante, ao naturalismo, sem analisar o status da duração em sua obra);

- a montagem totalizante que destrói- caso raríssimo- as veleidades dialéticas do roteiro ( Wild river);

- o todo definido pela montagem, e que exclui a dialética; entraria aqui o cinema experimental, Michael Snow, Serge Bard, Carmelo Bene, a Cicatriz interior de Garrel, a Femme du Ganges ( Duras), a Vingança de Kriemhilde ( Lang), Honeymoon killers ( Kastle), a Idade da terra ( Rocha), Jeanne au bûcher ( Rossellini) e também alguns nabos espetaculares do tipo Guerra do fogo ou superproduções americanas ( o espantoso Evil dead) que são apenas seqüências de atos violentos.

De fato, estes três últimos setores são os únicos que correspondem à imagem-tempo deleuziana, e são apenas parcialmente analisados por Deleuze, que se contenta com observações muito pertinentes sobre Snow e Bene. É preciso dizer, em sua defesa, que é difícil escrever sobre esses filmes, que oferecem uma superfície muito escorregadia, pouco propícia à glosa.
A imagem-tempo compreende, portanto, filmes ambiciosos e de qualidade- que merecem amplamente que nos debrucemos sobre eles-, mas que constituem apenas uma parte ínfima da produção de filmes interessante e uma parte ainda mais ínfima do conjunto da produção. Separar a imagem-tempo da imagem-movimento, o magma da dialética, é portanto um exercício um pouco vão ( até porque às vezes os dois se encontram no mesmo filme). Ainda mais vão me parece opô-los: é David e Golias, o pote de barro e o de ferro, o 2D e o 3D. Quer se trate do tempo ou do movimento, com centro ou sem centro, isso não vai nos levar muito longe.
Podemos nos espantar então que a Imagem-tempo contenha cem páginas a mais que a Imagem-movimento. Deleuze deve ter tido medo que seu Imagem-tempo fosse muito curto, recheou o quanto pôde o seu livro de coisas aqui e ali, em ordem aleatória, ao que parece. Os três últimos capítulos da Imagem-tempo ( pensamento, corpo e cérebro, componentes), que ultrapassam constantemente suas barreiras entre si, são os melhores ( ainda que o fio de Ariadne seja bem artificial, com classificações arbitrárias: Doillon unicamente colocado sob a rubrica corpos): aqui, Deleuze não desperdiça tinta, tentando inserir suas matérias em uma das duas grandes malhas conceituais.
Na verdade, me parece que os dois títulos estão lá porque “soam bem”, para ajudar Deleuze a vender seu peixe- um intrusivo ( e inconsciente) MacGuffin, um pouco como o título Pierrot le fou atraiu dinheiro e multidão para o filme de Godard, sem que o filme mostre uma única vez o célebre bandido homônimo. O trágico em Deleuze é que ele entulha seus capítulos injetando filmes e teses sem ligação com o assunto, mas tem uma hora que lhe dá a vontade de foder com tudo ( a repetição buñueliana no interior do naturalismo, o naturalismo no interior da pulsão...). Encher lingüiça,- vc tem de encher, se quiser cobrir a totalidade do cinema em 700 páginas-, então se cola uma única etiqueta, forçosamente equivocada, em cada um: Mizoguchi pequena forma, Ford grande forma, Vidor naturalista ( assim como há o mestre do suspense, o plano no nível tatami de Ozu, as vacas gorduchas fellinianas). Ainda a mania patológica da classificação! A razão disso também é que Deleuze quer conferir ao cinema um prestígio de que este não tem a mínima necessidade, referindo-o a seus conceitos bergsonianos. Seria antes Bergson, filósofo sem público ( e cinófobo) quem ganharia com o cinema! Mas os pensadores extra-fílmicos adoram este gênero de equação que os valoriza: há pouco tempo, um cara bizarro consagrou todo um livro para provar que Virgílio era pré-cinema, porque a escritura da Eneida evocava a de um découpage...
Vocês podem me achar muito severo em relação a Deleuze, mas é que seu verniz filosófico mascara suas qualidades. Deleuze pode ser apaixonante, vivificante, se evacuarmos suas histórias de movimento e de tempo. Deleuze é um Skorecki que se toma por Spinoza...Quanto mais o sistema é nulo, mais as percepções pontuais são excitantes, tonificantes ( não sempre, mas frequentemente).
Em primeiro lugar, é talvez o primeiro historiador do cinema que se apóia exclusivamente sobre bons filmes ou filmes ambiciosos, no presente imediato ( Syberberg, Straub, Jacquot, Eustache, Garrel) e no passado. Enquanto que Metz, Cohen-Séat, Marcel Martin e Rijon se comprazem com as nulidades. Com Deleuze, estamos sempre em boa companhia, em família. Deleuze é cinéfilo, e ama o bom cinema.
Por outro lado, ele sabe degustar, sobretudo em revistas um pouco esquecidas como a Cinématographe e Études Cinematographiques, as mais interessantes fórmulas concernentes a um filme, fazer uma síntese das melhores citações, vindas de fontes bem variadas, sobre um autor. E sobretudo, o próprio Deleuze exprime seus pontos de vista originais sobre obras, em geral bem oblíquas. Quase sempre são opiniões jogadas às cegas, em impromptus 8, mal colocadas, mal expressas e mal desenvolvidas em poucos parágrafos ( o sumário final é mais útil para seguir o pensamento de Deleuze que o próprio texto...); mas que importa...

Por exemplo, há observações que oferecem um primeiro esforço de síntese, que abrem horizontes, sobre a crise da imagem-ação na América, ligada a cinco fatores: a “situação dispersiva” (multiplicação dos personagens), “ as ligações deliberadamente frágeis”, a “forma-balada”, “ a tomada de consciência dos clichês” e “a denunciação do complot”( p.283).
Ou ainda sobre Sternberg: “A luz não tem mais nada a ver com as trevas, mas com a transparência, ou translúcido ou o branco. Portanto, os cortinados e os véus de Sternberg se distinguem profundamente dos cortinados e dos véus do expressionismo, e seus flous do chiaroescuro deste. Não mais a luta das luzes contra as trevas, mas a aventura da luz com o branco: é o anti-expressionismo de Sternberg.” ( p. 133)

Ou ainda sobre Duras versus Straub: “A primeira diferença seria que, para Duras, o ato da palavra a atingir é o amor total ou o desejo absoluto. (...). A segunda diferença consiste em uma liquidez que marca cada vez mais a imagem visual em Duras. (...). A imagem visual, à diferença dos Straub, tende a ultrapassar seus valores estratigráficos ou arqueológicos em direção a uma calma potência fluvial e marítima que representa o Eterno”.( tomo 2, p.337).

Deleuze é homem da observação pontual, da comparação ( bem godardiana) , não da teoria totalizante. A bem dizer, esta nunca deu grande coisa no domínio do cinema, com exceção da fabricada pelos cineastas em sua obra pessoal. Difícil imaginar uma teoria global da literatura. Acreditaram que poderia haver uma para o cinema por este, quando de seu nascimento, existir em um espaço muito restrito, ainda mais limitado pelas contingências econômicas. Os anos, o desenvolvimento internacional e a popularização do exercício fílmico destruíram esta ilusão totalizadora. O geral é um engodo. Apenas existe o local, o pontual. As grande teorias do cinema se limitam a ser um “Abre-te Sésamo”, uma fórmula para tudo e para nada, uma chave: a montagem interdita baziniana, a câmera-caneta de Astruc, o travelling como questão de moral
( Godard), a dialética Ageliana do cinema como oferta( oblatif) 9 ou como captura ( capitatif), o cinema de prosa e o cinema de poesia pasoliniano, o olhar à altura do olho hawksiano, o cinema-emoção fulleriano- ou como dizia Auriol, “o cinema é a arte de fazer belas coisas a belas mulheres”.
Luc Moullet, La Lettre du cinéma número 15, automne 2000).
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Notas do tradutor:
1. cu de bacia: Homem que teve ambas as pernas amputadas.
2. Deformação irônica da ortografia com sentido hiperbólico; enorme.
3. Magellan. Sonda espacial francesa, lançada em 1985, cujo nome é uma homenagem ao navegador português Fernão de Magalhães.
4. Astronauta, piloto de testes e aviador americano, foi o primeiro homem a pousar na Lua.
5. en jouant avec les mots. Jogando, brincando com as palavras, no sentido de jogos semânticos, ambigüidades, metáforas, etc
6. De delusão: iludido, logrado. Jogo de palavras entre Deleuze e delusive, ou iludido, enganado.
7. Iconografia católica típica de igrejas francesas construídas no século 19, século que conheceu uma renovação da fé católica no país.
8. Improvisos.
9. oblatif: palavra derivada do latim oblativus ( que se oferece por si mesmo, que se doa, voluntário). Altruísta, devotado.


Entrevista Jacques Rancière

B. A tentação do ícone e da metáfora insistente do Véu da Verônica no Histoire (s) du cinema de Godard fazem eco a um certo retorno ao ícone, que se pôde exprimir nas teorias da arte, como a de Georges Didi-Huberman por exemplo, valorizando noções como as de presença e de traço, rastro ( empreinte). Como explicar este fenômeno?


R. A agitação intelectual de hoje em torno da imagem e do ícone conduzem a alguma coisa que é constitutiva do regime estético das artes, ou seja, a valorização de uma presença sensível impondo-se por si mesma. O que se opõe ao universo da representação é, de um lado, a auto-afirmação de uma presença sensível, e de outro a construção linguajar ad infinitum. A tensão entre estes dois pólos da “anti-representação” nunca deixou de trabalhar todo o regime estético das artes e suas imagens, sempre presas entre o status da presença bruta e do elemento linguajar. Se falamos hoje em dia em ícone, não se trata nem de um retorno a uma problemática representativa da cópia nem de uma preocupação ético-religiosa para a origem da imagem, o protótipo. Este “retorno ao ícone” antes radicaliza as contradições deste regime estético.

Podemos retomar os exemplos que vc citou, de um lado Godard, de outro Didi-Huberman. Em Godard, a insistência sobre a imagem como presença imediata se alimenta, em primeiro lugar, de uma certa constância de teorização do cinema que vem de André Bazin e de toda um pensamento fenomenológico da presença. Mas há também este fato que o estatuto da imagem no regime estético das artes sempre foi ambíguo, a imagem sendo ao mesmo tempo duas coisas contraditórias: de um lado, um elemento de um discurso ou uma manifestação cifrada que clama por uma decifração, e de outro, uma presença in-significante que se impõe por si mesma, de maneira que com freqüência a idéia de imagem pode se identificar à idéia de ausência de sentido. No próprio centro da idéia da imagem, ocorre uma tensão entre estes dois pólos, entre a relação do cifrado à decifração ou a relação de uma imagem a outra imagem, constitutivo de uma linguagem, e ao contrário disto a idéia da não-relação, da presença pura a-significativa oferecendo-se por si mesma.

Em Godard há a princípio esta referência fenomenológica, que é uma das maneiras canônicas de interpretar este privilégio da presença sensível não mediatizada. Mas há também um desespero em relação ao que fora o estatuto dialético da imagem, onde a imagem era encarregada de portar um discurso oculto ou revelar um mundo. Há aí qualquer coisa que me recorda a posição de Barthes na Câmara clara, um certo desespero em relação à própria idéia de uma leitura das imagens, de uma decifração do mundo, e ao mesmo tempo a supervalorização da presença sensível. Isto em Godard é completamente contraditório, porque esta declaração sobre o ícone se acompanha de uma prática onde todas as imagens são obrigadas a ser postas em discursos, a emitir discurso se a colocamos diante de qualquer outra, na presença de não importa qual.
O discurso de Didi-Huberman remete, de uma outra maneira, à contradição interna ao regime estético das artes. Este regime quis ser o da presença sensível contra a representação , da tela simplesmente coberta de formas coloridas, contra todo e qualquer tema. Mas ao mesmo tempo ele foi o regime do museu, do livro, da historicização. O que faz com que o discurso dominante sobre a arte que acompanhou historicamente o desenvolvimento da arte abstrata tenha sido, pelo contrário, o discurso “iconográfico”.
No começo do século 20, ocorreu uma conjunção ideal entre o desenvolvimento da arte abstrata e um certo discurso sobre a história autônoma das formas plásticas, o discurso de Wörringer. Foi esta conjunção que Deleuze procurou reanimar setenta anos mais tarde. Mas apesar de tudo o que acompanhou historicamente o desenvolvimento da arte abstrata, temos um outro discurso, o de Panofski, que busca a significação nos quadros e diz que não se pode nem ao menos interpretar a relação entre as formas se não soubermos de que história se trata. A história das artes se fez essencialmente como uma continuação, no regime estético da arte, dos regimes da representação. É esta tradição que hoje continuam Ginzburg e Baxandall. Há toda uma relação com a pintura que afirma que tudo só pode ser visto se for interpretado, justamente com o fito de definir o momento decisivo, o momento da ação. Esta contradição entre o desenvolvimento não-figurativo da pintura e o privilégio iconográfico na história da arte foi denunciada por teóricos como Louis Marin e Didi-Huberman. Eles reivindicam uma espécie de acesso direto à tela ou à experiência da tela, suscitando uma outra história da arte, contrária à de Panofski. Mas esta outra História se pensa nas categorias maiores do regime estético das artes: o que se opõe à leitura iconográfica é a leitura da tela como registro de seu próprio processo. E o que propõem Marin e Haberman é ler o pictórico como processo inscrito no quadro/sob o quadro, a história do quadro inscrita à superfície do quadro, quer seja o gesto pictórico ou a dimensão litúrgica. Penso na análise que Didi-Huberman fez deste falso mármore pintado em “trompe-l’oeil” por Fra Angélico sob a Madona das sombras. A interpretação institui uma espécie de fronteira freudiana entre o que está “acima”, a representação dos santos em torno da Virgem, e o que está embaixo, o informe, a chuva de manchas coloridas que ao mesmo tempo simbolizam o gesto pictórico de projeção das cores e o gesto sacramental da unção. A encarnação religiosa e fenomenológica se revelam então como a verdade da pintura sob a representação. A pura presença é aqui afirmada sob o modo da presença “em forma de sintoma”( simptômale), contra a iconologia representativa.
Esta polêmica de inspiração lacaniana é diferente da travada por Barthes e Godard; em Barthes, mesmo se ela passa por uma mesma referência freudiana, constitui o inverso de um amor desiludido pelas promessas dialéticas da leitura “sob” a imagem, e igualmente pelas promessas da iconoclastia. Estas lógicas contraditórias vem se emaranhar no presente e produzir uma valorização da imagem como ícone. O discurso teológico-ontológico de liquidação da interpretação dialética e de retorno a uma presença mais ou menos sacralizada está em consonância com todos os “fins de utopia” e todos os “retornos à moda”. Mas ele repousa também sobre as contradições constitutivas do regime estético das artes. Dizem que não querem mais a imagem como elemento de um discurso, ou interpretação das imagens, e aí vem Godard , que permanece inteiramente na ordem das imagens colocadas em discurso, imagens “para ler”, em uma combinação do visual, do textual e do sonoro que não possuem nada a ver com uma suposta pureza da imagem ou irredutibilidade do afeto.
B. Godard interpreta a obra de Hitchcock como se esta pertencesse ao regime estético, impulsionando a imagem pura contra a ficção. De um ( Hitchcock) a outro ( Godard), parece-nos, no entanto, que passamos do regime representativo ao regime estético. Podemos datar ou analisar mais amplamente esta passagem para um regime estético na história do cinema? Se este for o caso, o corte da era representativa para a era estética não nos arrisca a nos reconduzir à cisão deleuziana entre imagem-movimento e imagem-tempo?


R. Ao distinguir regime estético e regime representativo, eu quis me opor à visão tradicional, que separa uma era representativa e uma era não representativa, sob o modelo da passagem da figuração à abstração na pintura. Isto se torna uma espécie de standard da história da arte: assim, o cinema legitimaria a si mesmo, ao legitimar sua passagem de uma arte representativa para uma arte não representativa. Mas de fato é muito difícil fazer esse esquema funcionar. Se tomarmos por exemplo o argumento de Bazin, vemos que ele coloca uma oposição um pouco tortuosa: haveria antes uma primeira era do cinema, a era da montagem, a era das imagens consideradas como linguagem. Bazin constrói um modelo onde esta primeira era seria aristotélica, acreditando em uma certa linguagem das imagens, de ordenamento, através do découpage e da montagem, de uma história coerente. A isto se opõe o mundo da profundidade de campo e do plano seqüência. Mas podemos colocar o modelo inverso, onde o que vem primeiro é a anti-representação. Em Delluc, Epstein, Gance, assim como em Vertov e Eisenstein, temos a proposição de uma língua das imagens, ou da sensação, típica da era estética, e oposta à velha tradição narrativa e psicológica. E, inversamente, a segunda era do cinema aparece então como a de um cinema novamente tornado narrativo. A complexidade em fazer este esquema funcionar consiste no fato de que o cinema é uma arte ambígua, uma arte da narrativa em imagens, que funciona segundo uma dupla lógica: ele pertence à era estética, nasce do olho duplo da máquina e do operador, da idéia de uma linguagem do sensível. E ao mesmo tempo, nasce da racionalização otimizada da lógica aristotélica do encadeamento das ações. Esta dupla lógica, segundo penso, torna toda divisão ilusória: a de Bazin, que oporia uma era naïf a uma crítica, assim como a de Deleuze, que em minha opinião constitui uma dicotomia espúria. A oposição entre imagem-tempo e imagem-movimento é propriamente uma oposição filosófica: o que Deleuze opõe não são duas eras distintas do cinema. mas dois pontos de vista diferentes. Podemos pegar qualquer filme e lê-lo em termos de imagem-tempo ou imagem-movimento. A imagem-movimento é a imagem considerada do ponto de vista de sua materialidade, como uma certa modalidade do “aparecer”. A imagem-tempo é a imagem considerada como coisa do pensamento, do ponto de vista de sua idealidade. Poderíamos dizer, em termos spinozistas, o ponto de vista do pensamento, posterior ao da extensão ( étendue), ou ainda o ponto de vista da arte posterior ao dos materiais.
Esta oposição é em si mesma perfeitamente a-histórica. Deleuze tenta fazê-la coincidir com uma dimensão histórica que retoma a teoria baziniana , e faz esta teoria corresponder a uma espécie de grande drama histórico, fazendo coincidir a super problemática ruptura das “ligações sensório-motoras” com o traumatismo da Segunda Guerra Mundial. Creio que esta construção é muito artificial.
Para voltarmos a Godard “transformando” as imagens de Hitchcock, podemos dizer duas coisas. Em primeiro lugar, as imagens em Hitchcock parecem essencialmente funcionais. Hitchcock diz que nunca olha pela câmera. A imagem pode ser assimilada ora a uma palavra ora a uma espécie de estímulo que deve fazer um efeito sobre o espectador, o contrário do iconismo. Pode-se, então, ver no cinema de Hitchcock a lógica aristotélica do agenciamento de imagens visando a produzir um efeito máximo sobre a sensibilidade. Godard tentou transformar estas imagens, com o propósito de lhes tirar pequenos ícones: o copo de leite, as rodas do moinho, a chave, os óculos, etc. De uma lado, trata-se de uma “desnaturação” das imagens de Hitchcock. Mas ao mesmo tempo, esta transformação só é possível pelo fato de que as próprias imagens de Hitchcock pertencem a uma dupla lógica. O fato de que a angústia seja simbolizada pelo copo de leite e que o copo de leite seja acompanhado por esta espécie de pantomima da impassibilidade que é típica de Cary Grant, o fato de que a angústia passe por aí, e não pelo rosto de Joan Fontaine, remete a toda uma lógica propriamente estética, onde o elemento que se encarrega de traduzir e provocar sentimentos não é mais um certo gestual, nem uma certa posição dos corpos, mas objetos mudos. Se compararmos este modo de expressão à lógica representativa, por exemplo, a dos quadros de Greuze analisados por Diderot,- onde todos os sentimentos se pintam sobre os rostos, nas atitudes ou nas relações de um corpo com outros- , veremos que o cinema de Hitchcock já é bem diferente, uma vez que a lógica dos afetos em seu cinema é conduzida por objetos, que são as imagens dos objetos que simbolizam os afetos e os transmitem. Portanto, as imagens são inteiramente implicadas na lógica da ação, mas ao mesmo tempo esta lógica da ação é uma lógica pática, que é diferente da lógica patética tradicional da expressão. São os objetos que carregam os traços expressivos, são eles que atraem nossa atenção. Então, há em Hitchcock um uso duplo dos objetos, funcional e contra-funcional. Pois, atraindo nossa atenção para eles, o copo de leite, as rodas do moinho e os óculos fazem recuar a lógica pática. No regime estético das artes, mesmo o esquema mimético tradicional é “redobrado” ( doublé) em seu interior por um esquema contra-mimético. É isto que permite a Godard tomar imagens que são essencialmente “porta-afetos” para transformá-las em ícones puros da presença.


B. Ao invés de opor a imagem e a ficção no regime estético, não podemos pensar que elas permanecem solidárias, mas num modo diverso do implicado no regime representativo?

R. Não penso que a imagem apenas intervenha como ruptura com a narrativa. O que caracteriza o tipo de narrativa típico do que chamo regime estético das artes, é esta função condutora que a imagem possui: ela é ao mesmo tempo o que engendra a ficção e o que eventualmente a faz estacar. Eu estudei isso mais pela tradição romanesca, mas penso que nesse ponto a tradição cinematográfica é bem ligada à romanesca: são mais as imagens que as ações ou sentimentos que conduzem a narrativa. Mas precisamente as imagens conduzem a narrativa na medida em que são habitadas por diferenças de potencial. Há três grandes modos de funcionamento da imagem. A primeira forma é a da imagem que se auto-apaga. Ela está no cinema, assim como no romance. No romance, não distinguimos os traços descritivos, no cinema não temos que visualizá-los, eles simplesmente nos são impostos, sem parar. Há um segundo modo, onde a imagem se impõe como um elemento significante forte: foi o que se elaborou na tradição realista romanesca e foi transmitido ao cinema, a imagem se apresentando como o lugar de um enigma a elucidar ou a “fazer ressoar”, e apresentando a narrativa como a instância de sua elucidação ou o meio de sua ressonância. Enfim, há um terceiro modo, onde a imagem aparece como aquilo que destrói a narrativa, o que a torna vã. Mas precisamente a ficção romanesca e, em seqüência, a ficção cinematográfica são feitas da possibilidade de deslizar, de forma contínua e imperceptível, entre estas três funções, a possibilidade de ver mais ou menos e de ler mais ou menos, ou seja, de tratar mais ou menos o que vemos como uma coisa a ser lida. O que caracteriza a ficção estética é esta possibilidade de jogar com esta relação tripla, este jogo podendo ser um jogo que homogeneíza, como no exemplo flaubertiano, ou no exemplo de um certo cinema de Hollywood dito clássico, onde a imagem realiza estas três funções, mas em um pressuposto de homogeneidade que faz com que o tempo da narrativa e o tempo da imagem coincidam ao longo do percurso. E também a imagem pode funcionar como ruptura. O tempo da imagem e o da narrativa se dão como heterogêneos. É o modelo proustiano, por exemplo, mas também o modelo de um cinema dito moderno, Godard ou os Straub, o modelo de um cinema onde o que se evidencia é a disjunção. Portanto, creio que não há de forma alguma oposição entre imagem e narrativa; há efetivamente uma lógica clássica das ações, há uma lógica da narrativa em imagens, onde a característica técnica do cinema remete a algo de fundamental, qual seja, uma lógica estética onde é a imagem o elemento constitutivo da própria narrativa.

B. Mas mesmo em Flaubert a imagem é uma ruptura...
R. Sim e não. Há uma ruptura, podemos estacar diante da imagem, mas também não estacar. As imagens obedecem a esta lógica de “esteira rolante “ de que falava Proust, elas se engendram umas às outras, e a história no sentido tradicional é como que esvaziada em seu interior, substituída pelo encadeamento de micro-eventos. Mas este encadeamento pode finalmente vir a se identificar com o encadeamento tradicional; para retomar os termos deleuzianos, o molecular pode constituir uma cadeia que preenche a narrativa molar, de tal forma que não ocorrem fricções, asperezas. É esta lógica que funciona na tradição clássica da narrativa cinematográfica. Isto supõe a existência de uma coisa que seja exterior à tradição propriamente representativa. Assim, a descrição flaubertiana dá à imagem uma função propriamente genética em relação à narrativa, que não corresponde de nenhuma forma ao regime representativo. Temos, é claro, uma ruptura, mas esta ruptura é capaz de se auto-anular, pois uma história de costumes pode se dizer em uma história de micro-sensações. No regime estético, temos então um triplo jogo em ação: ora a imagem indiferente, ora a imagem que porta um mundo significativo para ela mesma, ora enfim a imagem como pura passividade. Esta combinação dos três tipos de imagem pode dar origem, ora a uma forma perfeitamente “lisa, deslizante” ( lisse), ora a uma forma estilhaçada, onde os elementos se encontram confrontados uns aos outros. No exemplo de Flaubert, é claro que a textura é heterogênea, mas ele mistura o heterogêneo com o homogêneo. De forma súbita, o espetáculo indiferente visto da janela de Charles ( Bovary) vem invadir o espaço da narrativa, suspendê-lo de sua pura passividade, mas esta mesma suspensão engendra uma narrativa onde o personagem adquire as propriedades do quadro ( tableau),a beleza do inerte: Charles emagrece, sua figura se torna interessante, etc. Ou então teremos uma estrutura claramente em ruptura, segundo o modelo proustiano da oposição entre narrativa e epifania: a imagem se impõe e a narrativa se desvanece. Temos o mesmo problema em Virginia Woolf, por exemplo, onde uma textura homogênea, um tapete de micro-sensações acaba por originar uma história linear ( lisse) que se opõe à narrativa em rupturas à la Joyce ou Proust. Temos um pouco a mesma coisa no cinema. Os romances de Flaubert ,por exemplo, me fazem pensar nos últimos filmes alemães e nos primeiros filmes americanos de Lang, onde tudo pode se congelar a cada instante, ou seja, congelar “na marca”, o M nas costas, o olhar fascinado diante da vitrine, ou então o visor do fuzil no final de You only live once. Penso de forma mais intensa ao M, O vampiro de Dusseldorf , quando o policial olha os arranhões na madeira do parapeito da janela, com os traços escritos. A cada instante, há uma suspensão possível da imagem. Você tem elementos que são elementos significantes tomados em uma lógica descritiva e que ao mesmo tempo são como uma aglomeração de átomos insignificantes, como em Flaubert. Neste caso, pode-se dizer que há um “recobrimento” de uma lógica propriamente estética e de uma lógica representativa. O encadeamento das imagens se encaminha a seu termo narrativo; ele poderia cada instante se paralisar na fascinação diante do que ocorre, e ao mesmo tempo, apesar de tudo, “o que ocorre”( o balão ou o assobio em M) é o condutor. Aliás, as imagens às quais faço referência aqui não são forçosamente closes, mas antes detalhes. Se tomar por exemplo o balão em M, é um detalhe, mas não é um close. Podemos pensar também no copo de leite em Suspeita, que não está tão em close quanto parece estar, e que , em certo sentido, se opõe ao que seria um close da angústia sobre um rosto.


B. Mas o objeto possui um status privilegiado? Porque, de qualquer maneira, podemos pensar no cinema de Sternberg, que funciona muito em cima do close sobre o rosto. É aliás muito difícil falar aí em “detalhe”. No entanto, estamos plenamente colocados no regime estético.

R. Certamente, isso passa também pelos rostos, pelos gestos, pelas paisagens. Não confiro um privilégio particular ao objeto. Mas na lógica de Godard, é o objeto que se presta ao icônico. Os ícones hitchcockianos de Godard não são rostos, e mesmo quando se trata de Vera Miles no Homem errado, um dos ícones retidos por Godard, o importante para ele não é este rosto na iminência de naufragar na rigidez da psicose-e que Deleuze, por este motivo, toma como exemplo da passagem de um regime de cinema ao outro-, o importante é a escova de cabelos que ela agita.Ora, a função estética do close é precisamente uma função de aproximação entre a humanidade dos rostos e a inumanidade das coisas. É o que Deleuze resumiu na idéia de devir-inumano: esta lógica passa pelo devir-paisagem do rosto, ou o devir-expressivo do objeto, e assim destrói as hierarquias tradicionais, onde você tem o sujeito e o acessório. É sempre por um procedimento de heterogeneidade que uma coisa gera imagem, quer seja uma heterogeneidade de objetos, ou de registros expressivos- quando um acessório não “fala” mais como acessório, mas como paisagem- quando uma descrição se encontra como paralisada, etc Poderíamos dizer, em termos deleuzianos, que o esquema sensório-motor não funciona mais, embora eu não goste muito desta oposição, mas eu diria que, efetivamente, há um sistema de apropriação que é quebrado.


B. Temos a sensação, nos exemplos citados, que a imagem toma sempre como “motivo” um objeto imóvel, “parado”, ou imobilizado por um gesto da descrição e reificado.

R. Não necessariamente reificado, mas numa relação suspensa com a significação.
Podemos pensar no animal. O animal pode funcionar como portador de índices, de direções: é o cão que sente, que indica alguma coisa, que late e em seguida se lança na direção da coisa pressentida. Mas o animal pode ser também a figura onde o código expressivo não é visível, a figura onde o sentido vem “entrar em impasse”. É a história do personagem que tenta entrar no pensamento do veado que vai morrer, contada por Karl Philip Moritz e comentada por Deleuze. O animal é uma figura de transição entre o humano e o não-humano, entre o sentido e o não-sentido. Em resumo, é uma figura que preenche as três funções da imagem. Ele se presta ao índice, ao símbolo, mas também à pura cristalização do sentido. Mas a mesma função-imagem se efetua diversamente, no cinema e em literatura. Eu comentei isso no exemplo das lebres do Jornal de um padre. Em Bernanos, o importante é a indistinção dos coelhos mortos, que agora não passam de detritos. O cinema não pode retomar tal e qual a lógica romanesca, porque no cinema vemos os coelhos, vemos que eles vem do criadouro e que é preciso deixar de lado este traço de indistinção entre o humano e o inumano. Então, vemos a representação das linhas do jornal e a neutralidade da voz off, que vão assegurar o equivalente da “imagem” literária das lebres. Todas as figuras privilegiadas no regime estético das artes são figuras de transição entre o humano e o inumano, o vivo e o inerte, o significante e o insignificante. Por exemplo, quando Flaubert fala do boné de Charles Bovary,e diz que ele possui os traços do rosto de um imbecil, é uma espécie de curto-circuito, de circuito complicado, onde Charles é qualificado por seu boné e onde o boné é qualificado por sua semelhança ao rosto de um imbecil. Ele fala como fala um rosto que não fala. Há toda uma lógica de objetos com potencial variável que é extremamente forte, eles representam tudo o que pode ser, seja o acessório sobre o qual o olhar desliza, seja o índice que induz um movimento, seja o puro indecifrável, em relação ao tanto que este possa ter de indiferente, repulsivo ou inquietante. A imagem não tem necessariamente esta relação extrema ao sentido no regime estético, mas ela é fortemente caracterizada por esta polaridade: falar enquanto signo, hieróglifo, portador de sentido oculto, ou então falar enquanto coisa muda, destituída de sentido.



B. O modelo de imagem que você propõe, tanto em literatura quanto em cinema, parece sempre um modelo de “imagem simples”. Mas a imagem não seria também plural, ou seja, com a capacidade de engendrar outras imagens, como em Proust por exemplo, onde uma imagem chega sempre numa série ou um circuito (réseau) de outras imagens- o que implicaria levar em conta uma virtualidade de imagens com as quais elas podem comportar posições em séries, índices de memória, etc


R. Tomei exemplos de imagens que podemos chamar de simples precisamente para criticar a ilusão icônica da simplicidade da imagem, para mostrar que a imagem era sempre uma relação, um intervalo ( écart): um intervalo entre uma função de significação e uma função de “mostração”, mas também um intervalo entre imagens, entre a imagem mostrada e outras imagens que seriam possíveis. Seria preciso pôr radicalmente em questão a identificação entre a idéia da imagem e a idéia do dado visual. Mesmo quando falamos, como Deleuze, em imagem áudio-visual, temos sempre dificuldades em considerar o som como um elemento, e não um complemento da imagem. Mas também há que toda imagem está “no lugar” de outras imagens, ela atrai ou repele outras, ela toma o lugar de imagens que poderiam ter sido feitas e não o foram. É neste sentido também que a podemos chamar de plural , ou antes: pluralizada. Ao mesmo tempo, temos a tendência a identificar sempre a imagem ao plano, embora a própria noção de plano não seja estável: trabalhamos sobre o modelo do quadro, mesmo pretendendo o contrário. Não podemos jamais estritamente delimitar cinematograficamente a unidade imagem. A imagem é sempre constituída por coisas que escapam à unidade visual. Dizer que “vemos”, então, é uma expressão ambígua. Os entusiasmos “naturalistas” na descrição literária já não colocavam nada de particular diante de nossos olhos. Ao contrário, eles desconectavam as palavras das representações visuais às quais estavam ligados pelo regime da descrição funcional. E mesmo no cinema, a imagem-intensidade não é uma intensificação visual, é uma intensidade diferencial que coloca uma história num quadro ( tableau) ou um quadro em história, que os encadeia a outras imagens e outras histórias, outros sons e outras palavras. Um rosto torna-se paisagem, um traço de expressão torna-se uma história. Ocorre uma imagem, esteticamente falando, quando há um salto intensivo de um registro a outro. Uma imagem vem como um operador de desestabilização de um certo regime do sensível, por exemplo um regime descritivo, ou o que Deleuze chama de regime sensório-motor. Ela é um operador de diferença e, efetivamente neste sentido, ela funciona em série. Em Proust, é marcante constatar que as imagens constituem uma espécie de “torneio” ( tour) sobre elas mesmas, como regimes da natureza: as imagens vegetais se transformam em animais, em marinhas, aéreas, é a roda das imagens, a roda das metáforas, que constitui a verdade da imagem singular. A imagem exprime sempre a transformação, ela é portanto o operador de um regime de metamorfose, e penso que isto também caracteriza propriamente a imagem no regime estético das artes. No exemplo flaubertiano, as imagens transformam uma conversação em paisagem ou uma sala de recepção em um deserto. O melhor equivalente cinematográfico encontraríamos talvez na forma com que, em Chantal Akerman, o gesto se metamorfoseia em cantarolar e faz, em um único modo, penetrar o mundo num quarto e uma infinidade de histórias num face a face intimista. A imagem escapa sempre à especificidade visual para induzir um regime de metamorfose que é um meio de desestabilização das formas fixas. É preciso distinguir a função imagem da idéia de unidade visual, assim como da de unidade técnica. Assim como não podemos mesurar a imagem pela forma visual instantânea, não podemos limitá-la ao começo de movimentação e de fixidez da câmera, ou a qualquer outra referência técnica. Uma imagem é sempre um intervalo e uma expansão. Além do mais, a isso se acrescenta no cinema a impossibilidade de “parar” o encadeamento temporal. Há empiricamente uma sub-percepção constante da unidade visual, que nos remete fortemente a este fato teórico de que a imagem é sempre uma relação. A imagem, esteticamente falando, somos sempre nós quem a “decupamos”; assim, podemos dizer da imagem: é um plano no sentido tradicional mas também um evento singular que se passa nesta imagem, ou o processo que liga três planos num conjunto, etc. É importante ter consciência que a unidade não é constitutiva. Ela pertence a uma estratégia artística e também a uma estratégia de leitura.

B. O senhor falaria então na idéia de imagem mental?

R. É uma idéia complicada. Claro que há a imagem mental no sentido em que foi pensada para ser na imagem visual, assim como em nossa “cabeça”. Mas a imagem mental é também a infinidade de processos de associações que faz com que reconheçamos diversas coisas sobre uma tela ( écran), uma página, uma tela ( pintura), e que iremos associar de maneiras infinitamente diversas. Deleuze brinca com a idéia de que o universo inteiro pode ser associado a um plano, por exemplo. Quando ele fala de um filme, é-lhe no fundo indiferente argumentar sobre um plano, um elemento do roteiro, ou uma palavra pronunciada por um personagem, assim como sobre elementos de leitura crítica. Ele fala de um filme enquanto ele pertence a todo um universo de imagens mentais que o constitui. Há também a imagem mental no sentido de Schefer, onde o que vemos sobre a tela se encontra acondicionado num universo imaginário que lhe ultrapassa completamente. Mas acho ruim raciocinar em termos de imaginário, em todo caso tento sempre não fazê-lo. Nos encontramos numa démarche contraditória: sabemos muito bem que o que vemos não se encontra nem um décimo sobre a película ou sobre a tela, mas ao mesmo tempo, por disciplina, é preciso tentar se fixar sobre o que nos é dado pelo filme e sua objetividade. É um jogo complicado. O discurso sobre a imagem móvel é sempre duplo, funciona sobre um esforço de objetivação que remete constantemente a um processo de subjetivação, de associação, de derivações múltiplas, correspondentes à captação de dois elementos essenciais da imagem estética: esta constitui um intervalo e é uma expansão. O discurso sobre a imagem cinematográfica é em suma sempre um discurso ilegítimo ( bâtard), sem nuance pejorativa.


B. Ao mesmo tempo, a imagem não produz apenas efeitos subjetivos, mas também efeitos de imagens. Assim, o cinema não remeteria em questão a idéia de imagem, ou lhe imporia uma outra forma de apreensão?

R. Por subjetividade não compreendo apenas associações singulares, ou delírios particulares. Penso também neste trabalho de interpretação necessária que Gombrich descreve no domínio pictórico e que se produz a uma escala infinitamente superior com a imagem cinematográfica que, em seu desfilar, nega sua própria autonomia. A noção usual de imagem remete a uma fixidez que é totalmente ilusória, mas isto não concerne apenas ao cinema. Se pensarmos na imagem literária, nada é propriamente mostrado, pode-se ingerir páginas de descrições sem ver o que quer que seja. Já a imagem cinematográfica mostra tudo, mas inserindo este todo em um fluxo que impede a fixação do que aparece na tela e que obriga a reconstruir o filme de outra forma. Esta reconstrução é para mim diferente de uma espécie de imaginário, o que me parece ser, penso eu,a tese de Schefer. Há de um lado uma consistência própria das imagens, mesmo se, por um lado, o “desenrolar” fílmico a absorve e, de outro, nós as reinserimos em sistemas de associações e derivações infinitas. A expansão das imagens não é um imaginário.


B. A imagem não seria então produzida numa espécie de contra-fluxo, de contra-efetuação, para retomarmos uma expressão de Deleuze, que seria assumida pelo espectador?

R. Não sei se podemos empregar aqui o termo com o rigor com que é empregado por Deleuze. Mas certamente as imagens fílmicas vivem das contra-efetuações que nós operamos. Vão se constituir quatro ou cinco imagens que são “as imagens” de um filme. Podemos retomar a fita cassete, parar o filme, estas imagens se tornaram inteiramente autônomas da unidade que supomos pertencer ao filme. A vida das imagens se faz com outras imagens. Uma imagem está morta se ela está dada e se interrompe. É por isso que é tão importante falar sobre os filmes. Há um universo das imagens do cinema que talvez só seja constituído pela palavra. Para que as imagens se projetem, constituam uma espécie de memória do filme, é preciso que escrevamos, evocar outras imagens que são “falsas”, deslocadas em relação ao filme. Eu durante muito tempo vi o cinema de Nicholas Ray através do plano da aparição de Cathy O’Donell de macacão na garagem de They live by night. Esta aparição instantânea de fato não existe: pelo contrário, o personagem é introduzido progressivamente por esboços ( esquisses) paralelos. E no entanto esta imagem resume tão bem o poder de efração das imagens do filme e de um cineasta que recentemente encontrei o mesmo “erro” compartilhado por outro “espectador”. Fui impactado de forma inversa, relendo os textos da grande época mac-mahoniana, em constatar até que ponto a sua celebração enfática da presença não permitia que se visse nada, só se referia a ela mesma. Algo permanece quando se cria indefinidamente outras imagens com outras palavras, outras imagens. É por isso também que o estudo narratológico “plano a plano” é geralmente tão decepcionante. A idéia de evidência visual se evapora de forma absolutamente vertiginosa, a partir do momento em que a utilizamos.

B. Que obras do cinema contemporâneo lhe ajudam a pensar a noção de imagem? E em qual (s) direção (s)?

R. Digamos em primeiro lugar que minha cultura cinematográfica é muito descontínua e seletiva para abarcar uma unidade recuperável sob o rótulo “cinema contemporâneo”. A isto se junta que a contemporaneidade se define tanto pelas novidades quanto pelos filmes de diferentes épocas que nos é possível ver em um dado momento, o que, para nós, fez de Ozu mais um contemporâneo do “après-Nouvelle vague” que Renoir. Disto isto, podemos distinguir três grandes momentos na idéia da imagem cinematográfica: houve o tempo em que a imagem visual foi pensada como elemento de uma língua específica e onde a originalidade do cinema foi assimilada a uma espécie de nova língua universal das imagens, teorização que aliás não cessava de desmentir as formas concretas da narrativa cinematográfica. Houve a época de Bresson, Bergman e da Nouvelle Vague, que fixou o status artístico da imagem cinematográfica, marcando a distância entre imagem estética e unidade visual. É o momento onde cessou de se opor uma ilusória “pureza” da imagem visual à mescla cinematográfica do visível e da palavra, da narrativa e do plano, onde apareceu que a imagem era em primeiro lugar uma diferença de potencial, um prolongamento ou uma aceleração do tempo, um intervalo entre regimes de “imagismo” (imageité). Esta clarificação, ao mesmo tempo, oscilava entre uma idéia crítica de cinema, assimilando a dissociação dos componentes da imagem a uma função de crítica positiva, e um outro pensamento da pureza cinematográfica. As formas de cinema contemporâneo que me interessam são aquelas que permitem sair de deste dilema, ao explorar de diversas maneiras as formas de composição e decomposição que forjam a imagem cinematográfica, e confrontando-as a formas de heterogeneidade próprias à imagem pictórica ou literária. Penso por exemplo em alguns filmes de Kitano que jogam em cima das transformações, instantâneas ou progressivas, do narrativo, em sua velocidade devoradora das imagens, no puro pictórico. Este jogo é ao mesmo tempo uma maneira de repassar as eras do cinema , ao utilizar as formas do cinema mudo e a gesticulação do clown, para transformar o movimento em imobilidade e a ilustração funcional em fogo de artifício gratuito. Penso também em certos filmes de Hou Hsiao Hsien, que deslocam a oposição do clássico e do moderno ao isolar um plano não sob a forma do “corte irracional” mas sob a forma de uma saturação e de uma complexidade internas que no entanto não obedecem ao paradigma baziniano da profundidade de campo. Complexidade do mesmo gênero, em relação aos cortes da história do cinema, se encontra nos procedimentos de Wong Kar Wai, que, a princípio, parecem ornamentos ( fioritures) pictóricas ( planos aproximados absorvendo o corpo, à maneira de Bonnard, em uma espécie de papel pintado multicolorido, véus e espelhos embaralhando as fronteiras do real e da aparência, do objetivo e do subjetivo), mas que estabelecem sobretudo uma indecisão entre os traços pictóricos e os traços narrativos ( assim, estes brancos e estes negros que desempenham um duplo papel de componentes do plano e de separação entre os planos, de elementos plásticos e de figuras discursivas). Em alguns cineastas, o enriquecimento ( surenchère) plástico que desejaria isolar o visível em sua pureza acaba por reencontrar de outra forma a heterogeneidade da imagem cinematográfica. Penso aqui na tentativa de Sokurov, que me parece significativa até em suas contradições. Pretendendo liberar o cinema da ilusão perspectivista e assim aproximando-o de uma inencontrável pintura, ele nos faz sobretudo sentir até que ponto o som funciona como “terceira dimensão” da imagem cinematográfica, e a sonoridade dostoievskiana arcaica de Sokurov é bem próxima da sonoridade “neo-realista” suburbana que encerra os personagens contemporâneos do Ossos de Pedro Costa. E ele permite repensar este caráter paradoxal do “ruído”, que torna a imagem visível cinematográfica, com seus micro-eventos, parente da “quase-imagem” do livro. Penso enfim nas obras de Kiarostami, que jogam sistematicamente sobre a transformação das formas, fazendo do filme o desenvolvimento de um poema ou de um quadro, com as rupturas de escalas visuais e os conflitos de imagens que isto pressupõe, desde o plano da criança-micróbio percorrendo o terreno em ziguezague geometricamente traçado sobre a colina de Onde fica a casa do meu amigo?, até a janela fechada de O vento nos levará. São exemplos, não um ranking. Eles se situam fora da linha dominante americana- pela qual meu interesse é bem fraco, ou simplesmente minha preguiça forte- e da sub-dominante francesa, ou antes francófona, onde são ainda os “clássicos da modernidade”, Godard , os Straub ou Chantal Akerman, que encarnam a potência disjuntiva das imagens e continuam o diálogo com a imagem literária ( penso no crescendo da declaração da mãe em Sicília!, ou ao decrescendo dos últimos planos marinhos de A cativa). A importância dos cinemas extra-europeus hoje vem sem dúvida do leve interstício que desloca as filiações e organiza encontros do cinema “moderno” com diferentes tradições. Assim, em Kitano, vemos os códigos do filme de yakusa trabalhados pelos códigos do Nô e os “desvios do código” típicos da tradição burlesca. Em Wong Kar-Wai ou Hou Hsiao Hsien, podemos encontrar a reatualização de uma tradição pictórica e caligráfica que torna equivalentes traços pictóricos e escriturais; em Sokurov, um encontro entre os princípios da modernidade cinematográfica e da tradição do ícone. Ou ainda, em Kiarostami, o encontro entre a forma de “imagética” dominante do poema, mas também com todas as outras formas- historicamente não contemporâneas umas das outras- do desejo da imagem, da necessidade da imagem ou do interdito da imagem.


Entrevista realizada em junho de 2000 por Sophie Carlin, Stéphane Delorme e Mathias Levin para a revista Balthazar.

Tradução: Luiz Soares Júnior.