sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Suplício de uma alma, Lang

Último filme americano de Lang. Provoca , sobretudo nos espectadores que o viram na continuidade cronológica da obra de Lang, um choque, uma perturbação como poucos se ressentem na vida cinéfila. Depois de No silêncio de uma cidade, Lang tinha encontrado um meio de acentuar ainda mais a abstração de seu estilo, de universalizar e radicalizar ainda mais as suas intenções. Como frequentemente se dá entre os grandes realizadores de Hollywood, o filme se encontrava relacionado ao precedente por ligações poderosas, ao mesmo tempo internas e externas. Lang trabalhava para o mesmo produtor e companhia. Os dois filmes se desenrolam em cenários similares e o personagem principal, interpretado por Dana Andrews, poderia ser facilmente visto como idêntico em ambos os filmes: assim, Beyond continua logicamente No silêncio de uma cidade, mas com um orçamento mais modesto, um número mais restrito de personagens, de atores brilhantes, cenários e lugares.
Em relação ao resto, Beyond obedecia ao princípio secreto que rege a maioria dos filmes de Lang, a saber, uma antinomia essencial entre a vontade de depuração de estilo, levada aqui ao extremo, e uma extraordinária profusão de peripécias, , surpresas, reviravoltas em todos os gêneros, com consequências e prolongamentos incalculáveis. Beyond começa como um estudo social ( sobre o controverso tema da pena de morte), e progride, com a velocidade do raio e sem que nos apercebamos claramente, para a fábula filosófica e metafísica. Esta fábula exprime, por uma série de desvios labirínticos e envolventes, a universal culpabilidade do homem; e busca tornar evidente, com um rigor impiedoso, o pertencimento de todos os personagens à esta raça maldita que é para Lang a raça humana. Protagonistas e comparsas são apresentados aqui em um incrível luxo de “arrières-pensées ( pensamentos subconscientes), gestos, atitudes e comportamentos perturbadores que suscitam pouco a pouco no espectador uma desconfiança , uma inquietude e perplexidade extremas. Elas estão longe de se esgotar com o aparecimento do “Fim” na tela. No entanto, o mais espantoso paradoxo do filme está em outro lugar: ele reside no fato de que estes personagens, e mais especialmente o herói ( Dana Andrews), solicitam da parte de seu criador ( Lang) um olhar onde o desprezo absoluto e uma compaixão de ordem trágica coincidem absolutamente. Em relação a isso, é necessário lembrar que Beyond é destes filmes onde a última reviravolta exige que sejam vistos pelo menos duas vezes, a segunda sendo parte integrante da primeira. É nesta segunda visão que Dana Andrews , nos planos por exemplo que o mostram oprimido na sua cela, depois da revelação da morte de seu patrão, , aparece como o perfeito e impessoal herói trágico que Lang sempre buscou representar. Na primeira visão, ele carrega o peso de sua inocência não reconhecida; na segunda, carrega o peso de sua culpabilidade inevitável, e é um peso ainda mais difícil de carregar. Em um universo revelado sem inocentes, o culpado, que não pode escapar à sua condição, aparece de súbito como a vítima de uma espécie de maldição trágica e universal. Por causa disso, o espectador, tendo-o julgado, não pode mais condená-lo sem ao mesmo tempo reconhecer em si, quer isto lhe agrade ou não, um irmão de raça. A pena de morte torna-se um castigo metafísico, inevitavelmente justo e injusto, prometido a cada ser vivo. As ultimas reviravoltas ( Garret acreditando escapar à morte pela descoberta póstuma de uma carta de Spencer, depois perdendo sua chance de sobreviver com seu erro e pela confissão e traição de sua noiva) são para ele outros suplícios que se juntam à sua condenação.
Toda ação do filme se desenrola em cenários voluntariamente neutros ( há gênio nesta neutralidade), que não apenas exprimem com uma precisão implacável as diferentes atmosferas dos lugares representados como valorizam com um relevo tremendo os gestos dos protagonistas. Ver por exemplo a estilização da vulgaridade cúpida de Bárbara Nichols , da violência contida de Dan Seymour ou do comportamento meio frígido de Joan Fontaine. Lang chegou a este ponto de domínio onde a descrição de cada personagem, a evolução global da intriga mas também um grande número de planos isolados contém integralmente o sentido de suas intenções. Assim, este plano onde Fontaine examina as fotos calcinadas diante de um cenário de fachada cinzenta, perfurado por orifícios mais sombrios ( as janelas do imóvel defronte) que se assemelham aos destroços que ela observa. Estamos mergulhados aqui num universo à la Metrópolis, mas normalizado, banalizado e contudo completamente asfixiado. Este universo nem ao menos possui esta monstruosidade espetacular e escandalosa que poderia nos advertir de seu horror, de tal forma o cenário e a ação que nele transcorre são integrados perfeitamente entre si. Trata-se de um mundo em ruínas do qual até mesmo nos esquecemos que ele se encontra em ruínas.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

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