Com frequência, nas provas de meus alunos na Universidade de Paris III, encontrei referências a um certo Gilles Deleuze. Intrigado, fui à biblioteca municipal mais próxima, onde tomei emprestadas as duas obras deste autor consagradas ao cinema.
A imagem-movimento e a imagem-tempo...Eu pensava que leria no primeiro volume estudos sobre Renoir ( o balé dos personagens na Regra do jogo ou em Carruagem de ouro), sobre Ophuls, Mizoguchi, Fuller ou Téchiné, e no segundo uma análise da arte de Stroheim, Ford, Duras, Pagnol, Rozier, Leone, os grandes mestres do tempo. Bem, nada disso. Ocorreu até mesmo o contrário do que eu esperava. Ophuls só é citado na Imagem-tempo, e Stroheim apenas na Imagem-movimento. Pagnol, Rozier, Leone são totalmente esquecidos.
É que, para Deleuze, o movimento não é o movimento, e o tempo- de forma menos agressiva, no entanto- não é exatamente o tempo. A imagem-movimento seria “um conjunto acentrado de elementos variáveis que agem e reagem uns sobre os outros ( p.291), o jogo que conduz uns aos outros. Sob esta perspectiva, poderíamos sustentar que Apotheosis, de Yoko Ono, feito de um único plano seqüência, um perpétuo travelling vertical, não é imagem-movimento, mas imagem-tempo ( voltarei mais tarde nisso aí). Ok. Esta definição talvez ficasse mais clara se Deleuze tivesse falado de movimento dialético.
Na página 291, Deleuze enumera várias categorias de imagem-movimento, , notadamente a imagem-percepção ( “conjunto de elementos que agem sobre um centro”) e a imagem-ação ( “reação do centro ao conjunto”). É no mínimo curioso que estas variedades da imagem-movimento se refiram a um centro, já que Deleuze define a imagem-movimento como um conjunto descentrado. Tenho dificuldade em entender isso...
Deleuze nos propõe um exemplo preciso de imagem-percepção: no Broken lullaby, Lubitsch mostra um grupo de homens, de pé, vistos à altura do chão, a câmera colocada “sob a perna que falta de um inválido”, igualmente de pé. Eis um enquadramento que parece totalmente gratuito. Mas o plano seguinte revela que se trata do ponto de vista de um cul-de-jatte 1. O que tomáramos por um simples maneirismo era na verdade a visão subjetiva de um indivíduo. Há aí um movimento na narração e na consciência do espectador que nos permite chegar a esta conclusão.
A imagem-afecção, segunda variedade da imagem-movimento, “é o que ocupa o intervalo entre uma ação e uma reação, o que absorve uma ação exterior e reage internamente”. Primeiro exemplo: o close de um rosto, reflexivo ( em que você está pensando?) ou intensivo ( o que você está sentindo?). É verdade que, com frequência, o close mostra uma reação do rosto ao que se passara no plano precedente, geralmente mais amplo, mas esta constitui uma técnica vulgar, primária mesmo ( que pode dar resultados magníficos, mas que foi super explorada por todos os cineastas tarefeiros). Portanto, não se pode escrever que o close constitui um intervalo entre uma ação e uma reação, já que ele próprio é a reação, contém em si mesmo a reação, que se situa aliás quase sempre no início do plano.
E limitar o close a este valor de resposta para uma ação ( o que é estudado por Deleuze ao longo e ao largo de vinte e cinco páginas) leva a mascarar de forma muito redutora os outros usos, mais inovadores e criativos, do close, aqui omitidos: se um filme começa pelo close, ou constitui-se em uma série de closes, como no húngaro Princesa ou na Jonana D’arc do Dreyer, não se trata forçosamente de uma “seqüência” à ação, ou da absorção de uma ação exterior. Mais de cem fotogramas de Gérard Courant ( únicos closes-sequências de rostos) são sem referência a uma ação prévia ou exterior. Tampouco quando uma personagem em close come, escova os dentes, morde seu vizinho ou faz um gesto zombeteiro pra platéia. Neste último caso, é inclusive a ação que provoca a reação, o exato inverso do que afirma Deleuze, contradito também pelo close pillow-shot ou plano de corte, ou a sequência lírica de closes breves, mais ou menos idênticos, ou mesmo o plano de um homem que recebe uma bofetada no campo: neste caso, o intervalo entre a ação e a reação é imperceptível, da ordem de vigésimos de segundos. E aqui a ação não é de forma alguma exterior.
Estes dois modos de dialética presumida, que Deleuze completa pelo estudo do par sombra-luz, se fundam sobre uma certa especificidade do cinema, ligada à sua gramática, à sua técnica ( découpage, close, flou, iluminação). Ora, é bem evidente que as linhas dialéticas, no cinema, ultrapassam estas especificidades. É justamente por isso que Deleuze inclui uma terceira forma de imagem-movimento, dita imagem-ação que, ao que me parece, não tem nada a ver com a definição popular de ação no cinema. Trata-se de uma dialética entre o indivíduo e a sociedade, o detalhe e a totalidade, a ação particular e a situação geral. Quando o cineasta parte do indivíduo para atingir a sociedade, chama-se “pequena forma” ( Lubitsch seria o mestre nisso), e quando dá-se o contrário, a “grande forma”: assim, as superproduções de Cecil B. DeMille. A distinção é às vezes meio ociosa: se Male and female ( DeMille, 1919) começa por planos bem gerais ( o céu, o mar, o canyon do Colorado, uma citação da Gênese), chegamos em trinta segundos à vassoura, ao balaio e ao balde d’água,e permanecemos mais ou menos nesse nível durante o resto do filme, salvo- no meio- quando do episódio babilônico. Teoricamente, trata-se da grande forma, mas este começo fanfarrão é tão breve...é o mesmo problema no caso de vários filmes americanos, que começam por apresentar de forma breve uma cidade ( Beyond the forest, Pride of the marines, The seven year itch) antes de se ligarem definitivamente a um itinerário individual. As idas e vindas do particular ao geral se emaranham, se invertem freqüentemente, e desemaranhar a pequena da grande forma muitas vezes equivale a recair na velha questão da prioridade do ovo sobre a galinha.
Neste catálogo de movimentos dialéticos, vamos constatar um número de notáveis esquecimentos, quer sejam as dialéticas fundadas sobre técnicas do trabalho, overplay e underplay ( Kazan), visível-invisível ( Tourneur), gênero e não-gênero ( Monte Hellman), sobre noções mais vastas, como natureza e cultura ( Boudu), cidade e campo ( Vidor), lentidão e velocidade ( Rising of the moon, Ford), risos e lágrimas ( Chaplin), trivialidade e sublime ( Godard), lógica e absurdo( Hawks, Buñuel), amor e ação ( o cinema hollywoodiano), ou sobre valores ideológicos, nacionalidades e classes sociais ( A grande ilusão), racismo e tolerância ( La derniére chasse), eficácia e justiça ( Marca da maldade), isso sem falar das dialéticas medíocres ( os bons e os maus, a fuga pro México ou a prisão) que atravancam a maior parte das telas. Algumas destas categorias ao menos poderiam ter sido objeto de menção neste díptico de vastidão enciclopédia.
Ao invés disso, espremida entre a imagem-afecção e a imagem-ação, Deleuze introduz uma nova categoria, a imagem-pulsão, que cai aí como um cabelo na sopa. A pulsão, segundo Deleuze, seria ligada ao naturalismo, onde o movimento se criaria na passagem do homem ao animal ( o que nos prova bem que Deleuze não dispensa sistematicamente as dialéticas com fundamento extra-fílmico, e que se livra delas quando bem quer, aliás).
A história toda é um pouco dura de engolir, sobretudo pelo fato de que o “animal” ( no naturalismo) é com frequência colocado desde o começo do filme ( Foolish wives, Manèges de Allégret), e não é portanto o resultado de um movimento visível. De fato, pulsão e naturalismo seriam antes dois pólos antagônicos, pois a pulsão, frequentemente pulsão de um personagem que reflete a do realizador, está muito distante do princípio do naturalismo ( a realidade deve ser descrita sem alguma interpretação, devida ao espírito do autor). Calor da pulsão, frieza do naturalismo.
Os exemplos dados por Deleuze deixam o leitor estupefato. Poderíamos crer que Deleuze, a propósito do naturalismo, citaria os filmes do Kammerspiel, o Rail, a Noite de São Silvestre, a Última gargalhada, a Rua sem alegria, Um homem anda pela cidade de Pagliero ou Manéges, ou os Renoir como On purge bébé, A cadela ou Boudu, Umberto D., Honeymoon killers de Kastle. Bem, nada disso. O naturalismo seriam Vidor, Ray, Losey, Fuller. Todos, é verdade, muito dependentes de suas pulsões. Mas que autor se distancia mais do naturalismo que Vidor? Apenas The crowd e, em certa medida, Cenas da rua poderiam ser classificados como filmes, digamos, realistas. Podemos dizer de Vidor que ele é romântico, lírico, delirante, expressivo, idealista, assim como Gance e Dovjenko, a quem o comparam sempre. Mas o mundo de Ruby Gentry, de Fountainhead, de Hallelujah, da Grande parada é totalmente irrealista, surrealista mesmo. O cúmulo é que Deleuze qualifica seu Duelo ao sol de “western naturalista”, quando se trata do sumo do artifício hollywoodiano , da loucura romântica wagner-nietzscheana. No Jornada tétrica de Ray, que Deleuze descreve como uma “obra-prima do naturalismo”, a paisagem tem uma grande importância ( assim como no Duelo ao sol), então nos damos ao direito de achar que Deleuze cometeu um erro crasso, digno de um colegial, algo que julgávamos inadmissível de sua parte. Ele confundiu o naturalismo à la Zola, onde a arte deve reproduzir a natureza em todos os seus aspectos, mesmo os mais feios e repulsivos, com o trabalho do naturalista, que estuda plantas, minerais e animais. Devido à pobreza da língua francesa, um convite a isso, ele pôs no mesmo saco Emile Zola e Bernardin de Saint-Pierre, Huysmans e Buffon: era de se esperar...Não há outra explicação: o barroco do bordel no Jornada tétrica, a truculência de Gueule-de-Cotton que, agonizante, chama os urubus: “Vinde a mim, sou gordo e roliço”, se junta ao hénaurme 2 de Jarry, Hugo, Rabelais ou Céline, e não tem nada a ver com o escalpelo de Zola. Ray testemunha um lirismo que exprime conivência até mesmo com seus personagens mais negativos. Outros supostos nomes do naturalismo, Fuller ( que não recua diante de nenhuma inverossimilhança, e realizou o filme mais louco de todos, Shock corridor, com um negro que milita pela Ku Klux Kan) e Joseph Losey...
A imagem-movimento e a imagem-tempo...Eu pensava que leria no primeiro volume estudos sobre Renoir ( o balé dos personagens na Regra do jogo ou em Carruagem de ouro), sobre Ophuls, Mizoguchi, Fuller ou Téchiné, e no segundo uma análise da arte de Stroheim, Ford, Duras, Pagnol, Rozier, Leone, os grandes mestres do tempo. Bem, nada disso. Ocorreu até mesmo o contrário do que eu esperava. Ophuls só é citado na Imagem-tempo, e Stroheim apenas na Imagem-movimento. Pagnol, Rozier, Leone são totalmente esquecidos.
É que, para Deleuze, o movimento não é o movimento, e o tempo- de forma menos agressiva, no entanto- não é exatamente o tempo. A imagem-movimento seria “um conjunto acentrado de elementos variáveis que agem e reagem uns sobre os outros ( p.291), o jogo que conduz uns aos outros. Sob esta perspectiva, poderíamos sustentar que Apotheosis, de Yoko Ono, feito de um único plano seqüência, um perpétuo travelling vertical, não é imagem-movimento, mas imagem-tempo ( voltarei mais tarde nisso aí). Ok. Esta definição talvez ficasse mais clara se Deleuze tivesse falado de movimento dialético.
Na página 291, Deleuze enumera várias categorias de imagem-movimento, , notadamente a imagem-percepção ( “conjunto de elementos que agem sobre um centro”) e a imagem-ação ( “reação do centro ao conjunto”). É no mínimo curioso que estas variedades da imagem-movimento se refiram a um centro, já que Deleuze define a imagem-movimento como um conjunto descentrado. Tenho dificuldade em entender isso...
Deleuze nos propõe um exemplo preciso de imagem-percepção: no Broken lullaby, Lubitsch mostra um grupo de homens, de pé, vistos à altura do chão, a câmera colocada “sob a perna que falta de um inválido”, igualmente de pé. Eis um enquadramento que parece totalmente gratuito. Mas o plano seguinte revela que se trata do ponto de vista de um cul-de-jatte 1. O que tomáramos por um simples maneirismo era na verdade a visão subjetiva de um indivíduo. Há aí um movimento na narração e na consciência do espectador que nos permite chegar a esta conclusão.
A imagem-afecção, segunda variedade da imagem-movimento, “é o que ocupa o intervalo entre uma ação e uma reação, o que absorve uma ação exterior e reage internamente”. Primeiro exemplo: o close de um rosto, reflexivo ( em que você está pensando?) ou intensivo ( o que você está sentindo?). É verdade que, com frequência, o close mostra uma reação do rosto ao que se passara no plano precedente, geralmente mais amplo, mas esta constitui uma técnica vulgar, primária mesmo ( que pode dar resultados magníficos, mas que foi super explorada por todos os cineastas tarefeiros). Portanto, não se pode escrever que o close constitui um intervalo entre uma ação e uma reação, já que ele próprio é a reação, contém em si mesmo a reação, que se situa aliás quase sempre no início do plano.
E limitar o close a este valor de resposta para uma ação ( o que é estudado por Deleuze ao longo e ao largo de vinte e cinco páginas) leva a mascarar de forma muito redutora os outros usos, mais inovadores e criativos, do close, aqui omitidos: se um filme começa pelo close, ou constitui-se em uma série de closes, como no húngaro Princesa ou na Jonana D’arc do Dreyer, não se trata forçosamente de uma “seqüência” à ação, ou da absorção de uma ação exterior. Mais de cem fotogramas de Gérard Courant ( únicos closes-sequências de rostos) são sem referência a uma ação prévia ou exterior. Tampouco quando uma personagem em close come, escova os dentes, morde seu vizinho ou faz um gesto zombeteiro pra platéia. Neste último caso, é inclusive a ação que provoca a reação, o exato inverso do que afirma Deleuze, contradito também pelo close pillow-shot ou plano de corte, ou a sequência lírica de closes breves, mais ou menos idênticos, ou mesmo o plano de um homem que recebe uma bofetada no campo: neste caso, o intervalo entre a ação e a reação é imperceptível, da ordem de vigésimos de segundos. E aqui a ação não é de forma alguma exterior.
Estes dois modos de dialética presumida, que Deleuze completa pelo estudo do par sombra-luz, se fundam sobre uma certa especificidade do cinema, ligada à sua gramática, à sua técnica ( découpage, close, flou, iluminação). Ora, é bem evidente que as linhas dialéticas, no cinema, ultrapassam estas especificidades. É justamente por isso que Deleuze inclui uma terceira forma de imagem-movimento, dita imagem-ação que, ao que me parece, não tem nada a ver com a definição popular de ação no cinema. Trata-se de uma dialética entre o indivíduo e a sociedade, o detalhe e a totalidade, a ação particular e a situação geral. Quando o cineasta parte do indivíduo para atingir a sociedade, chama-se “pequena forma” ( Lubitsch seria o mestre nisso), e quando dá-se o contrário, a “grande forma”: assim, as superproduções de Cecil B. DeMille. A distinção é às vezes meio ociosa: se Male and female ( DeMille, 1919) começa por planos bem gerais ( o céu, o mar, o canyon do Colorado, uma citação da Gênese), chegamos em trinta segundos à vassoura, ao balaio e ao balde d’água,e permanecemos mais ou menos nesse nível durante o resto do filme, salvo- no meio- quando do episódio babilônico. Teoricamente, trata-se da grande forma, mas este começo fanfarrão é tão breve...é o mesmo problema no caso de vários filmes americanos, que começam por apresentar de forma breve uma cidade ( Beyond the forest, Pride of the marines, The seven year itch) antes de se ligarem definitivamente a um itinerário individual. As idas e vindas do particular ao geral se emaranham, se invertem freqüentemente, e desemaranhar a pequena da grande forma muitas vezes equivale a recair na velha questão da prioridade do ovo sobre a galinha.
Neste catálogo de movimentos dialéticos, vamos constatar um número de notáveis esquecimentos, quer sejam as dialéticas fundadas sobre técnicas do trabalho, overplay e underplay ( Kazan), visível-invisível ( Tourneur), gênero e não-gênero ( Monte Hellman), sobre noções mais vastas, como natureza e cultura ( Boudu), cidade e campo ( Vidor), lentidão e velocidade ( Rising of the moon, Ford), risos e lágrimas ( Chaplin), trivialidade e sublime ( Godard), lógica e absurdo( Hawks, Buñuel), amor e ação ( o cinema hollywoodiano), ou sobre valores ideológicos, nacionalidades e classes sociais ( A grande ilusão), racismo e tolerância ( La derniére chasse), eficácia e justiça ( Marca da maldade), isso sem falar das dialéticas medíocres ( os bons e os maus, a fuga pro México ou a prisão) que atravancam a maior parte das telas. Algumas destas categorias ao menos poderiam ter sido objeto de menção neste díptico de vastidão enciclopédia.
Ao invés disso, espremida entre a imagem-afecção e a imagem-ação, Deleuze introduz uma nova categoria, a imagem-pulsão, que cai aí como um cabelo na sopa. A pulsão, segundo Deleuze, seria ligada ao naturalismo, onde o movimento se criaria na passagem do homem ao animal ( o que nos prova bem que Deleuze não dispensa sistematicamente as dialéticas com fundamento extra-fílmico, e que se livra delas quando bem quer, aliás).
A história toda é um pouco dura de engolir, sobretudo pelo fato de que o “animal” ( no naturalismo) é com frequência colocado desde o começo do filme ( Foolish wives, Manèges de Allégret), e não é portanto o resultado de um movimento visível. De fato, pulsão e naturalismo seriam antes dois pólos antagônicos, pois a pulsão, frequentemente pulsão de um personagem que reflete a do realizador, está muito distante do princípio do naturalismo ( a realidade deve ser descrita sem alguma interpretação, devida ao espírito do autor). Calor da pulsão, frieza do naturalismo.
Os exemplos dados por Deleuze deixam o leitor estupefato. Poderíamos crer que Deleuze, a propósito do naturalismo, citaria os filmes do Kammerspiel, o Rail, a Noite de São Silvestre, a Última gargalhada, a Rua sem alegria, Um homem anda pela cidade de Pagliero ou Manéges, ou os Renoir como On purge bébé, A cadela ou Boudu, Umberto D., Honeymoon killers de Kastle. Bem, nada disso. O naturalismo seriam Vidor, Ray, Losey, Fuller. Todos, é verdade, muito dependentes de suas pulsões. Mas que autor se distancia mais do naturalismo que Vidor? Apenas The crowd e, em certa medida, Cenas da rua poderiam ser classificados como filmes, digamos, realistas. Podemos dizer de Vidor que ele é romântico, lírico, delirante, expressivo, idealista, assim como Gance e Dovjenko, a quem o comparam sempre. Mas o mundo de Ruby Gentry, de Fountainhead, de Hallelujah, da Grande parada é totalmente irrealista, surrealista mesmo. O cúmulo é que Deleuze qualifica seu Duelo ao sol de “western naturalista”, quando se trata do sumo do artifício hollywoodiano , da loucura romântica wagner-nietzscheana. No Jornada tétrica de Ray, que Deleuze descreve como uma “obra-prima do naturalismo”, a paisagem tem uma grande importância ( assim como no Duelo ao sol), então nos damos ao direito de achar que Deleuze cometeu um erro crasso, digno de um colegial, algo que julgávamos inadmissível de sua parte. Ele confundiu o naturalismo à la Zola, onde a arte deve reproduzir a natureza em todos os seus aspectos, mesmo os mais feios e repulsivos, com o trabalho do naturalista, que estuda plantas, minerais e animais. Devido à pobreza da língua francesa, um convite a isso, ele pôs no mesmo saco Emile Zola e Bernardin de Saint-Pierre, Huysmans e Buffon: era de se esperar...Não há outra explicação: o barroco do bordel no Jornada tétrica, a truculência de Gueule-de-Cotton que, agonizante, chama os urubus: “Vinde a mim, sou gordo e roliço”, se junta ao hénaurme 2 de Jarry, Hugo, Rabelais ou Céline, e não tem nada a ver com o escalpelo de Zola. Ray testemunha um lirismo que exprime conivência até mesmo com seus personagens mais negativos. Outros supostos nomes do naturalismo, Fuller ( que não recua diante de nenhuma inverossimilhança, e realizou o filme mais louco de todos, Shock corridor, com um negro que milita pela Ku Klux Kan) e Joseph Losey...
Poderíamos, em um certo limite, aceitar o epíteto realista no caso de filmes como The big night, the lawless ou Imbarco a mezzanotte( realistas no mesmo sentido que centena de filmes americanos ou italianos um pouco “medíocres”), filmes que Deleuze não cita. Em revanche, os exemplos que evoca, Time without pity, Secret ceremony, Eva, The damned, Mr. Klein, The servant, não tem nada de realmente realistas, ainda menos naturalistas. Os dois últimos são fábulas, e os outros se ligam ( assim como seus personagens) a um frenesi neurótico totalmente irrealista.
“Não há poucas diferenças entre o naturalismo de Stroheim e de Buñuel”, avança Deleuze ( página 183),que precisa que a diferença entre Stroheim e Buñuel seria concebida não tanto como entropia acelerada, mas sim como repetição precipitante, eterno retorno”. O problema é que, em Buñuel, há naturalismo e repetição, ok, mas os dois jamais estão ligados: o naturalismo pertence à primeira parte da obra ( Las Hurdes, Los olvidados, El bruto, mesmo Suzana e o Diário de uma camareira), em uma época em que Buñuel não possuía muitos meios, e poderia dificilmente filmar algo que não fosse a realidade. Este naturalismo recusa frontalmente a repetição, que vai dominar em sua obra nos anos finais, melhor dotados financeiramente ( O anjo exterminador, Belle de jour, O discreto charme da burguesia, Este obscuro objeto de desejo), e que expulsará de sua órbita todo naturalismo. Há, claro, aqui e ali, evocações breves de perversões sexuais, a presença dos W.-C, vestígios do naturalismo, mas que ora são tratados como elementos oníricos ou irônicos, ora possuem um status incerto e indefinível, uma terra de ninguém que permanece também totalmente alheia ao naturalismo.
Portanto, não vou me demorar mais tempo nesta imagem-pulsão, de longe o pior capítulo do díptico deleuziano; partirei para a imagem-tempo...
Até aqui Deleuze tinha se esforçado para dar definições de seus neologismos, mas ele não consegue precisar em que consiste a imagem-tempo. Ele define o tempo ( páginas 49 e 50 do tomo 1) em ocasiões “como intervalo” - mas Deleuze não se demora nesse intervalo no cadre da imagem-tempo. Antes assim!, pois este intervalo parece-se muito com o intervalo da imagem-movimento, e sobretudo da imagem-afecção. Ou então define o tempo “como tudo”, ou seja, os dois extremos, o dia e a noite. A imagem tempo me lembra essas lixeiras verdes onde, no meio dos compartimentos azuis para os jornais velhos, compartimentos amarelos para as embalagens e brancos para garrafas, enfiamos todo o entulho que nos vem à cabeça na hora. Podemos dar da imagem-tempo uma definição negativa: é tudo o que não é imagem movimento, ou mais exatamente tudo o que não está subordinado a ela ( como está indicado na página de abertura da Imagem-tempo), o que constitui um centro, enquanto a imagem-movimento é um princípio sem centro. Da noção de centro ( intervalo), que pressupõe a existência de extremos, passa-se à noção de conjunto, de todo, que pressupõe a inexistência de elementos exteriores. E o todo seria o resultado da montagem, e constituiria também o tempo, pois é também a montagem que cria o tempo do filme. E o todo estaria em relação direta com o tempo. O todo e o tempo, aliás, combinam muito bem entre si, pois tanto um quanto o outro- ao contrário do movimento- tendem a nos escapar, e permanecem indecomponíveis e misteriosos. Sabemos quase tudo do movimento- se ligarmos este termo ( seguindo a definição clássica, e não a deleuziana) à noção de espaço-, sobretudo desde Magellan3 e Neil Armstrong4, enquanto que o tempo passado é cheio de obscuridades, e sempre permaneceremos ignorantes em relação ao tempo futuro, o tempo – é certo!- que nos matará.
Curioso amálgama esta aliança centro-todo-montagem-tempo... Deleuze se vira por meio de astúcias. “Eisenstein não cessa de nos lembrar que a montagem é o Todo do filme, sua Idéia”. Mas é Eisenstein quem o diz. Ok, é um cara genial, mas em que isto implica que ele tem necessariamente razão? Podemos sustentar que a montagem talvez fosse “tudo” para ele ( como também para Godard, Resnais e talvez Welles); mas não seria forçosamente “tudo” para os outros, para seus detratores, nem mesmo para ele, Eisenstein: seu último filme, Ivã, o Terrível, é uma obra-prima onde há um mínimo trabalho de montagem. Talvez esta idéia da Montagem identificada ao Todo fosse uma idéia de juventude de Eisenstein, que ele teria abandonado ao fim da vida, e que teria nascido do fato fortuito de que, no começo de sua carreira, com os racionamentos na Rússia da época, ele só dispusesse de pequenos pedaços de película.
“Não há poucas diferenças entre o naturalismo de Stroheim e de Buñuel”, avança Deleuze ( página 183),que precisa que a diferença entre Stroheim e Buñuel seria concebida não tanto como entropia acelerada, mas sim como repetição precipitante, eterno retorno”. O problema é que, em Buñuel, há naturalismo e repetição, ok, mas os dois jamais estão ligados: o naturalismo pertence à primeira parte da obra ( Las Hurdes, Los olvidados, El bruto, mesmo Suzana e o Diário de uma camareira), em uma época em que Buñuel não possuía muitos meios, e poderia dificilmente filmar algo que não fosse a realidade. Este naturalismo recusa frontalmente a repetição, que vai dominar em sua obra nos anos finais, melhor dotados financeiramente ( O anjo exterminador, Belle de jour, O discreto charme da burguesia, Este obscuro objeto de desejo), e que expulsará de sua órbita todo naturalismo. Há, claro, aqui e ali, evocações breves de perversões sexuais, a presença dos W.-C, vestígios do naturalismo, mas que ora são tratados como elementos oníricos ou irônicos, ora possuem um status incerto e indefinível, uma terra de ninguém que permanece também totalmente alheia ao naturalismo.
Portanto, não vou me demorar mais tempo nesta imagem-pulsão, de longe o pior capítulo do díptico deleuziano; partirei para a imagem-tempo...
Até aqui Deleuze tinha se esforçado para dar definições de seus neologismos, mas ele não consegue precisar em que consiste a imagem-tempo. Ele define o tempo ( páginas 49 e 50 do tomo 1) em ocasiões “como intervalo” - mas Deleuze não se demora nesse intervalo no cadre da imagem-tempo. Antes assim!, pois este intervalo parece-se muito com o intervalo da imagem-movimento, e sobretudo da imagem-afecção. Ou então define o tempo “como tudo”, ou seja, os dois extremos, o dia e a noite. A imagem tempo me lembra essas lixeiras verdes onde, no meio dos compartimentos azuis para os jornais velhos, compartimentos amarelos para as embalagens e brancos para garrafas, enfiamos todo o entulho que nos vem à cabeça na hora. Podemos dar da imagem-tempo uma definição negativa: é tudo o que não é imagem movimento, ou mais exatamente tudo o que não está subordinado a ela ( como está indicado na página de abertura da Imagem-tempo), o que constitui um centro, enquanto a imagem-movimento é um princípio sem centro. Da noção de centro ( intervalo), que pressupõe a existência de extremos, passa-se à noção de conjunto, de todo, que pressupõe a inexistência de elementos exteriores. E o todo seria o resultado da montagem, e constituiria também o tempo, pois é também a montagem que cria o tempo do filme. E o todo estaria em relação direta com o tempo. O todo e o tempo, aliás, combinam muito bem entre si, pois tanto um quanto o outro- ao contrário do movimento- tendem a nos escapar, e permanecem indecomponíveis e misteriosos. Sabemos quase tudo do movimento- se ligarmos este termo ( seguindo a definição clássica, e não a deleuziana) à noção de espaço-, sobretudo desde Magellan3 e Neil Armstrong4, enquanto que o tempo passado é cheio de obscuridades, e sempre permaneceremos ignorantes em relação ao tempo futuro, o tempo – é certo!- que nos matará.
Curioso amálgama esta aliança centro-todo-montagem-tempo... Deleuze se vira por meio de astúcias. “Eisenstein não cessa de nos lembrar que a montagem é o Todo do filme, sua Idéia”. Mas é Eisenstein quem o diz. Ok, é um cara genial, mas em que isto implica que ele tem necessariamente razão? Podemos sustentar que a montagem talvez fosse “tudo” para ele ( como também para Godard, Resnais e talvez Welles); mas não seria forçosamente “tudo” para os outros, para seus detratores, nem mesmo para ele, Eisenstein: seu último filme, Ivã, o Terrível, é uma obra-prima onde há um mínimo trabalho de montagem. Talvez esta idéia da Montagem identificada ao Todo fosse uma idéia de juventude de Eisenstein, que ele teria abandonado ao fim da vida, e que teria nascido do fato fortuito de que, no começo de sua carreira, com os racionamentos na Rússia da época, ele só dispusesse de pequenos pedaços de película.
Quanto aos outros... Aos nossos amores de Pialat permanece um imenso filme, embora seja mal estruturado, mal decupado e, portanto ( quase forçosamente) mal montado ( nesse sentido, como separar – a não ser em relação ao documentário e ao filme improvisado- o que pertence à montagem e ao découpage? Os Oscars e Césars de montagem sempre me deram vontade de rir...). Em certos cineastas minuciosos ( tipo René Clair), o todo é mais o découpage que a montagem, e este é terminado antes mesmo da filmagem. Para uma série de grandes cineastas, o todo está antes nos atores do que na montagem ( assim, o caso de certos filmes de Doillon, Cukor, Ray ou Renoir, que era provavelmente o maior de todos, mas que não era um montador muito bom). Ganância, Soberba, A mulher na praia ( e também Que viva o México!) atingem os mais altos níveis de cinema, mesmo que seus autores não tenham podido controlar a montagem e tenham renegado a versão montada. E que dizer da montagem no filme com plano único ou em plano seqüência, tipo Jancso?
Ok, quase sempre é a montagem que cria o tempo do filme ( quando não se trata do plano seqüência ou do fluxo do plano curto), mas este tempo criado é o tempo no sentido de tempo, de ritmo, de duração, de respiração, mas quase nunca – ao contrário do que pretende Deleuze- o tempo no sentido de uma oposição presente-passado, flashback ou flash-forward. Jogando 5 com as palavras, como é seu hábito, Deleuze coloca esta tempo sob as sub-categorias da imagem-tempo.A relação presente-passado, quase sempre prevista no roteiro ( DeMille, Godard, Intolerância, As três luzes de Lang, François Ier) participa quase sempre de uma dialética: trata-se da imagem-movimento( com exceção de certos filmes de Resnais).
Apercebemo-nos que a imagem-tempo, tal como concebida por Deleuze, só existe muito raramente, e com freqüência não onde ele a situa. Hegel nos dizia que tudo era dialética, e portanto movimento. Às vezes, quando não percebemos o movimento dialético, é que ele se mostra de forma muito sutil, muito sub-repticiamente dissimulada. É o caso quando o diretor é genial. Filmes como La choette aveugle ( Ruiz, 1987) Puissance de la parole ( Godard, 1988) parecem à primeira vista magmas ( termo mais conveniente que o de imagem-tempo), mas um esforço de análise acaba por precisamente esclarecer as linhas desta dialética. Exagerando um pouco, eu diria que a existência da imagem-tempo não passa de um atestado das insuficiências do espectador, da minha portanto. Não há imagem-tempo na equação espaço-tempo ( com a exceção de Resnais) ou no neo-realismo, que Deleuze descreve erradamente como o preâmbulo da imagem-tempo. Segundo ele, o neo-realismo seria a “irrupção de imagens puramente óticas e sonoras ( tomo 2, pg. 9), como para um documentário bruto. Ora, na verdade, se o neo-realismo, evocando o magma bruto da realidade, oferece certas características do documentário, ele as perverte pela existência de um roteiro, pela música, pela intrusão de personagens principais, pelo sentido social, pelo pathos. O primeiro tema do neo-realismo é a relação do indivíduo com o mundo, do homem com a sociedade, é portanto a imagem-ação no sentido deleuziano, assim como o filme americano clássico. Com exceção do raro caso em que não haja um personagem principal, a identificação é soberana ( nos identificamos com o ladrão de bicicleta e com a criança). E o mesmo Ladrão, pela composição de uma luminosa atmosfera, que reflete o mood dos personagens, não está tão longe assim do expressionismo estudado na imagem-afecção. O indivíduo ( ou o casal) que se sente estrangeiro ao mundo mostrado, que luta contra ele, esquema típico do cinema-ação, nós o reencontramos em Viagem a Itália,Europa 51, Stromboli ( Deleuze tinha previsto esta objeção, mas se sai dessa enrascada por meio de uma pirueta: com os Bergman-Rossellinis, trata-se de um “cinema de clarividente”, e não mais de ação. Nova categoria a inserir na imagem-tempo, o cinema do clarividente... Mas Mr. Smith e Mr. Deeds são também clarividentes, e eles estão no meio do cinema da imagem-ação...), Alemanha ano zero, Roma, cidade aberta, Ladrão de bicicletas. O neo-realismo descrito por Deleuze é um neo-realismo idealizado, tal como deveria ser, tal como jamais existiu. Talvez haja exceções, o Umberto D... em minha opinião, a única verdadeira exceção se situa em 1968, no período posterior ao neo-realismo, com Fuoco de Baldi, magma fundado sobre a pulsão e aparentemente desprovido de dialética.
Ok, quase sempre é a montagem que cria o tempo do filme ( quando não se trata do plano seqüência ou do fluxo do plano curto), mas este tempo criado é o tempo no sentido de tempo, de ritmo, de duração, de respiração, mas quase nunca – ao contrário do que pretende Deleuze- o tempo no sentido de uma oposição presente-passado, flashback ou flash-forward. Jogando 5 com as palavras, como é seu hábito, Deleuze coloca esta tempo sob as sub-categorias da imagem-tempo.A relação presente-passado, quase sempre prevista no roteiro ( DeMille, Godard, Intolerância, As três luzes de Lang, François Ier) participa quase sempre de uma dialética: trata-se da imagem-movimento( com exceção de certos filmes de Resnais).
Apercebemo-nos que a imagem-tempo, tal como concebida por Deleuze, só existe muito raramente, e com freqüência não onde ele a situa. Hegel nos dizia que tudo era dialética, e portanto movimento. Às vezes, quando não percebemos o movimento dialético, é que ele se mostra de forma muito sutil, muito sub-repticiamente dissimulada. É o caso quando o diretor é genial. Filmes como La choette aveugle ( Ruiz, 1987) Puissance de la parole ( Godard, 1988) parecem à primeira vista magmas ( termo mais conveniente que o de imagem-tempo), mas um esforço de análise acaba por precisamente esclarecer as linhas desta dialética. Exagerando um pouco, eu diria que a existência da imagem-tempo não passa de um atestado das insuficiências do espectador, da minha portanto. Não há imagem-tempo na equação espaço-tempo ( com a exceção de Resnais) ou no neo-realismo, que Deleuze descreve erradamente como o preâmbulo da imagem-tempo. Segundo ele, o neo-realismo seria a “irrupção de imagens puramente óticas e sonoras ( tomo 2, pg. 9), como para um documentário bruto. Ora, na verdade, se o neo-realismo, evocando o magma bruto da realidade, oferece certas características do documentário, ele as perverte pela existência de um roteiro, pela música, pela intrusão de personagens principais, pelo sentido social, pelo pathos. O primeiro tema do neo-realismo é a relação do indivíduo com o mundo, do homem com a sociedade, é portanto a imagem-ação no sentido deleuziano, assim como o filme americano clássico. Com exceção do raro caso em que não haja um personagem principal, a identificação é soberana ( nos identificamos com o ladrão de bicicleta e com a criança). E o mesmo Ladrão, pela composição de uma luminosa atmosfera, que reflete o mood dos personagens, não está tão longe assim do expressionismo estudado na imagem-afecção. O indivíduo ( ou o casal) que se sente estrangeiro ao mundo mostrado, que luta contra ele, esquema típico do cinema-ação, nós o reencontramos em Viagem a Itália,Europa 51, Stromboli ( Deleuze tinha previsto esta objeção, mas se sai dessa enrascada por meio de uma pirueta: com os Bergman-Rossellinis, trata-se de um “cinema de clarividente”, e não mais de ação. Nova categoria a inserir na imagem-tempo, o cinema do clarividente... Mas Mr. Smith e Mr. Deeds são também clarividentes, e eles estão no meio do cinema da imagem-ação...), Alemanha ano zero, Roma, cidade aberta, Ladrão de bicicletas. O neo-realismo descrito por Deleuze é um neo-realismo idealizado, tal como deveria ser, tal como jamais existiu. Talvez haja exceções, o Umberto D... em minha opinião, a única verdadeira exceção se situa em 1968, no período posterior ao neo-realismo, com Fuoco de Baldi, magma fundado sobre a pulsão e aparentemente desprovido de dialética.
Deleuze- o delusivo 6 Deleuze- dá às palavras significações que não tem nada a ver com as significações correntes. Ok. Mas o hic é que, no calor do discurso, ele re-introduz estas palavras com seu sentido corrente e assim conforta suas teses, assegurado da aprovação do leitor, que vai coincidir plenamente com as reaparições “aliviantes” da palavra em seu sentido banal. Se seguirmos a lógica deleuziana, seríamos levados a reconhecer que Ladrão de bicicleta e Viagem a Itália permanecem perfeitos exemplos de imagem-ação. Mas como há pouca ação nestes fIlmes, podemos aceitar mais facilmente a exclusão dos mesmos desta categoria. Da mesma forma, seríamos tentados a incluir os Dez mandamentos de 1956 na grande forma do cinema-ação, por ser um filme caríssimo e espetacular. Mas a grande forma, isto é, a passagem do geral ao individual, inexiste neste filme, pois Moisés não possui um comportamento que o individualize e permanece o perfeito autômato a serviço do Deus cristão. Como o filme se lambuza no geral, sem jamais dele sair, poderíamos sustentar que não se trata de imagem-ação, mas de imagem-tempo, com este magma típico das altas esferas do dogma religioso convencional e da estilística sulpiciana 7. Não vou aliás tão longe, pois este querido filme se funda sobre uma linha dialética muito pobre: o Deus cristão contra o Deus egípcio. Mas eu sustento vigorosamente que um filme recheado de ação como A guerra do fogo, precisamente por não ser nada além de ação, não pertence à imagem-ação ( pela falta de uma dialética entre a ação particular e a situação geral),e ainda menos trata-se de um filme da grande forma; trata-se de um filme da imagem-tempo, pois eu o sinto como um magma puro.E finalmente, um dos melhores exemplos do cinema-ação da grande forma é, não uma superprodução, mas um filme relativamente pobre, Jeux interdits, com quinze minutos de guerra violentíssima em seu começo, e em seguida o itinerário íntimo de duas crianças.
Outra vez Deleuze troca as bolas com suas definições contraditórias. Vimos isto com a dialética passado-presente, classificada de forma abusiva na imagem-tempo ( quando esta dialética é frequentemente da ordem do movimento); e o duo naturalismo-naturalista, Paul, Emile ( Zola) e Virginie. Ou ainda, quando ele fala da crise da imagem-ação, refere-se unicamente ao cinema americano, por ser um cinema fundado sobre a ação. Ao invés de falar em imagem-movimento e imagem-tempo, seria melhor falarmos, por exemplo, de nelbugoz e de dagmalouak, isto teria lhe poupado muitas contradições...
Ele dedica um capítulo à imagem-cristal. O cristal, para Deleuze, é o aspecto multifaces, estilo Ophuls, Dama de Shangai, a polivalência barroca. Mas pouco depois ( tomo 2. pág. 176), fala de “descrições óticas e sonoras, puras, cristalinas”. O termo cristal designa aqui portanto a pureza, a limpidez. Multifaces e limpidez: dois sentidos muito diferentes.
Ele retoma aí os jogos de palavras godardianos ( sem o humor), abusivamente transferidos da esfera artística para a filosófica, que deveria ser a de Deleuze. Da mesma forma, ele coloca a pulsão na imagem-movimento, antes de se contradizer, feliz e inconscientemente, afirmando no cadre do estudo da imagem-tempo ( tomo 2, pág. 207): “ O Todo não é mais o Logos que unifica as partes, mas a embriaguês,o pathos que as banha e se espalha por elas”. Me sinto no direito de aproximar a noção de pulsão daquela de embriaguês e pathos, e portanto de deduzir que a pulsão seria, não da imagem-movimento, mas uma forma do todo, e imagem-tempo.
Ao fim das contas, se fizéssemos um inventário das situações da imagem-tempo, poderíamos definir cinco sub-grupos:
- O todo definido pela montagem, que repousa ( o próprio Deleuze o reconhece) sobre movimentos dialéticos prévios, e que, em geral, apenas os “re-copia” de forma servil;
- o todo definido pela montagem, que se exprime pela criação de um tempo resultante de linhas dialéticas temporais ( adágio-allegro), que Deleuze estuda de forma muito apressada, também elas avalizadas pela montagem;
- o todo definido pela montagem, que se exprime pela criação de um tempo sem dialética; trata-se talvez do caso de Pagnol, Rozier, Leone, esquecidos por Deleuze, de Duras ( que ele evoca na Imagem-tempo, mas sobretudo para assinalar seus movimentos dialéticos entre som e imagem, entre voz off e voz on, sem estudar seu trabalho sobre a respiração do filme), e enfim de Stroheim ( que ele limita, por um contra-senso flagrante, ao naturalismo, sem analisar o status da duração em sua obra);
- a montagem totalizante que destrói- caso raríssimo- as veleidades dialéticas do roteiro ( Wild river);
- o todo definido pela montagem, e que exclui a dialética; entraria aqui o cinema experimental, Michael Snow, Serge Bard, Carmelo Bene, a Cicatriz interior de Garrel, a Femme du Ganges ( Duras), a Vingança de Kriemhilde ( Lang), Honeymoon killers ( Kastle), a Idade da terra ( Rocha), Jeanne au bûcher ( Rossellini) e também alguns nabos espetaculares do tipo Guerra do fogo ou superproduções americanas ( o espantoso Evil dead) que são apenas seqüências de atos violentos.
De fato, estes três últimos setores são os únicos que correspondem à imagem-tempo deleuziana, e são apenas parcialmente analisados por Deleuze, que se contenta com observações muito pertinentes sobre Snow e Bene. É preciso dizer, em sua defesa, que é difícil escrever sobre esses filmes, que oferecem uma superfície muito escorregadia, pouco propícia à glosa.
A imagem-tempo compreende, portanto, filmes ambiciosos e de qualidade- que merecem amplamente que nos debrucemos sobre eles-, mas que constituem apenas uma parte ínfima da produção de filmes interessante e uma parte ainda mais ínfima do conjunto da produção. Separar a imagem-tempo da imagem-movimento, o magma da dialética, é portanto um exercício um pouco vão ( até porque às vezes os dois se encontram no mesmo filme). Ainda mais vão me parece opô-los: é David e Golias, o pote de barro e o de ferro, o 2D e o 3D. Quer se trate do tempo ou do movimento, com centro ou sem centro, isso não vai nos levar muito longe.
Podemos nos espantar então que a Imagem-tempo contenha cem páginas a mais que a Imagem-movimento. Deleuze deve ter tido medo que seu Imagem-tempo fosse muito curto, recheou o quanto pôde o seu livro de coisas aqui e ali, em ordem aleatória, ao que parece. Os três últimos capítulos da Imagem-tempo ( pensamento, corpo e cérebro, componentes), que ultrapassam constantemente suas barreiras entre si, são os melhores ( ainda que o fio de Ariadne seja bem artificial, com classificações arbitrárias: Doillon unicamente colocado sob a rubrica corpos): aqui, Deleuze não desperdiça tinta, tentando inserir suas matérias em uma das duas grandes malhas conceituais.
Na verdade, me parece que os dois títulos estão lá porque “soam bem”, para ajudar Deleuze a vender seu peixe- um intrusivo ( e inconsciente) MacGuffin, um pouco como o título Pierrot le fou atraiu dinheiro e multidão para o filme de Godard, sem que o filme mostre uma única vez o célebre bandido homônimo. O trágico em Deleuze é que ele entulha seus capítulos injetando filmes e teses sem ligação com o assunto, mas tem uma hora que lhe dá a vontade de foder com tudo ( a repetição buñueliana no interior do naturalismo, o naturalismo no interior da pulsão...). Encher lingüiça,- vc tem de encher, se quiser cobrir a totalidade do cinema em 700 páginas-, então se cola uma única etiqueta, forçosamente equivocada, em cada um: Mizoguchi pequena forma, Ford grande forma, Vidor naturalista ( assim como há o mestre do suspense, o plano no nível tatami de Ozu, as vacas gorduchas fellinianas). Ainda a mania patológica da classificação! A razão disso também é que Deleuze quer conferir ao cinema um prestígio de que este não tem a mínima necessidade, referindo-o a seus conceitos bergsonianos. Seria antes Bergson, filósofo sem público ( e cinófobo) quem ganharia com o cinema! Mas os pensadores extra-fílmicos adoram este gênero de equação que os valoriza: há pouco tempo, um cara bizarro consagrou todo um livro para provar que Virgílio era pré-cinema, porque a escritura da Eneida evocava a de um découpage...
Ele retoma aí os jogos de palavras godardianos ( sem o humor), abusivamente transferidos da esfera artística para a filosófica, que deveria ser a de Deleuze. Da mesma forma, ele coloca a pulsão na imagem-movimento, antes de se contradizer, feliz e inconscientemente, afirmando no cadre do estudo da imagem-tempo ( tomo 2, pág. 207): “ O Todo não é mais o Logos que unifica as partes, mas a embriaguês,o pathos que as banha e se espalha por elas”. Me sinto no direito de aproximar a noção de pulsão daquela de embriaguês e pathos, e portanto de deduzir que a pulsão seria, não da imagem-movimento, mas uma forma do todo, e imagem-tempo.
Ao fim das contas, se fizéssemos um inventário das situações da imagem-tempo, poderíamos definir cinco sub-grupos:
- O todo definido pela montagem, que repousa ( o próprio Deleuze o reconhece) sobre movimentos dialéticos prévios, e que, em geral, apenas os “re-copia” de forma servil;
- o todo definido pela montagem, que se exprime pela criação de um tempo resultante de linhas dialéticas temporais ( adágio-allegro), que Deleuze estuda de forma muito apressada, também elas avalizadas pela montagem;
- o todo definido pela montagem, que se exprime pela criação de um tempo sem dialética; trata-se talvez do caso de Pagnol, Rozier, Leone, esquecidos por Deleuze, de Duras ( que ele evoca na Imagem-tempo, mas sobretudo para assinalar seus movimentos dialéticos entre som e imagem, entre voz off e voz on, sem estudar seu trabalho sobre a respiração do filme), e enfim de Stroheim ( que ele limita, por um contra-senso flagrante, ao naturalismo, sem analisar o status da duração em sua obra);
- a montagem totalizante que destrói- caso raríssimo- as veleidades dialéticas do roteiro ( Wild river);
- o todo definido pela montagem, e que exclui a dialética; entraria aqui o cinema experimental, Michael Snow, Serge Bard, Carmelo Bene, a Cicatriz interior de Garrel, a Femme du Ganges ( Duras), a Vingança de Kriemhilde ( Lang), Honeymoon killers ( Kastle), a Idade da terra ( Rocha), Jeanne au bûcher ( Rossellini) e também alguns nabos espetaculares do tipo Guerra do fogo ou superproduções americanas ( o espantoso Evil dead) que são apenas seqüências de atos violentos.
De fato, estes três últimos setores são os únicos que correspondem à imagem-tempo deleuziana, e são apenas parcialmente analisados por Deleuze, que se contenta com observações muito pertinentes sobre Snow e Bene. É preciso dizer, em sua defesa, que é difícil escrever sobre esses filmes, que oferecem uma superfície muito escorregadia, pouco propícia à glosa.
A imagem-tempo compreende, portanto, filmes ambiciosos e de qualidade- que merecem amplamente que nos debrucemos sobre eles-, mas que constituem apenas uma parte ínfima da produção de filmes interessante e uma parte ainda mais ínfima do conjunto da produção. Separar a imagem-tempo da imagem-movimento, o magma da dialética, é portanto um exercício um pouco vão ( até porque às vezes os dois se encontram no mesmo filme). Ainda mais vão me parece opô-los: é David e Golias, o pote de barro e o de ferro, o 2D e o 3D. Quer se trate do tempo ou do movimento, com centro ou sem centro, isso não vai nos levar muito longe.
Podemos nos espantar então que a Imagem-tempo contenha cem páginas a mais que a Imagem-movimento. Deleuze deve ter tido medo que seu Imagem-tempo fosse muito curto, recheou o quanto pôde o seu livro de coisas aqui e ali, em ordem aleatória, ao que parece. Os três últimos capítulos da Imagem-tempo ( pensamento, corpo e cérebro, componentes), que ultrapassam constantemente suas barreiras entre si, são os melhores ( ainda que o fio de Ariadne seja bem artificial, com classificações arbitrárias: Doillon unicamente colocado sob a rubrica corpos): aqui, Deleuze não desperdiça tinta, tentando inserir suas matérias em uma das duas grandes malhas conceituais.
Na verdade, me parece que os dois títulos estão lá porque “soam bem”, para ajudar Deleuze a vender seu peixe- um intrusivo ( e inconsciente) MacGuffin, um pouco como o título Pierrot le fou atraiu dinheiro e multidão para o filme de Godard, sem que o filme mostre uma única vez o célebre bandido homônimo. O trágico em Deleuze é que ele entulha seus capítulos injetando filmes e teses sem ligação com o assunto, mas tem uma hora que lhe dá a vontade de foder com tudo ( a repetição buñueliana no interior do naturalismo, o naturalismo no interior da pulsão...). Encher lingüiça,- vc tem de encher, se quiser cobrir a totalidade do cinema em 700 páginas-, então se cola uma única etiqueta, forçosamente equivocada, em cada um: Mizoguchi pequena forma, Ford grande forma, Vidor naturalista ( assim como há o mestre do suspense, o plano no nível tatami de Ozu, as vacas gorduchas fellinianas). Ainda a mania patológica da classificação! A razão disso também é que Deleuze quer conferir ao cinema um prestígio de que este não tem a mínima necessidade, referindo-o a seus conceitos bergsonianos. Seria antes Bergson, filósofo sem público ( e cinófobo) quem ganharia com o cinema! Mas os pensadores extra-fílmicos adoram este gênero de equação que os valoriza: há pouco tempo, um cara bizarro consagrou todo um livro para provar que Virgílio era pré-cinema, porque a escritura da Eneida evocava a de um découpage...
Vocês podem me achar muito severo em relação a Deleuze, mas é que seu verniz filosófico mascara suas qualidades. Deleuze pode ser apaixonante, vivificante, se evacuarmos suas histórias de movimento e de tempo. Deleuze é um Skorecki que se toma por Spinoza...Quanto mais o sistema é nulo, mais as percepções pontuais são excitantes, tonificantes ( não sempre, mas frequentemente).
Em primeiro lugar, é talvez o primeiro historiador do cinema que se apóia exclusivamente sobre bons filmes ou filmes ambiciosos, no presente imediato ( Syberberg, Straub, Jacquot, Eustache, Garrel) e no passado. Enquanto que Metz, Cohen-Séat, Marcel Martin e Rijon se comprazem com as nulidades. Com Deleuze, estamos sempre em boa companhia, em família. Deleuze é cinéfilo, e ama o bom cinema.
Por outro lado, ele sabe degustar, sobretudo em revistas um pouco esquecidas como a Cinématographe e Études Cinematographiques, as mais interessantes fórmulas concernentes a um filme, fazer uma síntese das melhores citações, vindas de fontes bem variadas, sobre um autor. E sobretudo, o próprio Deleuze exprime seus pontos de vista originais sobre obras, em geral bem oblíquas. Quase sempre são opiniões jogadas às cegas, em impromptus 8, mal colocadas, mal expressas e mal desenvolvidas em poucos parágrafos ( o sumário final é mais útil para seguir o pensamento de Deleuze que o próprio texto...); mas que importa...
Por exemplo, há observações que oferecem um primeiro esforço de síntese, que abrem horizontes, sobre a crise da imagem-ação na América, ligada a cinco fatores: a “situação dispersiva” (multiplicação dos personagens), “ as ligações deliberadamente frágeis”, a “forma-balada”, “ a tomada de consciência dos clichês” e “a denunciação do complot”( p.283).
Ou ainda sobre Sternberg: “A luz não tem mais nada a ver com as trevas, mas com a transparência, ou translúcido ou o branco. Portanto, os cortinados e os véus de Sternberg se distinguem profundamente dos cortinados e dos véus do expressionismo, e seus flous do chiaroescuro deste. Não mais a luta das luzes contra as trevas, mas a aventura da luz com o branco: é o anti-expressionismo de Sternberg.” ( p. 133)
Ou ainda sobre Duras versus Straub: “A primeira diferença seria que, para Duras, o ato da palavra a atingir é o amor total ou o desejo absoluto. (...). A segunda diferença consiste em uma liquidez que marca cada vez mais a imagem visual em Duras. (...). A imagem visual, à diferença dos Straub, tende a ultrapassar seus valores estratigráficos ou arqueológicos em direção a uma calma potência fluvial e marítima que representa o Eterno”.( tomo 2, p.337).
Deleuze é homem da observação pontual, da comparação ( bem godardiana) , não da teoria totalizante. A bem dizer, esta nunca deu grande coisa no domínio do cinema, com exceção da fabricada pelos cineastas em sua obra pessoal. Difícil imaginar uma teoria global da literatura. Acreditaram que poderia haver uma para o cinema por este, quando de seu nascimento, existir em um espaço muito restrito, ainda mais limitado pelas contingências econômicas. Os anos, o desenvolvimento internacional e a popularização do exercício fílmico destruíram esta ilusão totalizadora. O geral é um engodo. Apenas existe o local, o pontual. As grande teorias do cinema se limitam a ser um “Abre-te Sésamo”, uma fórmula para tudo e para nada, uma chave: a montagem interdita baziniana, a câmera-caneta de Astruc, o travelling como questão de moral
( Godard), a dialética Ageliana do cinema como oferta( oblatif) 9 ou como captura ( capitatif), o cinema de prosa e o cinema de poesia pasoliniano, o olhar à altura do olho hawksiano, o cinema-emoção fulleriano- ou como dizia Auriol, “o cinema é a arte de fazer belas coisas a belas mulheres”.
Em primeiro lugar, é talvez o primeiro historiador do cinema que se apóia exclusivamente sobre bons filmes ou filmes ambiciosos, no presente imediato ( Syberberg, Straub, Jacquot, Eustache, Garrel) e no passado. Enquanto que Metz, Cohen-Séat, Marcel Martin e Rijon se comprazem com as nulidades. Com Deleuze, estamos sempre em boa companhia, em família. Deleuze é cinéfilo, e ama o bom cinema.
Por outro lado, ele sabe degustar, sobretudo em revistas um pouco esquecidas como a Cinématographe e Études Cinematographiques, as mais interessantes fórmulas concernentes a um filme, fazer uma síntese das melhores citações, vindas de fontes bem variadas, sobre um autor. E sobretudo, o próprio Deleuze exprime seus pontos de vista originais sobre obras, em geral bem oblíquas. Quase sempre são opiniões jogadas às cegas, em impromptus 8, mal colocadas, mal expressas e mal desenvolvidas em poucos parágrafos ( o sumário final é mais útil para seguir o pensamento de Deleuze que o próprio texto...); mas que importa...
Por exemplo, há observações que oferecem um primeiro esforço de síntese, que abrem horizontes, sobre a crise da imagem-ação na América, ligada a cinco fatores: a “situação dispersiva” (multiplicação dos personagens), “ as ligações deliberadamente frágeis”, a “forma-balada”, “ a tomada de consciência dos clichês” e “a denunciação do complot”( p.283).
Ou ainda sobre Sternberg: “A luz não tem mais nada a ver com as trevas, mas com a transparência, ou translúcido ou o branco. Portanto, os cortinados e os véus de Sternberg se distinguem profundamente dos cortinados e dos véus do expressionismo, e seus flous do chiaroescuro deste. Não mais a luta das luzes contra as trevas, mas a aventura da luz com o branco: é o anti-expressionismo de Sternberg.” ( p. 133)
Ou ainda sobre Duras versus Straub: “A primeira diferença seria que, para Duras, o ato da palavra a atingir é o amor total ou o desejo absoluto. (...). A segunda diferença consiste em uma liquidez que marca cada vez mais a imagem visual em Duras. (...). A imagem visual, à diferença dos Straub, tende a ultrapassar seus valores estratigráficos ou arqueológicos em direção a uma calma potência fluvial e marítima que representa o Eterno”.( tomo 2, p.337).
Deleuze é homem da observação pontual, da comparação ( bem godardiana) , não da teoria totalizante. A bem dizer, esta nunca deu grande coisa no domínio do cinema, com exceção da fabricada pelos cineastas em sua obra pessoal. Difícil imaginar uma teoria global da literatura. Acreditaram que poderia haver uma para o cinema por este, quando de seu nascimento, existir em um espaço muito restrito, ainda mais limitado pelas contingências econômicas. Os anos, o desenvolvimento internacional e a popularização do exercício fílmico destruíram esta ilusão totalizadora. O geral é um engodo. Apenas existe o local, o pontual. As grande teorias do cinema se limitam a ser um “Abre-te Sésamo”, uma fórmula para tudo e para nada, uma chave: a montagem interdita baziniana, a câmera-caneta de Astruc, o travelling como questão de moral
( Godard), a dialética Ageliana do cinema como oferta( oblatif) 9 ou como captura ( capitatif), o cinema de prosa e o cinema de poesia pasoliniano, o olhar à altura do olho hawksiano, o cinema-emoção fulleriano- ou como dizia Auriol, “o cinema é a arte de fazer belas coisas a belas mulheres”.
Luc Moullet, La Lettre du cinéma número 15, automne 2000).
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Notas do tradutor:
1. cu de bacia: Homem que teve ambas as pernas amputadas.
2. Deformação irônica da ortografia com sentido hiperbólico; enorme.
3. Magellan. Sonda espacial francesa, lançada em 1985, cujo nome é uma homenagem ao navegador português Fernão de Magalhães.
4. Astronauta, piloto de testes e aviador americano, foi o primeiro homem a pousar na Lua.
5. en jouant avec les mots. Jogando, brincando com as palavras, no sentido de jogos semânticos, ambigüidades, metáforas, etc
6. De delusão: iludido, logrado. Jogo de palavras entre Deleuze e delusive, ou iludido, enganado.
7. Iconografia católica típica de igrejas francesas construídas no século 19, século que conheceu uma renovação da fé católica no país.
8. Improvisos.
9. oblatif: palavra derivada do latim oblativus ( que se oferece por si mesmo, que se doa, voluntário). Altruísta, devotado.
7 comentários:
Demolição de Deleuze pelo Moullet, sem dúvida (aliás, muito bem-vinda)… mas apenas em sentido humorístico! Em sentido crítico, nem tanto. Basta reparar que Moullet confunde (de propósito?) naturalismo filosófico (que é o usado nas “lixeiras verdes” por Deleuze, que aliás se reclama dessa tradição) com “representação naturalista”. O que seria grave num texto crítico, não o é num texto cómico…
Nem de propósito, encontrei isto ontem: «Sans parler du plus beau chapitre du livre [L’image-mouvement], consacré à “l’image-pulsion” et au naturalisme de Stroheim et de Buñuel (auquel Deleuze aurait pu ajouter, s’il l’avait connu, Imamura).» por... Serge Daney!!!, «Nos amies les images», La maison-cinéma et le monde, 2. les années Libé, p. 491.
André
Você tem razão.
Mas me diga uma coisa:
O equívoco seria filosófico (uma questão de categoria), ou "crítico"? acho que essa confusão entre rigor sistemático (os conceitos de matriz filosófica) e rigor crítico (da tradição da crítica de cinema, que lida com a matéria dos filmes).
Na crítica (na grande crítica) muitas vezes acontecem erros na administração de conceitos filosóficos, enquanto quando se parte da filosofia (sobretudo do pântano dessa filosofia pós-moderna), muitas vezes os conceitos importam mais que...os filmes. Esse é o grande problema hoje na crítica. Joga-se o filme à vala em favor da boa administração de conceitos, que muitas vezes é só má filosofia e péssima crítica, mas que aparece como boa performance intelectual.
A boa crítica sempre incitou polêmicas e não raro cometeu impropérios (filosóficos) e generalizações em favor do desvelamento de embustes, como é o caso do tipo de uso que se faz de Deleuze em crítica de cinema, sobretudo na universidade. Não é função dela ser disciplina filosófica, ela sempre foi mais um gênero literário muito mais próximo da crônica do que algo sistemático e de postura científica.
Acho que hoje se submete o exercício crítico a essa postura científica e isso tem gerado monstros que administram muito bem os conceitos, mas com o prejuízo de perder os filmes de vista.
Não é questão de ignorar esses erros, mas sim de entender efetivamente o que está em jogo. E isso você ignorou, pois se preocupou mais com o erro conceitual do que com o gesto crítico.
Obrigado pela interpelação, Francis. Concordo com muito do que diz, mas creio que você erra o alvo. Tentarei (e falharei) a concisão explicando porquê...
Nesta espécie de sátira sobre a ambição desmedida de Deleuze, o equívoco de Moullet sobre o “naturalismo” é total. (E será único? Seria interessante percorrer de novo ambos os textos e declinar, caso a caso, uma avaliação da “leitura” de Moullet.) De tão grosseiro, esse erro – partindo do pressuposto que não é perversamente voluntário (o que seria genial!) – só é mesmo aceitável enquanto jogo humorístico. (Tal é a minha generosidade.) Não funciona em qualquer outro plano, seja conceptual filosófico seja crítico (a não ser que Moullet queira impor o seu “naturalismo” à força). Desde logo, o equívoco nem existiria caso Moullet tivesse efetivamente lido Deleuze sobre o “naturalismo”, quer dizer, se tivesse remexido bem no fundo do lixo das lixeiras verdes, como faz com os filmes...
Mesmo aceitando uma suposta leviandade intrínseca do “gesto crítico”, é um ensaio filosófico que está sendo “criticado”, não um filme, portanto, as “matérias” a ter atenção são outras e diferentes (no fundo, se excluirmos o potencial cómico, resta um espelhamento das leituras teóricas que desprezam a matéria do filme). É raro o olhar treinado para ambas... E que jogo é esse em que você rejeita um texto qualquer pelo seu estatuto (filosófico)? Que jogo é esse em que você satiriza uma concepção sem ler? (Daney, é verdade, nunca viu KAPO, mas, não sendo menos “crítico” que Moullet, não interpreta mal “naturalismo”...) Qual a função do texto de Moullet neste contexto?
Sem dúvida, a crítica cinematográfica requer uma destreza que sobrevoa muitos detalhes e o exercício do rigor conceptual pode “matar” a espontaneidade desses textos. Impropérios e incorreções são até bem vindos, mas convém que tenham originalidade e força. (Como dizia Michaux, a ideia errada é “dinamogénea”, que dizer, gera uma dinâmica. Mas tem muito batoteiro se fazendo passar por traidor...)
Posso dar um exemplo daquilo que você chama de “erro na administração” de conceitos filosóficos (que não são estanques e são usados no quotidiano com saudável imprecisão) na célebre fórmula que resume toda uma cinefilia: «o travelling é uma questão de moral». Não deveria ser “ética” em vez de “moral” aquilo a que Moullet e depois Godard se referem? Precisamente, não estão remetendo para nenhuma transcendência ao próprio cinema; pelo contrário, essa “moral” é dada na imanência do movimento de câmara aos demais elementos humanos do plano cinematográfico, criando sua própria “lei”...
Vou deixar passar essa da filosofia “pós-moderna” do Deleuze – que deve ter virado o cara no túmulo! – para concordar em absoluto com a sua caracterização dos abusos da teoria que despreza a primazia da matéria do filme; e, sobretudo, da que despreza a própria experiência (emocional e intelectual) do espectador(-crítico-teórico). Parece-me fundamental sublinhar esta continuidade entre a experiência do espectador, a crítica e a teoria, mesmo a de natureza filosófica (que, por exemplo, nos escritos de alguém como Hartmut Bitomsky é bem evidente: seus belíssimos textos críticos são simultaneamente uma forma de teoria e constituem os guiões dos seus filmes).
Se a boa crítica sempre incitou polémicas, também acabou se deixando enganar pelos efeitos delas, como se estes fossem suficientes para constituir a matéria viva da crítica. Por mim, prefiro evitar a polémica fácil, a não ser quando a instância crítica de dizer o óbvio se torna um escândalo.
Outra coisa nefasta que vem associada a essa retórica da polémica é o fervor do entusiasmo, verdadeiro tropo lamentável da crítica. Meu desejo era escrever sem qualquer bengala desse entusiasmo, que enche os textos de enlevos retóricos e péssima poetização. Só com essa articulação entre polémica e entusiasmo você já caracteriza muito do mal da crítica contemporânea iluminada, digo, da melhor, tanto instalada (que a usa como simulacro) como marginal (que a usa como estertor indignado).
E, em parte, é esse o problema. Você encontra uma cinefilia que se tornou mesquinha e, a meu ver, completamente anacrónica, que quer manter sua pequenez (polémica e entusiasta) – a do cara que vê o mundo todo através dos filmes – e que fica incomodado com qualquer coisa (política, filosofia, etc.) que o force a sair da caixinha que inventou para si mesmo... Essa crítica cinéfila mesquinha se deixa, muito clara e facilmente, intimidar com a teoria (tanto a boa como a má, indiferentemente), de um modo que, por exemplo, Daney – que tratava Deleuze como um igual – nunca deixou.
Me parece infeliz, mas talvez inevitável, confundir o uso que se faz de Deleuze com os seus próprios escritos. Talvez ele seja de culpar por ter permitido que se tornassem vulgata. (É por isso gosto tanto de autores obscuros, que não se prestam a apropriações fáceis.) Neste sentido, sinto muitas vezes que é preciso defender Deleuze – que era claramente um cinéfilo – contra os seus defensores – que não o são –, mais do que contra os que o desprezam! (Mas também Moullet tem muitos “amigos” interesseiros que vivem longe da sua genialidade...)
O que acho importante sublinhar é o quanto Deleuze lida efetivamente com a matéria dos filmes singulares, facto que escapa tanto aos seus seguidores como aos detratores. (Nas conferências, você encontra muita gente falando de imagem-tempo, mas nunca ninguém cita a página maravilhosa sobre M. KLEIN de Losey.) Ele o faz numa articulação – inaudita de ambição – entre um abstracto filosófico e um concreto cinematográfico, ou melhor, entre dois concretos: um concreto filosófico e o concreto da matéria do filme. Criando um contínuo entre esses concretos, ele se permite então oferecer uma classificação, necessariamente parcial, das imagens cinematográficas.
E não tem livro de Deleuze mais apoiado em outras fontes (basta contar as notas de pé de página!) que os livros de Deleuze sobre o cinema; essas referências externas são, na sua esmagadora maioria, críticas de cinema (Positif, Cahiers, etc.). Essas lixeiras foram, literal e inevitavelmente, construídas sobre os ombros – no reconhecimento da importância fundamental – de toda uma tradição – várias, mesmo – da crítica cinematográfica.
Enfim, você parece acusar-me de não entender e ignorar efetivamente o que está em jogo. Mas o erro de Moullet – que eu saiba – não tinha sido ainda mencionado por ninguém. Gostando de Deleuze e de Moullet, creio imodestamente que entendo o problema, o que está em causa. É como quando você apresenta dois amigos seus e eles não simpatizam um com outro. Com os cineastas se passa o mesmo: não é porque Welles recusa Rossellini que você se vê forçado a escolher entre os dois. Tem verdadeiros inimigos que se amam mais do que falsos amigos. Então, como aquela garota na estação de trem de SAUVE QUI PEUT (LA VIE), eu recuso a escolha a que me obrigam, mesmo no tapa. Recuso essa escolha arbitrária, partidária ou facciosa, de uma articulação binária de falsas alternativas, entre um e outro. Sobretudo, recuso a escolha a que obrigam entre a generalização que se faz de ambos os gestos (teóricos ou críticos), como se estivessem enquistados e imunes um ao outro, inertes e improdutivos, mantendo perpetuamente as fronteiras que permitem aos anões parecerem mestres.
André
Faz sentido o que diz, mas não quero detratar nem a ti nem ao Deleuze, mas sim ao deleuzianismo no pensamento de cinema, que se tornou um álibi intelectual, assim como, sabemos, existe um repertório crítico (herdado dos Cahiers capa amarela) que se transformou em álibi e em plataforma de combate crítico, muitas vezes doutrinário como um catecismo.
Mas a questão que coloquei não é essa da crítica, mas sim de uma certa coação intelectual que eclipsa o debate e insiste em desqualificá-lo a partir de um rigor teórico que ignora os pontos chaves da discussão. Esse tipo de coação é puro abstracionismo intelectual: ignora-se as verdadeiras questões em jogo para instaurar uma polêmica de fundo estritamente intelectual, pelo bom uso de categorias e termos, e que na maior parte das vezes neutraliza o ponto central da discussão.
Não que eu esteja dizendo que erros conceituais devam ser ignorados, mas sim que seria importante entender o que, em uma dimensão maior, está em jogo no debate.
Essa estratégia de neutralizar discussões por meio de estratégias de coação teórica é, no fim das contas, uma deficiência contemporânea grave, porque esnobe e sem substância alguma. Uma deficiência, mais do que intelectual, uma deficiência do espírito: as questões objetivas, as proposições e questionamentos do intelecto (ou se preferir, do espírito) acabam sendo diminuídas perante o instrumental teórico e o abstracionismo filosófico. Se há uma filosofia que parte, como discussão, de um repertório conceitual e se esgota nele, essa é má filosofia e é o que as universidades fazem aos montes: burocracia intelectual.
A discussão do Moullet é um texto com humor, mas não humorístico. O grande pecado dele aos seus críticos é chamar as coisas pelo nome, menos no questionamento ao santo Gilles Deleuze, e mais no desvelamento dessa burocracia intelectual, desse pântano de conceitos que faz do nosso debate sobre cinema hoje em dia uma discussão de especialistas rigorosíssimos com suas ferramentas teóricas, mas como uma relação frouxa com os filmes. Teoria como álibi para o pensamento (quando deveria ser meio e instrumento, proposição e etc) é um performance sofisticada de farsa intelectual. É a supremacia do esprit de géométrie em cima do esprit de finesse.
Saudações,
Francis Vogner dos Reis
Talvez uma discussão seja produtiva apenas quando, na mistura e no equívoco, os problemas se confundem, mas fica tão cansativo... Gostava de compreender a que nos estamos referindo: se à leitura que faz Moullet de Deleuze, se ao uso de ambos nas “guerras de alecrim e manjerona” entre crítica e teoria... Não quero perder seu tempo, mas me parece que você está confundido — de propósito — os dois níveis. Recuso essa confusão, porque respeito demais a ambos e de menos a esses debates. Apontei um problema concreto no texto de Moullet, a meu ver, grave. Você me respondeu com caracterizações gerais: o uso defensivo da teoria, a diabolização da academia, etc. Me deixei levar uma vez, mas não faz sentido ficar discutindo fantasmas... Na verdade, nem estava pensando em você quando pensei nessa cinefilia mesquinha, mas você acabou enfiando a carapuça. E quando ouço alguém falar de “espírito”, depois de ficar arrepiado, saco logo meu revólver...
Quanto ao desastre do deleuzianismo, como deixei bem claro antes, estou totalmente de acordo. Faz muito anos que defendo — para aqueles (como eu) que não podem evitar ser deleuzianos — que nem sequer se deve mencionar seu nome...
Já quanto ao repertório crítico, não tem sentido responder a acusações veladas. Cada um escolhe as suas referências, as que pode e as que lhe impõem. E muitas vezes tais escolhas são bem frágeis, coisas mal lidas, aderências por simpatia, digamos assim. Também eu aderi, por simpatia, ao Daney e quase tudo o resto decorre desse encontro. Para mim, é ele o enigma crítico. Como me cruzei com Bazin bastantes vezes na minha pesquisa, é evidente que, por consequência, os Cahiers acabaram ganhando o seu lugar. Além de que a Cinemateca em Lisboa foi também um local de culto estrito dos Cahiers. (Que estes, no auge da sua loucura maoísta, tenham ainda assim defendido um filme como OTHON — ao contrário da Positif, por exemplo —, não os absolve de todos os seus erros e cegueiras, mas me consola.) Depois, tenho bastante alergia à “maiusculização” em geral e ainda mais à de termos como “Homem” ou “Herói”, o que me torna imprestável para outros cultos... No fundo, toda essa discussão em torno das heranças da crítica me deixa um pouco frio, excepto no que se refere a problemas concretos, como a recepção de Fuller em França. Me parece um caminho errado, uma punheta cansada, seguir essa via de mimetização das lutas da velha e agora estéril cinefilia. Preferia inventar uma nova. E não deixa de ser curioso escutar acusações de catecismo vindas de quem invoca o (santo) espírito. (Mas, talvez você tenha razão, e seja sobretudo de suspeitar dos acólitos que não usam as palavras do catecismo.) Confesso que vejo mais os filmes com o corpo. Se funcionam mesmo, saio da sala vendo e tocando o mundo tal como o realizador o cortou. Pensar neles é involuntário, só acontece quando sou forçado. De triunfos da vontade já está a academia e a crítica cheia…
Você acusa de certa coação intelectual e teórica que desqualifica o debate ignorando os pontos chaves da discussão, mas não encontrei nenhuma “verdadeira questão” crítica ou teórica em jogo nas suas respostas — algo que, suponho, pelo menos me obrigasse a reler o texto de Moullet! —, apenas tiradas pragmáticas e estratégicas sobre os campos respectivos da crítica e da teoria. É suposto ignorarmos o erro grosseiro de Moullet e saltar diretamente para a discussão dos seus objectivos maiores e mais nobres? Dom Quixote com os seus moinhos de vento? Sou, decididamente, mais Sancho Pança. Até porque esse salto é exatamente o que fazem os maus críticos de cinema, que esnobam a matéria cinematográfica em prol de sua suposta “dimensão maior”, a mensagem do que “está em jogo”. Me concentrei num detalhe importante, não fiquei fazendo observações em série e sérias sobre o texto de Moullet, que não eram (nem são) meu objectivo, até porque gosto do texto e não tenho problema algum com ele. Como diria o Hegel, quem fala abstracto aqui?
Mas, me diga então: quais são “as questões objetivas, as proposições e questionamentos do intelecto” aqui (na matéria do texto de Moullet) em causa? Que coisas ele chama pelos nomes? Você encontra nele um “desvelamento da burocracia intelectual”: é afinal esse o seu grande — oh, tão geral! — mérito crítico? Na minha opinião, nem eu nem alguma boa gente (nem sequer Deleuze) parte da filosofia para falar dos filmes. Mas, apesar disso, pensam os filmes num mundo em que os conceitos filosóficos também existem (ou têm de ser criados), não constituem a negação desse mundo e não estabelecem hierarquias (por exemplo, entre o pensamento visual e sonoro do testemunho em S21 de Rithy Panh e as reflexões verbais de Agamben sobre o tema, nenhuma ilustração, mas coabitação possível e necessária, talvez, da qual, ainda assim, em exercício crítico, seria preciso descrever como...) Na verdade, Deleuze e Moullet não deveriam servir nem para esses debates, que são o móbil da sua intervenção aqui, nem para essoutros exercícios de imitação académica lamentáveis.
No fundo, você até acaba sendo demasiado generoso com a academia. Muitas vezes ela nem tem relação alguma — frouxa ou não — com os filmes, que são meros exemplos quase escolhidos arbitrariamente, fria e “cientificamente”... Mas a própria crítica não existe no paraíso da justificação. Ela é já é uma excrescência da experiência direta do espectador. Este, senão mudo, pelo menos não tem porque falar do que acaba de ver. Nesse sentido, por relação à crítica, a teoria é apenas um grau maior dessa perversão, dessa abstração (sustentável ou não), mas cujo movimento é o mesmo e segue a mesma direção. A polémica e o entusiasmo, a que me referi anteriormente, são apenas modos de disfarçar essa mesma relação (frouxa) com filmes (também eles frouxos). A exaltação faz passar a imagem ou a impressão que você está sentido e pensando muita coisa, mas é tudo, nem digo falso, tépido e requentado. Ficam gritando para se fazerem ouvir, mas tão pouco que têm para dizer... Na verdade, poucos me dão hoje autêntico prazer de ler como, por exemplo, o Quintín no La lectora provisoria... (É verdade que nele a polémica não falta — embora seja quase inofensiva, essa violência argentina latente, pouco nefasta... mas ali, algo sem pretensões, se pensa.) Talvez você me queira dar outros exemplos contemporâneos?
Enfim, o que quis dizer acerca do texto de Moullet foi apenas que — dado o seu impressionante erro de leitura — a dimensão crítica é alcançável sobretudo através do humor. Nesse sentido, como você disse, o texto tem humor, mas não é humorístico. No entanto, porque temos consciência do seu erro e isso diminui bastante, a meu ver, o seu potencial crítico (pelo menos o que não advém do humor), a nossa leitura mais generosa só pode ser humorística... Agora, me pergunto se você quer mesmo discutir o texto de Moullet passo a passo. Tenho pouco tempo, mas posso relê-lo, confrontá-lo com os de Deleuze, se for útil para esclarecer todas estas confusões específicas, não as gerais... Porque se é para ter discussões gerais sobre a crítica e a teoria contemporânea, creio que devíamos encontrar outro lugar, e deixar o texto de Moullet descansar em paz no éter electrónico.
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