quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Intolerância, David W. Griffith




Antes de fazer Nascimento de uma nação, Griffith tinha terminado um melodrama intitulado The Mother and the Law, baseado no massacre de Ludlow, no Colorado, onde dezenas de grevistas de uma mina dos Rockfeller encontraram a morte. O filme apresenta também uma semelhança- mas trata-se apenas de uma coincidência- com o caso Stielow ( um condenado à morte fora salvo no último momento da cadeira elétrica pela confissão do culpado), que fez sensação na época do lançamento do filme. O sucesso colossal de Nascimento de uma nação, assim como certas críticas endereçadas pessoalmente a Griffith ( não o acusaram de racismo?), dispersaram suas ambições e o levaram a imaginar, a partir do núcleo de The mother and the law, um filme no qual o gigantismo e a mensagem de alcance universal impusessem o silêncio a todos. Ele estava decidido a enriquecer o melodrama contemporâneo por meio de três evocações, três metáforas históricas ( A Queda da Babilônia, a Crucificação de Cristo, a Noite de São Bartolomeu) que dariam ao conjunto uma amplidão espaço-temporal jamais vista. A filmagem iria durar 16 semanas e custar 400 000 dólares ( soma enorme para a época, que depois os historiadores multiplicarão generosamente por cinco). Cenários gigantescos foram construídos e, para as cenas que se desenrolam no cenário do palácio da Babilônia ( 45 metros de altura), Huck Workman, o cenarista principal, fabrica um “chariot” de travelling gigante, de 45 m igualmente, e do qual “ a plataforma no ápice, -escreve o operador Billy Bitzer-, mediria cerca de dois metros de lado, e não estava longe de ter 20 metros de largura na base.” A torre estava montada sobre seis jogos de bogies com quatro rodas tomadas de empréstimo a vagões ferroviários, e havia um elevador no meio. O chariot ( carro de vagão) se deslocava sobre trilhos posicionados à distância, oferecendo recuo suficiente para que a câmera englobasse o conjunto do cenário, sobre o qual estavam reunidos 5000 figurantes, e sobretudo os personagens situados em torno das grandes muralhas do palácio. Esta gigantesca “tour a roulettes” avançava e recuava sobre trilhos, impulsionada delicadamente por 25 manobras. Uma outra equipe assegurava o funcionamento do elevador, que deveria subir enquanto o “chariot” se deslocava para a frente. Os planos filmados com esta aparelhagem foram os mais espetaculares do filme.
A notar que, assim como Griffith trabalhava sem roteiro, os cenários construídos para o filme o foram sem plano de conjunto prévio. Eles foram se constituindo ao sabor das idéias e das cotidianas inovações do realizador. A metragem da película impressa durante a totalidade da filmagem equivalia a 76 horas de projeção, mas o filme, em seu lançamento, comportava 14 bobinas ( 13. 500 pés), ou seja, em torno de 3 horas de projeção. O sucesso, tanto na América quanto no estrangeiro, ficou longe de estar à altura das esperanças, e sobretudo do capital investido. O filme perdeu o equivalente à metade de seu orçamento, e deixou Griffith endividado por longo tempo. A fim de recuperar um pouco o dinheiro, ele remontou e lançou separadamente em 1919 o episódio moderno sob o título inicial, The mother and the law, e o episódio babiloniano sob o título The fall of Babylon. O insucesso do filme foi o golpe fatal para a Triangle, que tinha participado da produção. Ela foi dissolvida em 1918, depois de três anos de existência. ( No ano seguinte, Griffith iria fundar com Douglas Fairbanks, Mary Pickford e Chaplin, a Artistas Associados, que desapareceria sessenta anos mais tarde com outro retumbante fracasso comercial, Heaven’s gate de Cimino).
Ao longo dos anos, os historiadores permaneceram muito divididos em relação aos méritos da obra. Divididos não entre detratores e laudatores- ninguém negaria a envergadura única da obra-, mas divididos no interior de si mesmos e em relação às críticas e elogios que cada um faz ao filme. Embora admire o filme, Delluc fala de “tohu bohu inexplicável”, Mitry de “monumento construído sobre a areia”, Sadoul critica a “ideologia pretensiosa do grande homem, sua ausência total de senso do ridículo, seu pedantismo de autodidata”, etc. Ele ridiculariza o modo como os personagens são chamados, não sem cometer, ao mencioná-las, um monumental contra senso ( The Dear One torna-se a Querida Numero Um, The Friendless One vira A Abandonada Número um). Tirando alguns admiradores incondicionais, como Claude Beyllie, que estima que a única forma de entrever a unidade do filme é ao assimilá-lo ao poema de Whitman( que aliás inspira o leitmotiv visual da mulher com o berço), é sobretudo aos teoristas que o filme encanta, e sobretudo aqueles que prezam a análise das originalidades, as exceções, os grandes naufrágios da história do cinema, com o objetivo de, através deles, adivinhar o que poderia ter sido o cinema se tivesse tomado outros caminhos. Para eles, Intolerância é evidentemente o filme ideal, por representar o mais fabuloso impasse do cinema, aquele no qual, guiado por sua vitalidade instintiva, o cinema se preservou de perseverar. Tendo indicado um novo caminho para os cineastas do mundo inteiro, Intolerância não foi seguido nem imitado por ninguém ( salvo talvez por Buster Keaton em Three Ages, mas a título de paródia!). Mesmo os formalistas russos, sobre os quais o filme mais exerceu influência, em nosso conhecimento não se aventuraram em nenhum empreendimento análogo. Pierre Baudry resumiu bem ( em As aventuras da Idéia) em que consiste a unicidade do filme: “O que é problemático aqui antes de tudo é que, contrariamente à quase totalidade dos filmes da história do cinema, o princípio de organização de Intolerância se estabelece sobre um material deliberadamente heterogêneo (...). Que grupos de personagens e de situações que não tenham na realidade nada em comum se encontrem reunidos no mesmo espaço ( a tela da projeção) , este é o escândalo de Intolerância. (...). O filme de Griffith é o lugar de uma tensão entre a heterogeneidade do seu material ficcional e a racionalidade que o funda e unifica”.
Todo amador de cinema ( entendo do cinema tal como ele é e foi nas suas obras mais duráveis) vê bem que esta tensão, se tivesse se tornado a lei comum, teria sem dúvida provocado a morte desta arte tão frágil e ameaçada- justamente enquanto arte- a cada etapa de seu desenvolvimento. O cinema compreendeu que em duas, três ou mesmo quatro horas de projeção era-lhe impossível evocar, compreender e fazer compreender , e ainda menos ligar a uma intenção individual e particular, eventos históricos e políticos distintos, infinitamente complexos e – além do mais- situados em épocas diferentes. Ele compreendeu que sua vocação era ser um microscópio que serviria para escrutar territórios menores, às vezes territórios mais vastos, mas então estritamente limitados em seu cadre e suas perspectivas ( ver, neste sentido, o admirável rigor de um filme como o primeiro Dez mandamentos de DeMille, que repousa igualmente sobre uma metáfora entre diferentes épocas). Mais próximo da novela que do romance ou do afresco, mais próximo da peça em ato único que da tragédia em cinco atos, o cinema descobriu prematuramente em sua história que sua grandeza residia em sua modéstia e intensidade na minúcia. Ele sentiu que a Idéia deveria desaparecer ( s’effacer) perante a análise e a exposição dos fatos, e que unicamente este desaparecimento poderia , ao fim, servir à Idéia.
Na oposição a isto, Griffith quer que a Idéia ponha os fatos, os personagens e as épocas sob seu jugo. Ele tem por certo que a metáfora é, em si mesma, mais importante que os elementos que ela põe em relação. Mas a Idéia, quando se torna tão dominadora, se reduz no cinema a ser nada além que um vago truísmo sentimental, como aqui- a bem dizer, sempre útil a repetir-, que um traço, um grito clamando a que nos elevemos contra todas as formas de puritanismo, intolerância, injustiça. Quanto aos fatos, aos eventos representados na tela, tornam-se meras ilustrações, monolíticas e desvitalizadas, da Idéia.
A originalidade de Intolerância é, portanto, antes de tudo formal. Mas mesmo neste plano ela permanece limitada a um nível bem particular. Por exemplo, ela não se situa no estilo respectivo dos diferentes episódios. É significativo nesse sentido que os historiadores antigos ( Sadoul, por exemplo) e os teoristas modernos ( Pierre Baudry) estejam totalmente de acordo- uma tal identidade de visões é algo raríssimo- ao designar os diferentes empréstimos estilísticos ( um a um reconhecidos e negados pelo próprio Griffith) que determinam a especificidade formal de cada uma das histórias. O episódio do Cristo evoca as Paixões produzidas pela Pathé e rodadas em torno de 1900 ( sobretudo aquela de Zecca e Nonguet, 1902), tableaux vivants com caráter edificante. O episódio de São Bartolomeu se refere aos Filmes de Arte , e notadamente ao célebre Assassinato do duque de Guise de Le Bargy e Calmettes ( 1908), do qual ele toma emprestada esta teatralidade solene e rígida que impressiona tanto os cineastas no mundo inteiro, em particular Dreyer. The Fall of Babylon é claramente inspirada dos primeiros peplums italianos, Quo Vadis de Guazzoni ( 1912) e Cabiria de Pastrone ( 1914), que Griffith sonhava emular. Quanto ao episódio moderno, é um melodrama na linha dos numerosos curtas-metragens rodados por Griffith na Biograph, ao qual é dado um acento social mais pronunciado.
A originalidade essencial de Intolerância reside evidentemente no entrelaçamento de seus quatro episódios. Esta representa o produto de inumeráveis audácias e inovações da montagem, e obedece a um princípio de aceleração constante. As partes de cada um dos episódios, à medida em que o filme avança, tornam-se cada vez mais curtas. Esta aceleração intensifica, no plano dinâmico, o conteúdo dramático de cada história. Griffith dá assim ao suspense ( que ele não inventou, pois este se confunde com as próprias origens do cinema) suas “cartas de nobreza”, assim como uma incrível envergadura, abrangendo as épocas e os continentes. Depois de Griffith, esta lição foi apreendida, mas reduzida a proporções mais modestas. É de se notar, no entanto, que este suspense funciona muito melhor num plano mecânico e épico que lírico e emocional, Griffith não tendo, ao contrário de um DeMille, o dom de fazer com que o grandioso e o tocante, o monumental e o familiar se alternem reciprocamente. Visto hoje, Intolerância aparece como a peça de museu por excelência, cuja sábia e complexa construção é dissecada, autopsiada com paixão pelos teoristas. Mas no devir estético do cinema, o filme se coloca claramente à margem das forças vivas que permitiram a esta arte durar e marcar seu território.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Nascimento de uma nação, David Griffith




Primeira epopéia americana, primeiro filme longa-metragem “ realmente longo” rodado nos Estados Unidos, Nascimento de uma nação é considerado pela maioria dos historiadores como uma data capital para a evolução do espetáculo cinematográfico, ao qual ele conferiu um status de nobreza.Tudo isto graças à originalidade e riqueza de seus procedimentos narrativos, ao controle estético que o metteur-em-scéne exerceu pessoalmente sobre uma vastíssima matéria, graças também- elemento não negligenciável- ao sucesso colossal que o filme teve. Como fator determinante para o reconhecimento mundial dos méritos do longa-metragem, pensamos que Cabiria, filmado um ano antes de Nascimento de uma nação, teve um papel mais decisivo. Mas é enquanto obra artística que a contribuição e preeminência de Nascimento são incontestáveis e incontestados.
No plano material, apesar do filme contar com um bom orçamento, foi grande a habilidade de Griffith em dar a ilusão de que se tratava de uma superprodução. Depois de numerosas semanas de ensaios, a filmagem propriamente dita dura nove semanas ( a partir de 4-7-1914) , e sabe-se hoje que o número de figurantes não ultrapassou 500 ( Griffith falara, à época do lançamento, em 30 000 a 35 000 figurantes).O orçamento passou de 40 000 a 110 000 dólares numa atmosfera regada a jogos de poker e ceticismo exterior. Artesanal em sua concepção, financiamento e realização, o projeto de Nascimento de uma nação será, no entanto, altamente profissional em seu lançamento e publicidade. Lembremos que o filme faturou dezenas de milhões de dólares, e que o escândalo (absolutamente compreensível) causado por ele foi muito útil à sua “carreira”.
Sua principal originalidade estética consiste na tentativa de imbricação permanente da história individual e da História coletiva. Todos os colaboradores de Griffith mencionaram até que ponto ele estava literalmente absorvido por obras históricas, documentos, fotos concernentes a esta época da História americana. Mostrando personagens representativos e significativos criados pelo roteiro ( Austin Stoneman, equivalente de Thaddeus Stevens) ou verdadeiros personagens históricos ( Lincoln, Lee, Grant, etc), interpretados em um espírito de fidelidade absoluta, entrecortando a ação propriamente dita de “tableaux d’histoire”, reconstituídos com o máximo de veracidade ( assinatura por Lincoln da libertação de 75 000 voluntários, rendição de Lee a Grant, assassinato de Lincoln no Teatro Ford, etc), Griffith consegue perfeitamente o que pretendia, durante a primeira parte do filme ( que termina com a temporada de Ben Cameron no hospital). Até aí, a solenidade dos “tableaux” se alia admiravelmente ao ritmo extremamente vívido e “bem sustentado “ ( très nourri) que os eventos impõem ao desenvolvimento dos destinos individuais, em particular através do entrecruzamento dos membros, civis e militares, das duas famílias Cameron e Stoneman.
Depois, na segunda parte, que trata da reconstrução e dos conflitos raciais no Sul, a própria substância do filme se transforma: não se trata mais de história, individual ou coletiva, mas de uma espécie de devaneio ( rêverie) paranóico e idílico, sobre a unidade da América, devaneio desenvolvido visualmente a partir do núcleo privilegiado e adorado constituído pelo próprio Sul, a Carolina do Sul, a cidade de Piemont, a rua onde se encontra a casa dos Cameron, a própria casa e enfim o hall desta casa, que possuem na imagem uma importância quantitativamente desmesurada, devido ao número de repetições de planos passados nestes lugares, repetições estas que os valorizam como nichos de um leitmotiv cada vez mais obsessivo. A união do Norte e do Sul é selada pela rejeição de elementos considerados como estrangeiros à identidade americana, no caso os Negros. Os Negros, representados em sua maioria por Brancos pintados, representam, na economia ideológica do filme ( retirando-se aqui do termo ideologia todo valor científico ou histórico), sua própria raça, mas também- e mais amplamente- todos os elementos suscetíveis de perverter do exterior a identidade e unidade Americanas. O conteúdo político desta parte será considerado, conforme o encaremos com maior ou menor seriedade, como prejudicial ou nulo, até mesmo como absurdo, em relação à evolução real da História americana. Mas é também nesta segunda parte que o artista Griffith se revela de forma mais brilhante e pessoal. Especialmente nesta impetuosidade, neste “açodamento” da ação ao longo do último terço do filme, embasado por um lado na montagem estritamente paralela das ações e na separação triangular de sequências situadas em locais diferentes, e por outro lado na exploração lírica e máxima de certas convenções do melodrama, Nascimento de uma nação triunfa enquanto espetáculo dramático e obra de arte. Ao fim, quando a cavalgada, plásticamente sublime, do Klan venceu o perigo dos aventureiros negros disseminados pela cidade, acabou com o cerco sofrido pelos Cameron em sua cabana, libertou Elsie das mãos de seus carrascos, a narração desemboca em uma admirável fusão espaço-temporal de todos os seus componentes, até então triste e dramaticamente separados. Atinge igualmente uma apoteose lírica onde o público, por sua participação emocional, tornou-se parte integrante da obra. É o triunfo do suspense ( na narrativa), do “fôlego cortado” ( no espectador), das boas causas ( na moral). Uma moral idealizante e sentimental, angelical por assim dizer, mas à qual ninguém, nesta etapa da ação, tem a coragem de renegar, uma vez que o amor, a paz e a unidade reinam sobre tudo. Todas estas figuras “positivas”, no plano dramático e visual do espetáculo cinematográfico, serão utilizadas durante mais de cinqüenta anos pelos cineastas do mundo inteiro. Elas existiam num estado embrionário nos inumeráveis curtas-metragens de Griffith ( os quais muitos evocam a Guerra de Secessão). Testemunham, em Nascimento de uma nação, uma amplitude, uma capacidade de síntese e adesão sem iguais para a época.
Jacques Lourcelles, Dicionário de Filmes
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Du Couté D’Orouet, Jacques Rozier

Hoje em dia, a experimentação é admitida, reconhecida e até mesmo encorajada em todos os gêneros, menos na comédia, onde em geral é rejeitada ou ignorada. Rozier pratica solitária e obstinadamente um cômico experimental em aparência muito simples, bem sofisticado em realidade, cuja originalidade, tal como aparece em seus mais característicos filmes, pode ser resumida em cinco pontos principais.

1. A pesquisa plástica conta muito nesta visão do cômico. Rozier pinta aquarelas em movimento, que divertem e querem fazer rir. Para uma parte do público, já aí ocorre uma incompatibilidade. O cômico deve ser brutal, grosseiro, cínico ou devastador. Não que a ironia esteja ausente de seus filmes. Mas ela é voluntariamente difusa, diluída, deslavada se poderia mesmo dizer, como a cor azul em um céu de chuva.

2. Uma comicidade bem contemplativa. Filmar Du couté d’Ouroet é filmar do lado de Flaherty. Aqui,a imobilidade, o movimento lento são mais engraçados que o movimento vívido. Outro obstáculo, e desta vez para um público ainda mais vasto: o autor, no interior de seus filmes, comenta pouco e não explica nada. É preciso olhá-los ( les regarder) para compreendê-los.

3. O único presente, o “puro” presente interessa a Rozier, cortado tanto quanto possível de seus laços com o passado e com o futuro. O presente, ou seja, o instante, o impalpável e inassimilável instante que unicamente a câmera consegue captar é então dilatado, observado sob uma lupa pelo autor. Por sua milagrosa forma de filmar, este presente torna-se também um presente mágico , recomposto, o presente da memória e da poesia. Filmar Du couté de Orouet é filmar agora do lado de Ozu, e Du couté de Orouet é o único filme francês que se assemelha, por exemplo, a Dias de juventude, do mestre japonês. Os dois filmes exprimem, a partir da observação dos fatos mais simples, uma insidiosa e poderosa nostalgia.

4. Nesta busca pelo instante, nada de “excessivamente preparado, controlado” ( rien de trop preparé) deve contrariar a gênese e o desabrochar espontâneos do filme. O roteiro, contido inteiramente na cabeça do realizador, se reduz a um canevas sobre o qual os intérpretes vão estabelecer bordados, utilizando às vezes alguma coisa de suas relações fora do set.

5. Rozier se recusa a fazer intervir qualquer evento importante na ação. Graças sobretudo ao realismo dos diálogos e da pista de som, ele nos aproxima intimamente dos personagens, dando a ver suas menores , mais derisórias aventuras, as mais fúteis , as mais estreitamente pessoais. Apesar disso, ou talvez por causa disso, seus filmes são verdadeiras comédias de costumes, uma mina de observações, um espelho da época e das pessoas. Ver em particular a perturbação dos personagens quando distanciados de seus hábitos urbanos, sendo obrigados a reaprender a cozinhar, a se alimentar, etc. Ver também, da parte deles, uma certa incapacidade para a felicidade, apesar justamente da felicidade ser sua única preocupação, ocupar constantemente seus pensamentos e desejos. Pode-se fazer aqui a mesma observação usada para Leenhardt e o seu Derniéres vacances: são sempre os poetas que fazem a melhor sociologia.

Nota: o filme, rodado em 16mm, jamais foi “expandido” para 35mm, o que explica o caráter confidencial de sua distribuição.

Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Apocalypse Now, Copolla




Em se tratando de um filme fora do comum como Apocalypse Now, o mais sábio é partir do ponto que mais afetou a todos que viram o filme, ou seja, o lado decepcionante, ou mesmo desastroso, da última parte. Diante de um filme como esse, tornamo-nos todos espectadores de “primeira linha”, ou até mesmo excelentes críticos: ou saímos tocados ou não. Adoraria já indicar aqui que o filme é a narrativa não de uma, mas de duas, três ou até mesmo quatro subidas ( remontées”) ao longo do rio e que se, como diz Blanchot, “o Apocalypse decepciona”, é porque pertence à sua natureza decepcionar. Tudo o que o rio “carrega” ( charrie) não tem destino possível. Até mesmo o horror.
Primeira subida. Do concreto ao abstrato: a guerra.

A história do cinema é em parte ligada à história das guerras. O Exército Francês foi um dos primeiros utilizadores da invenção dos irmãos Lumiére. A guerra, tornada mundial, feita por todos contra todos, trouxe em seu bojo todo o cinema moderno europeu, de Roma cidade aberta a Tempos de guerra. Bazin falou do prazer suscitado pelo “espetáculo das destruições urbanas”, que ele chamava de “complexo de Nero”, para o qual o cinema parecia ser o lugar privilegiado. Na América, técnicas cinematográficas e tecnologia guerreira andavam em um passo conjunto: matar e filmar “progrediram” paralelamente. O espectador de cinema pouco a pouco se habituou a ser um sobrevivente. É este o espectador visado por Copolla hoje em dia, aquele que escapou aos massacres- ou que deles retornou-, mostrando-lhe a mais moderna das guerras, aquela cuja imagem ainda não caiu em desuso. Da Guerra do Vietnam, Copolla só retém o que a qualifica como uma guerra de um novo tipo ( mas um novo que integra o arcaico: as trincheiras, os dardos) e dissolve tudo o que poderia remeter a uma certa intemporalidade da guerra. Portanto, nada de cenas onde soldados discutem a respeito da guerra, por exemplo, cenas ainda freqüentes em Hawks, Walsh e Fuller. Nada desses discursos de combatentes onde se questiona sobre o horror da guerra em geral ( como no The Naked and the Dead de Walsh, que situa o debate no antimilitarismo) ou do aspecto bem-fundado em particular desta ou daquela guerra. É inútil, portanto, procurar no Apocalypse Now uma tomada de posição sobre o engajamento americano no Vietnam. Assim como The deer hunter, o filme participa de um projeto de amnésia política, com a diferença de que em Cimino, ela se faz do ponto de vista de um nicho reativo e em Copolla, a dimensão histórica é “curto-circuitada” por uma passagem direta do físico ao metafísico, através de um roteiro inspirado em Conrad. E ao mesmo tempo, Apocalypse é um testemunho sobre a guerra do Vietnam, “enquanto ela” não é a simples repetição da Coréia ou do Pacífico, dando a ver- pela primeira vez com tal intensidade- o que a constitui tecnológicamente em uma outra guerra. Quando, no The Naked and the dead, vemos um campo queimado, temos aí, para o espectador, uma bela imagem; em Apocalypse Now, quando Willard e seus homens encontram um batalhão que está prestes a arrasar um campo de napalm, isto é em primeiro lugar um espetáculo para os personagens do filme. Portanto, nada de pausas nem de tempos mortos, mas uma aceleração constante, mudanças de velocidade, elipses no coração das cenas. O som - um uso particularmente manipulador do Dolby- desempenha um papel preponderante, não com o objetivo de ancorar a imagem, torná-la mais inteligível, mas pelo contrário: para estilhaçá-la de seu interior, impedi-la de tornar-se o refúgio do espectador, para provocar medo. Dito de outro forma: nada de fora de campo. O efeito obtido é totalmente assombroso. O episódio com frequência citado como o melhor do filme em relação a isso ( com justiça, penso eu, e voltarei a isso) é o da batalha de helicópteros. Por que? Simplesmente pelo fato de que nós, tais como super-Fabricios del Dongo em Waterloo, compreendemos que jamais havíamos realmente visto um helicóptero. Encontramo-nos num “aquém” do sentido ( en-deçà du sens): um helicóptero é um helicóptero, sem mais nem menos; uma explosão é uma explosão, um morto um morto. Encontramos subitamente pelo caminho objetos que não querem dizer nada para ninguém, mas que matam. A guerra é antes de tudo este lugar, concreto demasiado concreto ( concret trop concret).
Suponho que se Copolla tivesse parado o filme antes do episódio Kurtz, ele teria se exposto a um escândalo geral, e os distribuidores ( que aqui são os produtores) teriam se recusado a mostrar o filme em suas salas. Inversamente, críticos de cinema ( nós, por exemplo) teriam achado o filme admirável, uma vez que formalmente adequado à ininteligibilidade da guerra , uma guerra vista de baixo, sem “subida”, elevação ( remontée). Ora, a dupla coação a qual Copolla não escapou é a seguinte: os espectadores ( e se fazem necessários milhões destes para tornar o filme rentável) vêm em primeiro lugar pelas cenas de guerra, mas dificilmente eles podem assumir este em primeiro lugar, antes de tudo ( d’abord): é-lhes necessário um fim, um desenlace, a inteligibilidade para justificar a posteriori estas cenas. O sentido último como cobertura do gozo ( jouissance) do non-sens ( falta de sentido). Quanto a Copolla, ele desejou filmar esta última parte, embora se saiba que teve grande dificuldade em decidir de que esta seria feita. Há portanto um momento onde, subido o rio, passaremos do concreto da guerra ( as coisas na cintilação de seu ser-aí, em seu “aparecer” mortal) à abstração ( as coisas que se põem a significar, às vezes pesadamente, a carregar sentidos para além de si próprias). É aí que o filme fracassa. Como se fosse impossível ( ou então, seria necessário um tempo maior) conduzir o espectador do estupor atordoado onde até então o tínhamos mergulhado para uma outra forma de relação com o filme, onde o espectador seria convidado a “pensar por si mesmo”. Ou o atordoamos ou o estimulamos a pensar, ou retemos o sentido ou o disseminamos. Copolla não escolheu realmente. Além do mais, se ele é um extraordinário engenheiro, se filma as operações militares com um real talento, com verdadeiras máquinas e verdadeiros corpos, ele está bem menos à vontade desde o momento em que a imagem torna-se sobre-significante ( sur-signifiante) e a narrativa metafórica. Evidentemente, este jogo entre a suspensão e a disseminação do sentido é a aposta das superproduções, dos filmes-monstros ( deixar o espectador estuporado, abrir as interpretações, e sobretudo não concluir: vejamos Tati, Fellini e sobretudo Kubrick, que sai terrivelmente engrandecido na comparação com Copolla , neste caso). O paradoxo é este: estes filmes só podem ser feitos lá – os Estados Unidos, a União Soviética, em todo caso em impérios- onde não é permitido “não concluir”, não edificar.
Segunda subida. Do filho ao pai: o padrinho.

Mas o rio carrega outra coisa. Por exemplo, o que está na base de toda ficção: a subida em direção aos nós fundadores da filiação, dos filhos para os pais, de Édipo para Laius. Curiosamente, o roteiro de John Milius faz-nos pensar em um pequeno filme, uma obra-prima, geralmente desprezada na outra parte do Atlântico, o Jornada tétrica de Nicholas Ray. Neste filme também um personagem se retirou da civilização e reina sobre um grupo de foras-da-lei e de destroços, no coração de um reino ao mesmo tempo esplendoroso e nauseante: os pântanos da Florida. Em Jornada tétrica, um jovem também vai ser progressivamente capturado pelo horror do que se trama neste reino, horror que ele sente bem lhe dizer respeito. Em Ray, ecologista “avant la lettre”, massacram-se pássaros, em Copolla é mais grave. Uma amizade confusa ligará dois homens, o mais velho vai intimidar o mais jovem e será finalmente morto por ele. Depois do assassinato, o jovem suspeita de que jamais será o mesmo homem. “Horror!”, exclama Willard nos últimos planos da versão atual de Apocalypse now, antes de embarcar novamente em seu barco. Ele descobriu o horror de toda filiação, a passagem pela violência mimética ( ele começa a se assemelhar a Kurtz), etc. Mas este horror é um truque. O verdadeiro tema- em Copolla, assim como em Ray, ou mesmo no Welles de Mr. Arkadin-, é a atualização ( mise à jour) da ligação homossexual, enquanto esta se encontra na base de toda sociedade, de toda “fraternidade”, portanto de toda guerra. Mas esta ligação não se desvenda assim tão facilmente. Há certamente uma situação edipiana, mas esta é vista do ponto de vista do grande esquecido do mito, Laios. Um Laious que teria disfarçado seu suicídio de assassinato para privar Édipo de sua verdade. Se descoberta há, ao termo da subida do rio, é que não se mata o pai, uma vez que este desejava morrer desde sempre e que esperava seu assassino com impaciência. Horror, portanto, mas não aquele que se supunha. Evidentemente, no filme de Copolla, toda esta parte fica no nível teórico, já que não chegamos muito bem a acreditar na identificação entre Willard e Kurtz. Era algo bem mais forte em Jornada tétrica, com Burl Ives e Christopher Plummer- que no entanto são atores bem mais limitados que Brando e Sheen-, mas também porque Ray é um imenso cineasta. O falso pai, “o pai falseado” de Apocalypse now, é Brando, alguém que exerce antes um protetorado que uma lei, antes um “padrinho” que qualquer outro papel, em todo caso um mito vivo. Pois no influxo de Apocalypse now, há também a velha Hollywood.
Copolla pertence a uma geração de cineastas que teve de começar sua carreira à sombra da geração dos grandes ancestrais, vivos ainda. Geração que começara na França, quando Godard inscrevia literalmente o corpo e o nome de Fritz Lang ( em O desprezo) , e que há pouco tempo chegou à América ( Truffaut no filme de Spielberg). Aí também pode-se dizer que a “mise à morte” de Brando é uma operação infinita- devido à posição bem particular de Brando na indústria americana: ele é um pouco o Kurtz desta indústria-,infinitamente decepcionante também.
Terceira subida. O Um e o Outro: a América.
Apocalypse now é um filme excepcional, que seja. É também um filme americano médio pós-Vietnam. O cinema americano, desde um certo tempo, não cessa de rondar em torno de um tema que é a presença do Outro em nós. Outro no sentido de alien, título do maior sucesso do verão nos EUA.”Nós”, é claro, é novamente o Americano, considerando-se abusivamente como a espécie abusivamente como equivalente geral da espécie humana. Salvo que “ser” americano não é jamais algo tão evidente nem tão simples ( não insisto aqui sobre o melting-pot e outros mitos), e que me parece que se esteja sempre pronto a fazer não importa o que para se ser “ainda mais americano” ( não importa o que: Kazan). Ideológicamente, o objetivo de todos esses filmes ( Alien, O Exorcista, The deer hunter, mesmo Encontros de terceiro grau) é tornar os Americanos ainda mais americanos ao fazê-los exorcizar um Outro ( em geral maléfico) que os assombra ou habita. A novidade e a força desses filmes está em que eles decidiram não economizar nos meios ( a tecnologia ainda e sempre) para mostrar o outro, o alien em nós. Até aqui eram sobretudo filmes B que se ligavam nesse tema ( nos anos 50, em torno do anticomunismo), mas sem possuir meios, limitados a truques fracos ou a refinamentos de escritura ( o fora de campo de Tourneur) , só conseguindo excitar espectadores muito naifs ( ingênuos) ou muito sofisticados ( cinéfilos). A decisão de mostrar o “Não-Mostrável” ( Immontrable) é muito recente. Há diferentes versões. Em Cimino, o Asiático que é tido por responsável por despertar a besta que dormita em nós: matamo-lo, ao mesmo tempo em que lhe impomos a vergonha de ter despertado a besta: refrão conhecido. Em Ridley Scott, ( Alien), é o monstro proteiforme, literalmente surgido do corpo humano e ocupando a astronave como um câncer, cujas imprevisíveis metástases terrificam. Em Friedkin ou Kubrick, são os temas mais codificados, mais literários, do diabo ou do duplo. Quanto a Apocalypse now, é sem dúvida aquele que, no nível do roteiro, possui a maior dignidade literária ( Conrad). Aí, Kurts e Willard são da mesma espécie, da mesma raça, do mesmo país, da mesma formação ( Exército). No entanto, um deles tornou-se um monstro. Um monstro ao qual é preciso se identificar. Copolla escala o rio da civilização em direção à barbárie, não a barbárie dos outros, mas aquela da qual se provém, da qual toda civilização provém, do lado da horda paterna. Se esta escalada também não chega ao seu destino ( aussi tourne court: não segue até o fim do caminho, volta no meio) , é porque Copolla realmente não escolheu entre delírio surrealista e crueldade etnográfica. Este “povo do abismo” que idolatra Kurtz não é suficientemente verossímel para que o momento forte desta última parte, o abate paralelo de Kurtz e do rebanho sacrificado , suscite todo o horror sagrado que se poderia encontrar em um Pasolini ( em Pocilga: “Matei meu pai, comi carne humana, tremo de alegria”...)

Quarta subida. O espetáculo e o homem de espetáculo: Copolla.

Copolla, sem dúvida, não é um cineasta tão profundo quanto Kubrick ( para ficarmos nos gigantes). Vimos que seu jogo de pistas não leva realmente a lugar nenhum; decepciona. No entanto, é esta outra subida do rio que leva Willard até Kurtz de espetáculo em espetáculo, quase de “show em show”. É aí que Copolla é com freqüência um grande cineasta. O que ele retém da guerra, desta guerra em particular, é que ela se tornou para aqueles que a fizeram ( do lado americano) um vasto espetáculo sem metteur em scéne. Desta guerra a respeito da qual não se discute mais, que não se compreende mais, não se pode fazer nada senão tableaux vivants ( quadros vivos),show business.Willard- totalmente sintetizado no olhar de Martin Sheen- é o espectador por excelência: tudo o que ele encontra pelo caminho é ou vivido ou deliberadamente organizado como espetáculo. Vemos isso no plano rápido onde Copolla filma a si mesmo como jornalista televisivo, nas fantasmagorias do final, produtos do delírio de Kurtz, passando pelo jovem Negro que canta ‘Satisfaction” no barco. Esta espetacularização também se mostra na figura de Denis Hopper, armado com câmeras e a aparelhos fotográficos, uma espécie de primeiro assistente de Kurtz, seu bufão e porta-voz ( griot). Também na extraordinária cena do teatro no batalhão armado ( por um instante, tive a impressão de que Copolla tocava na essência da guerra: sobre uma pista de dança flutuante e em uma nuvem de fumaça rosa, a exibição noturna e sonhada de moças diante de uma massa de rapazes). Igualmente na cena realmente apocalíptica das trincheiras, onde todos confundem Willard com o oficial encarregado. Mas é sobretudo verdadeira – esta espetacularização- no extraordinário episódio da batalha de helicópteros e do personagem interpretado por Robert Duvall. Se esta cena é a melhor do filme, é porque ela consegue manter a dosagem entre o real ( o ser-aí das coisas) e o “espetáculo” ( desejado por qualquer um). Duvall não é o deus ex machina, o demiurgo, que Willard busca; é um factótum ( bricoleur). Ele apenas pode bombardear uma cidade por capricho ou fazer os soldados surfarem. É no filme uma espécie de antecipação de Kurtz ( com o parênteses de que este personagem me parece infinitamente mais convincente); Kurtz que, ao fim do rio e no coração do caos, é o último metteur em scéne, que possui ainda atores para dirigir, um reino para decorar e um público para ouvi-lo recitar poemas de T. S. Eliot. Mas justamente Copolla está mais para um empreendedor- como o personagem de Duvall- que para um visionário, como Kurtz.

Logo, “o Apocalipse decepciona”. Em termos lacanianos, pode-se reprovar a Copolla ter tentado o impossível: filmar o irrepresentável phallus. Mesmo o crânio de Brando não é suficiente. Mas foi tanto por cálculo quanto por ingenuidade ( naiveté) que ele deve ter feito o filme assim. Pois ele conseguiu rodar o filme exatamente como queria, apesar das inumeráveis peripécias; conseguiu inclusive tirar um filme de duração quase standard do enorme material filmado, um filme com um fim, etc. Talvez apenas tenha lhe faltado o poder de assumir até os seus limites uma economia suntuosa ( une économie somptuaire), de ganhar “o direito de não concluir”.

Serge Daney.
Tradução: Luiz Soares Júnior.

O Franco atirador, Cimino

O grande filme americano dos anos 70. Com uma ambição imensa, Cimino tenta construir um cinema épico e wagneriano que é também lírico e contemplativo e não desprovido de densidade romanesca. No que concerne à força da mise en scène, Cimino é o único cineasta da sua geração no qual se pode ver, através do seu filme, um herdeiro de Walsh e, especialmente, de The naked and the dead. Isso não o impede de conduzir, através dos outros aspectos do filme, uma busca absolutamente pessoal e original. Ele atinge o poderia dramático das cenas pela duração desmesurada das mesmas, o que as torna misteriosas e encantatórias, por um senso quase mágico do cenário e pela atenção à certas características individuais dos personagens, sem qualquer preocupação de rigor dramático aparente. A busca dele vai de encontro ao centro da sua proposta; não pelo realismo, mas com o auxílio de um conjunto de alegorias que transformam o realismo em elementos de reflexão moral e filosófica. Os temas privilegiados de tal reflexão dizem respeito à energia e à vontade de poder da América. A caça, a guerra distante, o jogo cruel da roleta-russa, tudo isso são os motivos dramáticos e visuais, extremamente espetaculares, que permitem confrontar essa possibilidade de poder com o real. De acordo com os personagens, veremos esta vontade se destruir, fraturar ou mesmo perdurar, ao transformar-se e mudar de conteúdos. Epopéia de fracasso, O Franco-Atirador é também um réquiem grandioso dedicado aos sofrimentos e à estupefação da América diante da maior derrota da sua história.

N.B.: Um exemplo de pesquisa efetuada por Cimino acerca do cenário: ele explicou (em «American Cinematographie», outubro 1978) como ele tinha construído visualmente o sítio da sua pequena cidade da Pensilvânia, utilizando oito exteriores diferentes, filmados em Ohio: único meio de conseguir, segundo ele, com que uma usina se perfile no horizonte em cada um dos planos gerais de exteriores que figuram nas seqüências que deveriam transcorrer na Pensilvânia.
Jacques Lourcelles
Tradução: Matheus Cartaxo

Suplício de uma alma, Lang

Último filme americano de Lang. Provoca , sobretudo nos espectadores que o viram na continuidade cronológica da obra de Lang, um choque, uma perturbação como poucos se ressentem na vida cinéfila. Depois de No silêncio de uma cidade, Lang tinha encontrado um meio de acentuar ainda mais a abstração de seu estilo, de universalizar e radicalizar ainda mais as suas intenções. Como frequentemente se dá entre os grandes realizadores de Hollywood, o filme se encontrava relacionado ao precedente por ligações poderosas, ao mesmo tempo internas e externas. Lang trabalhava para o mesmo produtor e companhia. Os dois filmes se desenrolam em cenários similares e o personagem principal, interpretado por Dana Andrews, poderia ser facilmente visto como idêntico em ambos os filmes: assim, Beyond continua logicamente No silêncio de uma cidade, mas com um orçamento mais modesto, um número mais restrito de personagens, de atores brilhantes, cenários e lugares.
Em relação ao resto, Beyond obedecia ao princípio secreto que rege a maioria dos filmes de Lang, a saber, uma antinomia essencial entre a vontade de depuração de estilo, levada aqui ao extremo, e uma extraordinária profusão de peripécias, , surpresas, reviravoltas em todos os gêneros, com consequências e prolongamentos incalculáveis. Beyond começa como um estudo social ( sobre o controverso tema da pena de morte), e progride, com a velocidade do raio e sem que nos apercebamos claramente, para a fábula filosófica e metafísica. Esta fábula exprime, por uma série de desvios labirínticos e envolventes, a universal culpabilidade do homem; e busca tornar evidente, com um rigor impiedoso, o pertencimento de todos os personagens à esta raça maldita que é para Lang a raça humana. Protagonistas e comparsas são apresentados aqui em um incrível luxo de “arrières-pensées ( pensamentos subconscientes), gestos, atitudes e comportamentos perturbadores que suscitam pouco a pouco no espectador uma desconfiança , uma inquietude e perplexidade extremas. Elas estão longe de se esgotar com o aparecimento do “Fim” na tela. No entanto, o mais espantoso paradoxo do filme está em outro lugar: ele reside no fato de que estes personagens, e mais especialmente o herói ( Dana Andrews), solicitam da parte de seu criador ( Lang) um olhar onde o desprezo absoluto e uma compaixão de ordem trágica coincidem absolutamente. Em relação a isso, é necessário lembrar que Beyond é destes filmes onde a última reviravolta exige que sejam vistos pelo menos duas vezes, a segunda sendo parte integrante da primeira. É nesta segunda visão que Dana Andrews , nos planos por exemplo que o mostram oprimido na sua cela, depois da revelação da morte de seu patrão, , aparece como o perfeito e impessoal herói trágico que Lang sempre buscou representar. Na primeira visão, ele carrega o peso de sua inocência não reconhecida; na segunda, carrega o peso de sua culpabilidade inevitável, e é um peso ainda mais difícil de carregar. Em um universo revelado sem inocentes, o culpado, que não pode escapar à sua condição, aparece de súbito como a vítima de uma espécie de maldição trágica e universal. Por causa disso, o espectador, tendo-o julgado, não pode mais condená-lo sem ao mesmo tempo reconhecer em si, quer isto lhe agrade ou não, um irmão de raça. A pena de morte torna-se um castigo metafísico, inevitavelmente justo e injusto, prometido a cada ser vivo. As ultimas reviravoltas ( Garret acreditando escapar à morte pela descoberta póstuma de uma carta de Spencer, depois perdendo sua chance de sobreviver com seu erro e pela confissão e traição de sua noiva) são para ele outros suplícios que se juntam à sua condenação.
Toda ação do filme se desenrola em cenários voluntariamente neutros ( há gênio nesta neutralidade), que não apenas exprimem com uma precisão implacável as diferentes atmosferas dos lugares representados como valorizam com um relevo tremendo os gestos dos protagonistas. Ver por exemplo a estilização da vulgaridade cúpida de Bárbara Nichols , da violência contida de Dan Seymour ou do comportamento meio frígido de Joan Fontaine. Lang chegou a este ponto de domínio onde a descrição de cada personagem, a evolução global da intriga mas também um grande número de planos isolados contém integralmente o sentido de suas intenções. Assim, este plano onde Fontaine examina as fotos calcinadas diante de um cenário de fachada cinzenta, perfurado por orifícios mais sombrios ( as janelas do imóvel defronte) que se assemelham aos destroços que ela observa. Estamos mergulhados aqui num universo à la Metrópolis, mas normalizado, banalizado e contudo completamente asfixiado. Este universo nem ao menos possui esta monstruosidade espetacular e escandalosa que poderia nos advertir de seu horror, de tal forma o cenário e a ação que nele transcorre são integrados perfeitamente entre si. Trata-se de um mundo em ruínas do qual até mesmo nos esquecemos que ele se encontra em ruínas.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

No silêncio de uma cidade, Lang

Penúltimo filme americano de Lang. Um dos ápices de sua carreira; em nossa opinião, seu melhor filme. A partir de um romance, mas sobretudo de narrativas de diversos fatos découpados nos jornais e que ele tinha o hábito -conservado até o fim de sua vida, mesmo quando não mais trabalhava- de colecionar, Lang escreveu minuciosamente o roteiro com Casey Robinson, e este será um dos mais sofisticados de sua carreira. Preparação não menos minuciosa da filmagem que vai permitir utilizar- sendo o orçamento do filme médio- os intérpretes prestigiosos reunidos para o filme ( George Sanders, Ida Lupino, Thomas Mitchell, Rhonda Fleming) apenas por quatro ou cinco dias cada um, embora se tenha a impressão de vê-los presentes ao longo de toda intriga
( Apenas Dana Andrews pôde obter um número de dias maior). A ambição do filme é imensa, a perfeição de seus estilo, cujos elementos evitam se valorizar, sóbria e eficaz. Lang quer dar a ver um panorama muito vasto da sociedade americana, fundada para ele na competição e no crime. Como a competição e o crime vieram a estar indissoluvelmente ligados, eis o seu tema, de onde decorrem as características de seu estilo, obedecendo todas a uma estética da necessidade que nenhum outro cineasta levou tão longe. Criador solitário e exigente, Lang não é contudo o mais inovador do cinema americano. No silêncio de uma cidade integra e interioriza de alguma forma a revolução trazida no ano precedente à narrativa policial por A morte num beijo. A partir de agora, não há bons nem maus na intriga. A ferocidade da competição colocou todas as individualidades no mesmo nível, no grau zero da moral e da consideração pelo outro. Se examinarmos com uma lupa ( o que faz o filme) o comportamento de cada um dos personagens implicados na ação, ver-se-á que nenhum deles tem a mínima idéia do que lhes poderia servir de base moral, ou então- o que é pior ainda- que sacrificam às suas ambições os poucos escrúpulos que poderiam ter, comportamento considerado normal na sociedade onde evoluem. A partir disso, o criminoso que os jornalistas procuram tão ardentemente , a fim de obterem um posto, torna-se não apenas sua presa mas seu espelho. Este é de alguma forma mais digno de piedade que eles.
Lang conduz aqui a um grau de perfeição absoluta sua arte das ligações necessárias ou mesmo fatais entre as seqüências. Quer seja por um elemento visual, do diálogo ou pelo efeito de uma causa dramática particular, as seqüências se encadeiam umas às outras segundo um ritmo e uma progressão lógica que parecem obedecer a algum Fatum, quando em realidade não são mais que a conseqüência das iniciativas entrecruzadas de cada um dos protagonistas, ocupados a suplantar, utilizar ou aniquilar o outro- vasta teia de aranha onde finalmente todos se encontram presos. Refinamento supremo da mise em scéne: estes compartimentos vidrados que, no interior dos escritórios do jornal, separam os personagens, permitindo-lhes ver-se mutuamente, e que dão à narrativa a possibilidade de desenrolar várias seqüências frontalmente ( de front), captadas em uma permanente interação. Este entrelaçamento magistral é visto na luz soberba de uma fotografia metálica, com cintilações gélidas. Depois de muitos avatares e metamorfoses, encontrando-se repensado através da experiência e do estilo de um cineasta meticuloso e genial, o microcosmo expressionista reaparece aqui- talvez pela última vez- lavado de todas as suas escoriações, dotado de uma pureza expressiva cuja abstração e concentração fascinam. É uma pequena porção do inferno onde as criaturas se agitam , acreditando-se livres e ativas, sob o olhar de um cineasta que não quer nada senão ver bem e “dar a ver” bem o real, embora mantendo sobre todas as coisas o ponto de vista de Sirius.

Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior

O túmulo indiano, Lang

Vinte e seis anos depois de sua partida da Alemanha, Lang retorna para dirigir esta obra testamentária que se beneficiou de um importante orçamento ( mais de quatro milhões de marcos). É um duplo retorno às fontes, geográficas primeiro, dramáticas em seguida, uma vez que O tigre de Bengala e O túmulo indiano são uma nova versão do roteiro escrito em 1921 com Thea Von Harbou e que Lang não pudera realizar então, devendo contrariado passar a realização às mãos de Joe May. No seu lançamento, esta nova versão suscitou numerosas polêmicas. Ela foi atacada não apenas pelos adversários permanentes de Lang ( até aí, nada de extraordinário), mas também por uma grande parte dos defensores do cineasta. Apenas uma minoria de admiradores o defendeu com fervor, e pouco a pouco o filme adquiriu o status de clássico. É preciso sem dúvida colocar a crédito de Lang essas polêmicas, que sempre teve o dom de, a cada etapa de sua carreira, espantar, intrigar, ou mesmo desorientar e desencorajar seus próprios fãs. A fidelidade que ele manifesta aqui a seu próprio universo é a mesmo tempo formal e filosófica. Como é usual em Lang, a substância do filme se desenvolve a partir de uma série de contradições internas que só podem se resolver na última perfeição estética da obra acabada: depuração obtida a partir de uma extraordinária riqueza de meios e de uma proliferação de peripécias; dinamismo perpétuo, resultante da imobilidade da câmera; mensagem filosófica destilada com o auxílio de uma trama desenho animado.
Nos personagens, triunfa a mesma dialética. A maioria dentre estes é movida por um objetivo único ( amor e fascinação erótica em Chandra, sede de poder em Ramigani, desejo de vingança em Padhu, etc), que preenche suas almas e seus corações até a plenitude ( trop-plein). Mas este trop plein ( plenitude, preenchimento total) é igualmente um vazio, pois esta retira de seu ser não apenas o resto da humanidade como também toda e qualquer forma de realidade que não aquela tomada por seu desejo. Do choque destas vontades múltiplas, que são como obsessões, jorra a trajetória da narrativa, semelhante, em seu rigor, simplicidade e sua absoluta lógica, a um teorema matemático.
Em Chandra, personagem-pivot do filme ( de fato, ele é o único herói da história), é quando a plenitude ( trop-plein) será aceita como vazio, ou seja, quando as paixões se aniquilarão na renúncia, que a serenidade poderá enfim fazer sua aparição. Mensagem que só aparentemente é positiva, pois implica a supressão do desejo, a abolição das paixões, a fim de que sobrevenha uma paz que possui algo de sepulcral ( ou, dirão os detratores, de absolutamente convencional). Esta paz é vista “ como que do fundo da morte”, segundo a expressão de Michel Mourlet. “ O que há de mais profundo nos filmes de Lang, escreve Morurlet, é uma certa maneira de olhar de muito distante, como que do fundo da morte, os homens, as mulheres, o assassinato e a fatalidade. Nestes quatro ou cinco últimos filmes, só distinguimos isso. Se não se capta este tom de eternidade, não se capta nada. O silêncio e o vazio”.
A bem dizer, o que chocou os primeiros detratores do Tigre de Bengala, e que eles detestaram ou até mesmo desprezaram na obra, é talvez exatamente a mesma coisa ( e seria esta algo bem languiano) que seus fãs admiraram: uma “genial inatualidade” que reduz o universo a alguns desejos monstruosos e contraditórios do homem, o amor prenhe do crime ( ou da vontade do crime) , a sede de poder prenhe da destruição, e a filosofia tornando-se ao fim esta inútil- mas fascinante- contemplação do Nada. Ás vezes, Lang exprimiu esta visão por meio de narrativas com alcance social ou político, e talvez tudo não passasse de um engodo. Aqui, em um serial, forma que representava para ele o alpha e o ômega de toda ficção, ele a destilou de forma nua e sem álibis.
Jacques Lourcelles, Dicionário de Filmes
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Acossado, Godard

Tudo ou quase é tomado de empréstimo neste pálido decalque do filme noir americano:o assunto, o gênero e o tema tirados do cinema hollywoodiano,a atriz Jean Seberg, retomada tal e qual no Bom dia tristeza, de Preminger. Apesar disso, o filme será considerado uma revolução no cinema francês ankylosé ( enrijecido, paralisado) da época. No plano material e financeiro, o fato de que tenha custado três ou quatro vezes menos que um filme médio e feito um sucesso imediato e considerável lhe valeu uma corte de imitadores. No plano visual, seu estilo “rascunho” ( brouillon), brutal, que suprime- é esta sua principal inovação- as ligações tradicionais da narrativa cinematográfica ( ouverture au noir, fade in, fade out) vai aparecer como a própria imagem da juventude cinematográfica. Em relação ao assunto, os “jovens”, entidade vaga e disseminada, vão se tornar por um longo tempo o tema principal das ficções do cinema francês. Claro, o cinema francês, atolado na ditadura de seus metteurs em scéne quinquagenários e sexagenários ( geralmente talentosos), em sua rigidez sindical e profissional, tinha com certeza necessidade de um banho de Juvência ( Juventude).
Mas sem dúvida o remédio foi pior que o mal. Todos os elementos constitutivos da mise em scéne foram afetados. A ausência de preparação e construção no roteiro vai debilitar todas as histórias ( a de Acossado, por exemplo, é exangue). A filmagem sistemática em externas vai aniquilar, pouco a pouco, com a vida dos estúdios. A foto de estilo “reportagem” tornará caduca- por um certo tempo- toda pesquisa nesse domínio. Apenas a chegada como “vedette” de Jean Paul Belmondo pode ser considerado um elemento inovador. Passando em seguida e sem esforço do filme “de autor” ao cinema comercial, quebrando as divisões e categorias convencionais, Belomondo preparará o caminho para um tipo de ator polivalente, para o qual Dépardieu fornece hoje o modelo.
Com o mesmo approach agressivo e glacial do real, Godard consagrar-se-á em seguida a pintar, não sem complacência, a confusão geral de sua geração, ampla matéria a dezenas de filmes. A única razão pela qual Acossado merece ser mencionado hoje em dia é que ele marca, com o caráter de um marco limiar, a entrada do cinema na era da perda de sua inocência e de sua magia natural. Entrada esta da qual um único filme não poderia ser tido como responsável, evidentemente. Depois de Acossado, o cinema, como que ferido de morte, será mais triste, menos criativo, mais consciente de si mesmo- self-conscious, como dizem os ingleses com uma discreta nuance pejorativa.
Nota: Uma grande parte da História da Nouvele Vague está ligada ao progresso da credulidade entre o público de cinema e no público em geral. Muitos se puseram a acreditar no que os cineastas diziam de seus filmes, e em seguida saíram repetindo por aí.Ora, a originalidade maior- esta sim incontestável- dos cineastas da Nouvelle Vague é que ninguém antes deles ousou falar tão bem de si e tão mal dos outros. Alguns exemplos, entre milhares. “ Sempre se acreditou que a Nouvelle vague era o filme barato contra o filme caro. Nada disso. Era simplesmente o bom filme, qualquer que fosse, contra o mau cinema”. “O seu cinema- dos cineastas que não pertenciam à Nouvelle Vague- era a total irrealidade. Eles estavam distantes de tudo ( coupés de tout).(...). Eles não viviam o seu cinema. Eu um dia vi Dellanoy entrar no estúdio de Billancourt com sua sacolinha: parecia que ele estava entrando numa companhia de seguros”. ( Pessoalmente, preferimos, com um certo recuo e mesmo sem nenhum recuo, a “sacolinha” de Dellanoy e alguns de seus filmes à toda obra de Godard). “Antes da guerra, entre, por exemplo, La belle equipe de Duvivier e La bête humaine de Renoir, havia uma diferença, mas apenas de qualidade. Enquanto que agora, entre um de meus filmes e um de Verneuil, Delannoy, Duvivier e Carné, há realmente uma diferença de natureza”. Estas afirmnações de Godard ilustram o que Freddy Buache chamou, com um pouco de exagero, “a arrogância fascista” da Nouvelle Vague, no Cahiers du Cinema 138 ( 1962). Remake americano Breathless ( 83) por Jim McBride, com Richard Gere e Valérie Kaprisky.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.