quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Um corpo que cai: O retrato.




Vertigo é um dos filmes mais famosos que utilizam um retrato pintado no centro de sua narrativa. Retrato a partir do qual tudo se desencadeia ou, ao contrário- talvez- tudo regrida. O retrato pintado em um filme é com frequência um pretexto para idas e vindas temporais. Sem dúvida, não é um acaso se a figura da espiral é em Vertigo um tema visual que simboliza as vertigens de James Stwart. Mas a espiral remete também a uma certa ilusão alternativa da visão e do pensamento, seja um ponto de fuga em direção ao passado ou ao futuro. Dupla ilusão que, segundo a vontade do espectador, se entrecruza ou advém para o front do olhar de quem contempla o filme. A espiral poderia ser a figura geométrica que exprime a recorrência, a repetição, o retorno do Mesmo, a cópia, o retrato. Hitchcock teria pensado nisso? Desde os créditos, um rosto em close é detalhado segundo os seus orifícios principais. Boca, nariz, olho, de onde se extraem figuras revoluteantes. Vertigo pode nos levar a pensar nesta outra máquina alternativa para a visão que é As Meninas de Vélasquez , e que Foucault definia “como uma concha em forma de hélice que oferece todo o ciclo ´da re-apresentação. Assim, as volutas se fecham ou por intermédio desta luz se entreabrem”. Podemos avançar a hipótese de que Vertigo é igualmente uma reflexão sobre a representação, enquanto se oferece como representação da representação, segundo termos visinhos dos usados por Foucault em seu texto “Os próximos”, que abre As palavras e as coisas.1

A construção dramática do filme, repetitiva em duas partes distintas, e a obsessão de Stwart que visa a reencontrar uma mulher desaparecida remodelando-a em uma outra mulher- convidam o espectador a ver no filme uma parábola da atividade artística. O retrato pintado que obceca a primeira mulher, Madeleine, é coisa de menos nesta parábola. Como em outros filmes hollywoodianos, é de caráter medíocre, e parece mesmo paradoxal que o gênio de Hitchcock se satisfaça com semelhante imagem. A atenção do cineasta sem dúvida se dirigia para outro ponto. Ou então, é precisamente necessário que este retrato pintado não exista para que o discurso do filme se organize em outros termos que não os de dignas referências ou nobres citações plásticas.

O que choca à primeira vista na construção dramática de Vertigo é o seu não-fechamento ( non-clôture) ou, se ouso dizer, sua metonímia infernal. A primeira seqüência do filme se assemelha a uma seqüência de filme de aventuras policiais que teríamos surpreendido no meio da ação. Parecendo já ter começado nos créditos, o filme se oferece como a amostra de um segmento numa cadeia dramática que o excede.O fim do filme repete o fim da primeira parte, a queda de Judy nos lembrando da primeira queda da falsa Madeleine. O espectador ressente assim uma forte sensação de abertura aos dois extremos do filme. A espiral, figura que não cessa de alimentar a sua própria auto-revolução, simboliza o filme inteiramente 2. Esta intensa afirmação de um encadeamento aberto ( non clos) de sequências remete o filme a uma espécie de fixação que emana tanto da contigüidade que preside à galeria de tableaux quanto de um dinamismo dramatúrgico. Mas para melhor fazer compreender esta noção de contigüidade, -de extremo a extremo do filme, e portanto em sua evolução fatal- tomo de empréstimo aqui esta famosa figura dita “ a espiral de Fraser”, comentada por Ernst Gombrich em Arte e ilusão 3, ao mesmo tempo antecipação e serialidade, círculos concêntricos auto-contidos, repetidos, e no entanto alavancados pelo abismo.

Vertigo é também o conto de um golpe, organizadao pelo roteiro: aquele no qual tomba Scottie, testemunha inconsciente e impotente de um assassinato. Mas Scottie é vítima de uma outra armadilha ( piège), de uma outra “armadilha do olhar”, como diria Lacan, que mostra que- enquanto sujeito-, Scottie está dentro de um trompe-l’oeil, literalmente convocado- e aqui representado- como capturado, domesticado.
O duplo status de Vertigo faz deste filme uma obra maior da arte moderna. Por um lado, a narrativa age com força sobre o imaginário do espectador, fazendo viver a este último, por intercessão de Scottie, uma experiência de desvelamento traumático. Por outro, a arquitetura do filme, tal como descrita por Éric Rohmer , propõe uma verdadeira metáfora e convida a uma reflexão sobre as relações entretidas entre o real e sua reprodução. Uma reprodução que, ao se encarnar, recusaria o real. Mimetismo, reconhecimento, ilusão, rememoração, todas estas noções próprias às relações que regem à obra de arte e seu espectador estão inscritas na construção dramática do filme.
O tema de Vertigo seria assim estético, e a princípio pareceria ilustrar as duas possibilidades da imagem, as duas versões do imaginário tais quais Maurice Blanchot as definiu 4, e que proviriam do fato de que a morte é ora o trabalho da verdade no mundo- aqui no filme, a verdadeira morte é necessária para que Scottie compreenda-, ora a perpetuidade daquilo que não suporta nem começo nem fim- aqui, o filme, sua aparência de segmento fílmico sem termo, cada seqüência parecendo subtraída ao acaso de um filme já iniciado antes dos créditos.

Eric Rohmer foi o único que em 1959, logo quando do lançamento do filme, já definia Vertigo como uma parábola, e o integra a uma trilogia formada por Janela indiscreta e O homem que sabia demais.5 A arquitetura e a paralisia são comuns aos três filmes. O núcleo de Vertigo é constituído , sempre Rohmer, pelo tempo, não mais aquele do pressentimento orientado para o futuro mas ao contrário, dirigido para o passado: o tempo da reminiscência. A estratégia das ações não se constitui a partir da marcha das paixões, ou por qualquer trágico moral- como diz ainda Rohmer-, mas por um processo abstrato, mecânico, artificial, exterior. Não é o homem que nos três filmes citados constitui o elemento motor, muito menos o destino no sentido em que desde os Gregos o compreendemos, mas a própria forma destes seres formais que são o espaço e o tempo. Rohmer aproxima-se claramente desta idéia segundo a qual o tema de Vertigo seriam finalmente as condições de sua própria forma, a escritura cinematográfica- e, mais geralmente, a representação. A respeito de Janela indiscreta, Rohmer observa no mesmo texto que o fotógrafo vira as costas ao verdadeiro sol e só contempla as sombras sobre o muro da caverna. Enfim, para Vertigo, ele assinala que Scottie é remetido de uma aparência a uma outra aparência. Neste belo texto, intitulado “A hélice e a idéia”, Rohmer insiste portanto sobre a dimensão formal e abstrata do filme, evocadas para ele pela forma espiral, ou mais exatamente pela figura helicoidal. Mas insiste também sobre o retorno para o passado a partir do qual todos os eventos do filme estão fundados, tanto dramatúrgica- os segredos ocultos- quanto teoricamente: de onde vem a representação? Idéias e formas seguem a mesma via, diz-nos Rohmer, encerrando seu texto.

Vertigo é com efeito organizado segundo uma quádrupla “volta para trás” ( retour en arrière). O primeiro são os simulacros dos fantasmas de Madeleine, que deseja encontrar o convento que a obceca. O segundo, a obsessão de Scottie, que deseja recriar Madeleine. O terceiro retorno é a volta de Scottie ao convento, a fim de confundir as duas personagens femininas, Judy e Madeleine. O pensamento de Scottie se manifesta não “mais como aquele que desvela o que deve vir à luz em seu ser, como avant-garde, como inovação mas como reiteração deformada, olhares, repetições convulsivas e mortificadas, como o descobridor de uma imagem que este não desejou descobrir, imagem da qual desviou o olhar e que , no entanto, conhece suficientemente por havê-la desejado”. 6 Em relação ao desvio ( détour), remeto ao simétrico desvio de olhares entre Scottie e Madeleine, quando de seu primeiro encontro no bar.
Enfim, um quarto retorno ao passado das origens míticas da representação. Hitchcock disse com Vertigo que o cinema é o herdeiro da pintura, que o cinema é pintura, propondo “não um caminho percorrido no sentido inverso, mas reconstituindo a rota através da qual- não a partir do corpo, mas desta alguma coisa que Merleau-Ponty chamou de a carne do mundo- pudesse surgir o ponto original da visão”. 7 A vertigem, em Vertigo, é tanto aquilo que arremessa o corpo de Scottie quanto o retorno a este gesto inaugural na cultura ocidental, o retrato como atividade fundadora da pintura. “No início, era o retrato”..., poder-se-ia intitular minha exposição, em parte refletindo na afirmação célebre de Plínio, o Antigo, “Começa-se por delinear através de um traço o contorno da sombra humana”; por outro lado, penso em Hitchcock, que faz de sua mise em scène enVertigo uma verdadeira mise-en-portrait ( encenação de um retrato), especificando assim o tipo de paixão, feito de ritos e trocas simbólicas, que é nutrida pelo personagem principal, paixão já distanciada da fascinação na qual o espectador se mantém diante das efígies fílmicas.

Uma mise en scène que seria uma mise en portrait. Na língua italiana, a palavra retrato, ao contrário do francês, inglês ou alemão, rittrato, indica um retorno, uma retração, um retornar-se sobre, e assinala a capacidade do pintor de retraçar, reencontrar um homologon. E é disto que se trata para Scottie: reencontrar uma imagem inicial que só lhe apareceu para lhe ser roubada, ser tomada entre a melancolia de uma perda e o desejo enganador de morte de uma reaparição, “viver um encontro com um ser que não possui outra vida senão a do retorno”.8
Portanto, no começo era o retrato. Lembremo-nos do gesto lendariamente inaugural da pintura, que se confunde com o primeiro retrato. Em A primeira sombra 9, Agnès Minazzoli revela que uma lenda nos conta que a pintura nasceu da sombra, de uma sombra desenhada sobre um muro e do traçado que o circunda. Uma jovem quis desta forma guardar a imagem de seu amante, na iminência de sua partida. A imagem carrega presença e ausência, sombra e luz; ela as reconcilia ou sublinha o conflito. É precisamente o que quis assinalar em Vertigo: este retraçar, esta retração, e aqui mais exatamente a restauração por Scottie de um rosto perdido, e que transforma o filme inteiramente em uma portraiture ( ao ato de constituir um retrato), uma mise en scène que se identifica ao ato de erigir um retrato enquanto um ato de representação delineado no contorno retraçado pela sombra projetada de um perfil. Rohmer aí bem sentiu o propósito abstrato de Hitchcock: “As sombras sucedem-se às sombras, os simulacros aos simulacros”. Daí se pode supor que a narrativa do filme é indissociável de uma considerável lucidez estética do cineasta sobre as origens da arte da pintura, e simplesmente de toda a arte. Cinco seqüências resumem esta passagem da face ao retrato e do retrato à sombra.

Primeira visão no bar.

É preciso atentar nesta primeira seqüência em vários traços que caracterizam a mise en scène de Hitchcock e que inscrevem desde logo a aparição de Madeleine num registro inelutável, o registro do petrificado, do retrato.O primeiro destes traços é este movimento de câmera que, contra toda expectativa, não se dirige para Madeleine com o fito de fazer raccord com a direção do olhar de Scottie, mas que pelo contrário se distancia, se recolhe nos recantos mais distantes de visão do bar, se retrai.Dito de outra forma, o recuo da câmera associa a primeira aparição de Madeleine a um distanciamento ( une mise à distance), segundo “a paradoxal retração de um retrato que só se aproxima de nós com o fito de se furtar a nós”. 10 Deliberadamente, a câmera abandona a visão subjetiva de Scottie, e parece colocar-se no lugar e na posição de nosso olhar. Falar em retrato é falar em troca de uma face por uma imagem. As trocas são inúmeras em Vertigo; entre as mluheres, entre o real e o sonho, e aqui, entre um olhar e nosso olho, entre um retrato e nosso rosto, como que perfilando-se sobre o fundo deste espelho que seria em definitivo o cinema.
O segundo traço é a mais escrupulosa atenção dedicada por Hitchcock a impor de perfil a primeira imagem do rosto de Madeleine, sublinhada por uma fulgurante auréola. Como a Simonetta, a figura de Madeleine é divinizada, destacada do fundo, e adquire valor de uma espécie de objeto sagrado. Através do perfil, e desde o Renascimento, o retrato segue uma concepção generalizadora. Mesmo individual, o retrato representa um tipo idealizado. Assim, Scottie não pode encontrar o olhar de Madeleine, senão não haveria nem divino nem perfil. “Olhar supõe um perpétuo evitar do olhar do Outro”, lembrava-nos Jean Clair, que remarcava igualmente que o retrato, como a carta roubada de Poe, “tira seu poder não de ser contemplado, consultado, mas pelo contrário: de poder ser posto de lado ou ser mortificado em uma suspensão que é transcendental à sua função”. 11 “Pôr de lado” e evitar o olhar, eis o que caracteriza o primeiro encontro de Scottie e Madeleine. É à uma mise en scène determinada pelo princípio da “portraiture”(portratismo ) a que assistimos desde o primeiro encontro, a inscrição de uma profundidade por uma aposição à distância ( mise en distance), uma retração e um perfil.

Segunda visão no florista

Remarquemos rapidamente o mesmo parti pris de distanciamento ( mise à distance) por intermédio do espelho que define uma circulação entre o olhar de Scottie e nosso lugar de espectador. Destra vez, a função do espelho é mais evidente , se bem que esta já tenha sido evocada quando da saída do casal diante do espelho do bar. Assinalemos enfim a direção de atores de Hitchcock, que impõe à Kim Novak apresentar explicitamente o seu perfil para o olhar de James Stwart, assim como ao nosso.
A palavra perfil vem do latim Filum, e podemos sorrir do fato de que as três seqüências que “fixam” ( figent) a representação de Madeleine se articulem ao longo de uma filature ( enquête investigativa através da qual se segue um indivíduo), a de Scottie tentando penetrar o mistério de Madeleine. Filum engendra borda, contorno, desvio, desviar, fazer a volta ( faire le tour), perfil, perfilado, perfilar-se, desenhar os contornos.

Terceira visão no cemitério

O dispositivo de distanciamento é cada vez mais fortemente intensificado na interpretação dos atores e os lugares respectivos que ocupam no espaço. Scottie, literalmente, gira em torno, contorna, aproxima-se de Madeleine ao mesmo tempo em que parece se afastar ( outro efeito de espiral). Seu trajeto é gerido por uma espécie de liga ( sertissage) , palavra que associa o enquadramento circular do medalhão ou do broche, ao qual se associa aqui, quase que “logicamente”, uma conotação funerária. É preciso atentar para a particularidade da escritura hitchcockiana que, se parece repetitiva ( mesmos efeitos de distanciamento, insistência sobre o rosto apresentado de perfil para a câmera), nem por isso evolui menos dramaticamente. A sua trajetória leva Scottie progressivamente do vivo ao morto, ou do animado ao inanimado ( du vivant au non vivant), como se fosse necessário que esta mise en scène – para ser a mise en scène de um retrato-, tivesse necessariamente de marcar um encontro com a morte, pois “a semelhança não é um meio de imitar a vida, mas antes de torná-la inacessível, estabelecê-la num duplo fixo que escapa à vida. As figuras vivas, os homens, não possuem semelhança. É preciso esperar pela aparência cadavérica, esta idealização pela morte, esta eternização do fim, para que um ser adquira esta beleza maior que constitui sua própria semelhança, esta verdade de si mesmo em um reflexo.
Um retrato, e disto nos apercebemos pouco a pouco, não é semelhante por se parecer com um rosto, mas a semelhança só começa e existe com o retrato e apenas no retrato; ela é a sua obra, sua glória ou desgraça; ela é ligada à condição da obra, que consiste em exprimir o fato de que o rosto não está lá, que ele é ausente, que este rosto só aparece a partir da ausência, que é precisamente a semelhança, e esta ausência é também a forma que o tempo adquire quando se distancia do mundo e, finalmente, dele não resta mais que este vácuo e esta distância”.12

Quarta visão no museu

Hitchcock “encadeia” ( enchaîne) o túmulo, identificado por uma placa nominativa, com o retrato encostado a uma cadeira, identificado como retrato precisamente por um cartel ( espécie de etiqueta-moldura que identifica o nome do autor, o tema da obra, etc).. É Hubert Damisch que nos lembra, em seu Origens da perspectiva 13, que para que haja retrato, é preciso que haja um nome que o identifique, independente do fato de que um retrato possa se dispensar de remeter a um modelo em carne e osso.
Em quatro partes articuladas ao longo de uma trajetória ( entre cada lugar, Scottie retoma seu carro para seguir Madeleine), Hitchcock organiza sua narrativa segundo o princípio de construção de um colar. Sabemos o papel que este objeto vai desempenhar mais tarde na confusão das duas mulheres. Judy se trai definitivamente, pois lembra a Scottie, por intermédio de um colar, o retrato da antepassada, evacuando assim de sua memória a figura de Madeleine. Esta perseguição que repete os mesmos dispositivos dramáticos e plásticos sofre, portanto, uma evolução ( reencontramos assim este tema do falso espiral, feita de círculos autônomos e que, no entanto, aspiram a um centro). O estágio final desta perseguição é este retrato do museu que contemplamos pouco em sua integralidade, pelo fato de que o verdadeiro retrato está em outro lugar, já constituído no tempo dramatúrgico que precedeu a esta chegada na galeria. Veremos deste retrato pintado, aliás de bem medíocre fatura, apenas dois detalhes.
Um detalhe possui a função de encadeamento narrativo e de passarela visual entre Madeleine e o retrato; é o bouquet de flores, que religa igualmente as seqüências precedentes em um continuum dramático ininterrupto: bar, florista, cemitério, museu. O outro detalhe é a voluta de cabelos, que fetichiza Madeleine aos olhos de Scottie. Este segundo detalhe reintroduz a seqüência linear da perseguição, marcada por uma atmosfera crescentemente mortífera, no seio do espiral voraz do roteiro, que encaminha os personagens irresistivelmente para uma queda fatal.
Um retrato pintado em um filme pode, no entanto, ocultar um outro. Em Vertigo, tal como nestes jogos visuais de imagens-charadas, um outro retrato se oculta nas dobras da ficção, na vertiginosa metonímia dos fotogramas. É antes de tudo o dispositivo da mise en scène que “faz” retrato em Vertigo, que “é” retrato ( portrait).

Quinta visão: o hotel.

No começo era o retrato, no começo de Vertigo era um retrato, ao começo do cinema era a pintura, ao começo da pintura era a sombra de um perfil. O encadeamento é assim tão teórico quanto narrativo.
As duas mulheres, Madeleine e Judy, são nada mais que uma, e é Judy, a segunda mulher, reduzida a seu perfil mínimo, que acaba com as incertezas de Scottie, que confirma as perturbações de uma semelhança que poderia colocar na boca de Judy as palavras que Gillette diz a Nicolas Poussin na Obra-prima desconhecida de Balzac. “(...) teus olhos não me dizem mais nada, tu não pensas mais em mim, e no entanto tu me contemplas”. 14 Outro história- em Balzac- de troca entre uma mulher e outra. Em Edgar Poe, é claro, encontramos o eco desta ronda de intercâmbios, destes jogos imaginários entre repetição e retorno do mesmo: “Mas ela morreu, e com minhas próprias mãos eu a carreguei até o túmulo, e ri de um amargo e longo riso, quando, na cova em que depositava a segunda, já não descobria nenhum traço da primeira”. 15
Em outros termos: o retrato realiza aqui seu cerimonial. Judy, traço por traço, é o retrato de Madeleine, que era ela mesma um retrato. De retrato, então, não há nada senão retrato de retrato, representação de representação. Um retrato só se legitimaria enquanto tal a partir de sua inserção em uma cadeia, em uma sinopse constituída de efígies que, como na galeria de um museu, não têm necessidade de se remeter a modelos vivos e credíveis para serem retratos. O que quer dizer que um retrato só valeria ao ser inserido no circuito de uma repetição regida por uma lei paradigmática criativa de semelhança. Este termo atingido por Scottie, esta revelação atingida em meio às brumas desta sombra originária reencontrada- revelação que também se mostra como o sentido do pensamento plástico de Hitchcock- se identifica a uma espécie de cura. Em Vertigo, sua vertigem cessa quando o personagem faz a experiência do real, enquanto este último se mostra como um abismo interminavelmente diferido, ausente ( manqué), prefigurado logo ao primeiro encontro. A vertigem cessa porque Scottie faz a experiência de que não há nada ao fim da queda, de que atrás da imagem inventada há apenas a sombra descoberta, e de que a imagem arrisca de “nos remeter não mais à coisa ausente, mas à ausência como presença, ao duplo neutro do objeto no qual o pertencimento ao mundo se dissipou” 16.


Notas:

1. Michel Foucault, Les mots et les choses

2. Outras sequências evocarão ostensivamente o espiral: os círculos da sequóia fossilizada.

3. Ernst Gombrich, L’art et l’illusion

4. Maurice Blanchot, L’éspace littéraire ( les deux versions de l’imaginaire)

5. Éric Rohmer, L’hélice et l’idée

6. Jean Clair, Méduse
7. Jacques Lacan, Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalise, Séminaire, Livre XI

8. Maurice Blanchot, op. Cit.

9. Agnès Minazzoli, La Première ombre

10. Jean Clair, Le vis-à-vis

11. Jean Clair, op. cit.
12. Maurice Blanchot, L’amitié

13. Hubert Damisch, Origine de la perspective

14. Honoré de Balzac, Le Chef-d’oeuvre inconnu

15. Edgar Allan Poe. Histoires extraordinaires,” Morella”

16. Blanchot, L’éspace littéraire, op.cit.

Dominique Païni, Le cinéma art moderne, 1997, Éditions Cahiers du cinéma

Tradução: Luiz Soares Júnior.

O filme: alegoria da máquina cinema. Do inacabamento


Se fosse possível delinear um dos menores denominadores comuns da arte moderna, eu designaria a noção de inacabamento, que me parece ser uma das inquietudes comuns aos grandes inventores de formas no século 20. O que distingue nosso século dos precedentes é a maneira pela qual esta inquietude se inscreveu na matéria da obra e a consciência do artista. De Mallarmé a Nietzsche, de Cézanne a Pollock, de Artaud a Guyotat, a sensação de acabamento de uma obra, a evidência de harmonia ligada à sua finitude e a necessidade social de terminar foram estilhaçadas, voluntária ou involuntariamente De Leiris a Blanchot e Gombrich, uma literatura critica tentou teorizar este processo de múltiplas formas.

É difícil imaginar que o cinema tenha podido conhecer obras cuja dramaticidade resida na inacabamento comparável ao Pierrot de Picasso, ou às suspensões poéticas e tipográficas de Mallarmé. Desde a Nouvelle Vague, a relação que um cineasta entretinha com seu filme foi sensivelmente modificada. Entre outras razões, as relações de roteiro inicial e do filme final foram abaladas pelas improvisações de um Godard ou um Rivette. Cineastas como Godard e Rivette, mas também Garrel, Akerman, Wenders e Ruiz, entre outros, inscreveram a “indecidibilidade” no núcleo de seus roteiros e mise em scène, na filmagem e na montagem.

Quando e por que acabar? Quando e por que cortar ou deixar durar uma cena ou plano-sequência? Dramatizar as ausências ( manques) por meio de elipses narrativas, diferir o fim de um desejo ao deixar irresoluta uma ficção, abrir uma obra para que, por este fracasso que constitui o inacabamento, a vida se infiltra e termine ela mesma o trabalho. Utopia moral e escolha de estilo. Mas não se trata ainda de constatar o abismo que separa a representação e um real desejável? O caráter de vestígio de certos filmes ou sua forma “em estilhaços” ( encontrados no ferro-velho, como diz Godard) seriam os destroços da experiência deste abismo.

O risco de não terminar um filme ou um livro é uma preocupação rara em matéria de discurso estético. O talento só se reconhece a partir da condição mínima a ser preenchida da obra como objeto acabado, dotada de uma existência em si, que exclui a suspensão, a hesitação, a abertura. Dito de outra forma: é preciso que a obra seja fechada ( bouclée), e a determinação econômica do cinema autoriza pouco o inacabamento. Produção, distribuição, difusão são fases que asseguram a rentabilidade de um produto encarregado de satisfazer um público para o qual a menor das qualidades esperadas consiste justamente em um acabamento técnico e um domínio ficcional, um “fechamento”.

No entanto, embora sua história seja curta em relação à de outras artes, o cinemas atravessou os mesmos questionamentos dos hábitos e rotinas estéticas. É ao mesmo tempo com atraso e ainda mais rapidamente que as questões que tocaram outras artes se apossaram do cinema. As transformações da representação linear, representadas de forma irremediável pelo cubismo nos anos 10, não tiveram consequências imediatas no seio da práxis cinematográfica 1, comparáveis à arquitetura, escultura ou até mesmo a moda. O cinema estava na condição de constituir uma relação especular com o real. Seria preciso esperar a segunda metade dos anos 30 para que as representações parciais e as simultaneidades de ponto de vista impostas pelo cubismo irisassem a representação cinematográfica, com Welles e Renoir. A Abstração figurativa da mesma maneira influenciou tardiamente o cinema (as escolas underground do pós-guerra); as experiências fílmicas dos anos 30 eram mais ligadas às correntes formalistas e futuristas destes anos, cujos valores mecanicistas implicavam naturalmente que o artistas se apossassem do cinema ao mesmo tempo.

Em cem anos, o cinema parece ter “atingido”a atualidade das questões modernas da arte. Sem dúvida, porque o ritmo destas questões postas- e resolvidas provisoriamente- acelerou-se num mundo de comunicação intensificada, mas também porque o cinema provavelmente beneficiou-se da experiência das outras artes num contexto de forças produtivas intelectuais desenvolvidas. O que pode desta maneira explicar a relativa sincronicidade do cinema de Godard de 67/68 com a introdução da Pop art na França, ou a emergência das narrativas inovadoras da Nouvelle vague e a proximidade do Nouveau Roman em meados dos 50? Não há portanto razões que se oporiam em princípio a uma confrontação do cinema ao inacabamento que encontramos com tanta freqüência em outras artes.


Louis Feuillade: o final diferido


Pode-se emitir a hipótese de que Feuillade, ao mesmo tempo em que inventava estratégias ficcionais de que o cinema clássico se nutriria mais tarde, minava- com suas Vampiras e Fantasmas- definitivamente a noção de uma ficção “fechada”. A tradição dos filmes em série e do folhetim relativiza, é claro, esta hipótese, mas não sentimos esta sensação de constante inacabamento nos filmes de Griffith ou naqueles de outros primitivos americanos, que concebiam com o folhetim uma estrutura de episódios relativamente fechados sobre si mesmos. É marcante constatar que o gênio de Feuillade residia tanto em sua capacidade de inventar novas aventuras para seus heróis quanto nos riscos que o autor tomava em relação à compreensão do espectador, ao diferir ad infinitum o desfecho da intriga, pouco preocupando-se com uma lógica dramática ou psicológica.


Jacques Rivette: as finalidades incertas


Já Paris nos pertence ( 1960) implicava um domínio cenográfico e urbano elaborado a partir de esbarrões, encontros e de enquêtes abortadas tão logo iniciadas. É esta sucessão de inacabamentos que, ao termo de um puzzle ficcional, reconstituía a lógica de um pesadelo. L’Amor fou e Out one são dois filmes exemplares da maneira anti-teológica com a qual Rivette se lança na concepção e realização de um filme.É em parte sem conhecer os fins dramáticos de sua ficção, que supõe-se serem geralmente definidas antes de se lançar na aventura do filme, que Rivette começa a rodar, arriscando na arena própria da rodagem as chances de “fechá-lo”. Como se para ele o fato de começar um filme fosse algo claro, mas as energias profundas que alimentavam a narrativa lhe fossem desconhecidas. Se o inacabamento constitui a matéria primeira dos filmes de Rivette, é no sentido em que Maurice Blanchot podia dizer que o processo de uma obra se encarna entre “a clareza do começo e a obscuridade da origem”.



Chantal Akerman: a fragmentação e a serialismo.


Esta clareza do começo pode explicar o prazer suscitado por um filme. O inacabamento deve encontrar uma parte de sua realidade na dolorosa dificuldade de concluir, de acabar ( d’en finir). Com o fim de um texto, é uma dimensão de si que morre: a energia que animava a escritura desaparece com seu fim. Como explicar de outra forma o que preside às ficções de Chantal Akerman, cuja vontade de fragmentação em Toute une nuit deve- ainda por cima- identificar-se a um sonho noturno cuja idéia de acabar esta não suportava conceber? Chantal concebe acabamentos provisórios, embora coerentes em si mesmos, e desvia assim a facilidade metonímica da narrativa cinematográfica clássica. O inacabado é assim o fator de invenção de uma outra tática de aproximação do real, tática ( démarche) poética que, mostrando as passarelas invisíveis, encadeando os múltiplos acidentes no seio da vida dos personagens que se desconhecem, propõe uma visão do mundo menos fragmentária do que as aparências permitiriam supor. É bem o inacabamento ficcional destes acidentes que permite em definitivo a possibilidade de interferências entre os fragmentos da narrativa. O Rendez-vous d’Anna não era já- num nível dramático mais do que formal- uma tentativa de mise en scène serial dos elementos da vida de uma personagem cujos múltiplos encontros remetiam sempre a uma fundamental decepção?



Philippe Garrel: a experiência dos limites.


Trata-se também de uma justaposição de fragmentos que parecem impregnar os filmes de Garrel. Se há um cineasta que entretém uma ligação íntima com o inacabamento é Garrel, mas de uma maneira contraditória, de tal forma o próprio princípio de sua filmagem repousa sobre a experiência dos limites das possibilidades materiais e temporais da película. Vontade de esgotamento de que podemos registrar no tempo um catalisador- e na luz uma película, que nos confronta à impressão de inacabamento de seus filmes. Em Elle a passe tant d’heures sous les sunlights, Garrel deixa na montagem definitiva os “claps”de eclosão do filme e os “cuts” bem definidos ao fim da cada fim de plano.

É este princípio que leva Garrel a mostrar a totalidade do que foi filmado, remetendo assim o filme definitivo a um singular encadeamento ( bout-à-bout) de rushes provisórias. Nada, num filme de Garrel, chega a constituir uma totalidade rígida, uma massa compacta, e no entanto tudo parece religado por articulações leves e móbeis, cujos pivots não são pensados enquanto tais pelo cineasta. Se há uma lógica entre as diferentes seqüências e os distintos momentos dramáticos do filme, estes são interiores à Garrel, e apenas se impõem poeticamente ao espectador pela intensa sinceridade afetiva do cineasta, sem o recurso a qualquer pretensa pontuação ou a “quedas” dramáticas que teriam por função fechar e articular harmoniosamente- habilmente- qualquer seqüência.

Esta característica de seu cinema produz uma sensação de “desajeitamento”( maladresse), que nos remete à infância. Esta relação entre a falta de jeito e a infância é tão evidente para Garrel que um bom número de seus filmes são ficções duplamente atravessadas pelo desejo da infância (e da criança) e a interrogação sobre as origens do cinema. Cada filme de Garrel tenta reinventar sem cessar o cinema, ou ao menos manifestar um constante maravilhamento diante do milagre de sua realidade. Esta magia perpetuamente revivida e dada a compartilhar ao espectador à ocasião de cada plano desvia Garrel da obrigação do acabamento ficcional. Como a matéria da película, esta magia devora a ficção.

Philippe Garrel é neste sentido um cineasta cruel, mesmo que esta crueldade se exerça sobre o corpo do próprio filme. É porque o espectador ressente certas ausências ou buracos ( manques) no seio de seus filmes que este é, senão perturbado, ao menos incomodado.A ausência- e trata-se com freqüência em Garrel de uma ausência que se exprime através de uma não conformidade entre a linearidade das narrativas e as aparências da realidade capturada- perturba, propicia mal-estar e designa às vezes explicitamente o objeto ou o corpo “que falta” sob a forma de uma elipse narrativa (como em Antonioni) ou sob a forma pura e simples de uma lacuna ficcional ( a “falta de jeito” de Garrel), de um buraco negro que provoca no espectador um sentimento de despudor.


Raoul Ruiz: a monstruosidade.


Sob a fascinação pelo inacabamento que anima a estética de Ruiz, oculta-se uma violência, uma tortura, uma monstruosidade. A virtuosidade cinematográfica de Ruiz advém provavelmente tanto de um talento incomum quanto de uma impotência tipicamente barroca em fixar um centro de gravidade formal a seus filmes. Esta virtuosidade decorre também de um exigente senso moral que o constrange a concentrar o máximo de pensamento e de signos, a fim de poder dar conta de uma realidade. O excessivo ( trop plein, cheio) e a profusão, que seus espectadores ressentem diante de seus filmes, engendram esta sensação de monstruosidade, tanto mais forte quanto mais o cineasta constrói com freqüência suas ficções a partir da busca de um objeto ausente (manquant) cujo exemplo mais célebre permanece o Quadro roubado.Uma forma ou um ser inacabados, mutilados, remetem sempre à monstruosidade.

Um filme de Ruiz possui a monstruosidade do leproso, a que faltariam os membros ou partes da epiderme. O cineasta introduz aliás em suas ficções visões de carnes decompostas ou roídas pelos vermes. Como não aproximar o inacabamento constitutivo das ficções ruizianas da dificuldade de Leonardo da Vinci em terminar seus quadros? Como não aproximar do pintor italiano, da mesma maneira, a ciência do desenho anatômico ( os amputados) dos inacabamentos pictóricos? Como não aproximar, enfim, dos closes de feridas em Ruiz os destroços carnais de Da Vinci?A monstruosidade não revelaria então a avidez por um excesso de real ( implicada aí justamente pela avidez da ciência anatômica?)

As construções dramáticas dos filmes de Ruiz tomam emprestado ao mesmo tempo da “vidência” rimbauldiana, da enquête policial, da pesquisa científica, à especulação metafísica... mas testemunham em definitivo um impossível acesso ao real, o ávido abismo do cinema de Ruiz. Maurice Blanchot descreve bem o que poderia ser o cinema de Ruiz: “Muitas obras nos tocam porque nelas vislumbramos ainda as pegadas do autor, que se distanciaram bem precipitadamente, na impaciência de terminar e no medo de- se não terminassem de terminar a obra- não poder retornar à vida. Nestas obras, tão grandes, maiores que aqueles que as carregam, sempre se deixa pressentir o momento supremo, o ponto quase central onde sabemos que, se o autor aí se mantivesse, morreria sob o peso de sua tarefa... Mas quantos outros, na irresistível atração exercida pelo centro, apenas conseguem se arrancar de suas obras com uma violência desarmônica; quantos deixam em seu rastro as cicatrizes de feridas mal curadas, os traços de suas sucessivas fugas, de seus inconsoláveis retornos, de seu ir e vir aberrantes. Os mais sinceros deixam abertamente ao abandono de nossos olhares a obra que eles mesmos abandonaram. Outros ocultam as ruínas, e esta dissimulação se torna a única verdade de seu livro” 3


Langdon e Duras: os corpos burlescos.


Esta abordagem do corpo que se verifica em Ruiz de maneira relativamente conceitual- mesmo que se exprima em closes terríficos de realismo ( por aí retomando a arte grotesca)-, encontramos igualmente na história do cinema sob a face do burlesco. Harry Langdon permanece o cineasta-ator que mais radicalizou a mise en scène de seu próprio corpo moribundo, regressivo, inacabado. Sua figura física- e as gags que esta propiciava- exploram todas as ambigüidades sexuais ligadas à indeterminação específica de uma idade situada entre o nascimento e a puberdade, que Langdon sempre se empenhou em mimetizar. É pouco imaginável que Langdon não tivesse consciência do sentimento de inacabamento que iria se produzir através de seu personagem, até os limites da homossexualidade e androginia. Mas a androginia não é a forma exasperada do inacabamento, que confina a perfeita complementaridade dos sexos no seio de um mesmo ser? Marguerite Duras sentiu bem em seu filme As Crianças o partido que poderia tirar do parti pris ( tomada de posição) de seu personagem principal, Ernesto, com o fito de colocar em crise o discurso totalizante da educação. Ernesto é um personagem diretamente saído do cinema burguês, criança sem idade e inadaptável.

Se fosse necessário paradoxalmente concluir, creio que poderíamos enviar a desconfiança e a fascinação conjugadas pelo que permanece inacabado à esfera do desejo. Inacabar não se trataria de uma atitude perversa que consiste em diferir ( adiar) a consumação de um desejo, com todos os medos que devem dele participar, medos ligados ao fracasso, à preguiça, e portanto ao dandysmo?


Notas:


1. Excluo aqui as raridades avant-gardistas de Fernand Léger, Ducgamp, Lazlo Moholy Nagy...

2. Para a qual a ausência de intertítulos não adiantaria de nada, logo que os folhetins foram redescobertos nos anos 60 na Cinemateca.

3. Maurice Blanchot, O espaço literário, Gallimard, coleção Idéias, 1973.


Dominique Païni. Le cinéma, un art moderne, 1997.

Tradução: Luiz Soares Júnior.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Nota


Traduzi dois textos - Biette e Bonitzer- que tocam num tema que me interessa atualmente e creio deveria interessar a todo cinéfilo, diletante ou não, que tenha abandonado a sala de cinema (ao menos como útero): o status atual da imagem (plano?) cinematográfico, com as tecnologias epocais vigentes, etc. Só imploro que respeitem meu trabalho por aqui e evitem fazer questões ou enviar duvidosos , embora creio que bem-intencionados-elogios- como tenho lido por aqui- de que “como vc escreve bem!” “legal seu trabalho”. Sou crítico de cinema, mas escrevo em outros lugares, Isto aqui é um blog de TRADUÇÕES, tão somente.. É isso. Só pra evitar aquela sensação desagradável que a gente às vezes tem de que está sendo feito de palhaço, e perdendo um cansativo tempo para nada, já que muitos leitores ainda não tem condições de distinguir uma criação original de uma tradição, mesmo quando esta vem com rodapé, citações, data da publicação, título original e autor no cabeçalho, etc. Não é um número majoritário, é evidente, mas elogiar por elogiar- sem ler- e ver que se tratam de traduções e não textos originais, não me interessa.

A maldição do fotograma



O último plano do Ano do dragão de Michael Cimino, composto de movimentos que bruscamente se interrompem, repartem e alternam até o definitiva “parada” ( arrête) sobre a imagem, propõe uma variante de uma figura de retórica típica da nova língua comum do cinema. Com efeito, todo filme- e estes são numerosos hoje em dia- que termina com um congelamento sobre a imagem manifesta sem o saber uma metafísica da imagem como novo valor sagrado. A imagem ( vide também as tomadas de posição tão violentas quanto arbitrárias daqueles para quem o cinema “é antes de tudo a imagem”, postulando por princípio uma combinatória infinita de elementos visuais) repousa agora- nesta nova língua comum da “imagem”- não apenas sobre a possibilidade ( o que seria uma maneira agradável de visar o cinema) mas sobre a obrigação de acordar crédito e valor não mais à restituição do espaço e da vida que podem se inscrever na tela de cinema ( tal como a podemos viver, sentir, observar ou imaginar), mas à compilação de todas as figuras visuais , secretadas ao longo da História do Cinema pelos gêneros.

O cinema publicitário nos habituou a perceber cada plano como um banho fetal de imagens- e cada spot como uma auto-estrada narrativa desembocando sobre uma palavra., um nome, uma frase, uma imagem. Esta idealização da imagem como superfície- significada, portanto, geralmente pelo congelamento sobre a imagem ao final do filme- conduz progressivamente o cinema a ser nada mais que uma vasta reconstituição arqueológica fundada sobre um princípio implícito: nós sabemos que o cinema no qual acreditavam nossos ancestrais era apenas a ilusória reprodução da vida. Cada filme hoje nos lembra cruelmente por intermédio de seu ponto final que o cinema é apenas uma sucessão de imagens, condenada ao fotograma. A televisão, depois o magnetoscópio- de forma mais radical que todas as Cinematecas do mundo- transformaram todos os cineastas, sem exceção, em possuidores efetivos ou potenciais de todos os tesouros cinematográficos, desde os documentários dos irmãos Lumière até o pornô e a ópera filmada, desde Griffith até os Straub. O que é de hoje em diante comum ao cinema que se faz atualmente e ao Grande Livro do Cinema que cada espectador pode ler ou folhear sobre uma tela de tv é este congelamento sobre a imagem- operação desconhecida, há vinte anos atrás, mas tentação irresistível para todo espectador: estacar o instante.

Godard atribuía a Truffaut a invenção do congelamento sobre a imagem no final de Os incompreendidos ( Truffaut que amava tanto os livros). Esta invenção, anterior a Truffaut, é ligada em todo caso à adaptação cinematográfica de um livro: é ao final de Madame Bovary que Minnelli congelava a imagem de Mason-Flaubert. Esta petrificação sobre a imagem que Minnelli havia imaginada a respeito de um livro tornou-se um signo de adesão ( ralliement) cinematográfico: correlato ao fato de que a imagem postula apenas a ser uma pura operação quantitativa de retranscrição ( pode-se já produzi-las eletronicamente). Hoje, não importa quem pode- se sua memória insconsciente dos filmes não é suficiente- conscientemente retranscrever (recopier) os efeitos que admira no controle remoto). De uma parte a outra, trata-se do regime do “congelamento” sobre a imagem.

Mizoguchi, quando realizava seus filmes sublimes a partir da antiga ilusão segundo a qual o cinema deveria captar a vida- e não compor imagens- não sonharia um único instante em acabar um filme “congelando” a vida. Ele que nada poupou para torná-la real sobre a tela não poderia ser tentado a reduzi-la aos confins de uma imagem. Um plano de Mizoguchi nunca foi uma adição de receitas ou de efeitos abstratos, mas um incalculável encontro (a mais eficiente dos 4x não encontraria jamais as menos) de vibrações humanas, atmosféricas, luminosas e técnicas, suscitadas por uma certeza: que a vida, que existe antes e depois do filme, não deixa em nenhum momento de estar lá ( desde o devaneio inicial ou a primeira intuição do filme até a tiragem da primeira cópia)- esta vida sempre a colocar, insidiosa ou às vezes brutalmente, questões ao cineasta. Mizoguchi não esquecia jamais que deveria buscar captar em um filme o essencial da vida. ( A história do bife, contada por Claude-Jean Philippe, testemunha desta atenção constante em Mizoguchi, que tinha ouvido na voz de uma atriz ,que acabara de comer uma bisteca, tons de satisfação e bem-estar impossíveis para o desempenho da personagem).

Esta feliz ilusão, que Mizoguchi compartilhava com a maioria de seus camaradas, teve por aliada uma intuição que apenas Murnau e Griffith possuíram a um tal nível: que o espaço é, com o rosto humano ( e, a partir do falado, a voz) a única ordem de grandeza que assegura ao cinema, pelo ultrapassamento de suas técnicas, seu caráter sagrado de arte. O espaço, no cinema de Mizoguchi, é a própria metáfora da vida, que reverbera para além das contingências sociais e históricas dos seres humanos, sem jamais se hieratizar em uma indiferente beleza abstrata. Mizoguchi restitui ao mundo visível seu caráter sagrado: por suas bruscas aberturas de espaços (os mais belos movimentos de câmera jamais concebidos por um cineasta), que exilam os seres ou os jogam uns contra os outros, Mizoguchi exalta a profundidade de campo até o ponto de fazê-la exprimir, por uma espécie de indução de ondas que prolongam os atores-personagens, a imensidão da vida.

Com o simples jogo combinatório da imagem, a tarefa nos dias de hoje não é simples. O espaço filmado não é mais percebido como uma virtual conjugação de vibrações: se acreditassem ainda nisso, não teriam a necessidade de sobre-significar ( enfatizar) que o filme acabou, como se faz congelando a imagem. As vibrações do plano, a dramatização do espaço, o distanciamento ( ou a aproximação) dos personagens são suficientes ( às vezes com, é verdade, um pouco de música em torno). E mesmo se alguém buscasse retomar um pouco desta antiga maneira, os espectadores, antes mesmo de se deixar tocar por eventuais metamorfoses inéditas, veriam antes uma figura de estilo. O impasse é praticamente total. Como romper a barreira deste congelamento sobre a imagem? Alguns conseguem. Detetive de Godard termina sobre uma imagem conhecida ( happy end no carro) com a qual o diálogo “goza”. Também o som, no final de América-Relações de classes ( Straub-Huillet), que desfibra a imagem contemplativa e abre uma brecha no impasse.

Em Abbot e Costello em Hollywood ( programado na “última sessão” de Eddy Mitchell na FR3), o espaço não se encarrega de exprimir grandes coisas ( Sylvan S. Simone provavelmente apenas era um artesão um tanto inquieto por criar) ; só que, mais prosaicamente, o espaço permite aos atores e suas gags se desdobrarem com toda a clareza e precisão. O gênio cômico de Abbott, que não é sem relação com a trivialidade de Benny Hill, consiste em intensificar as gags até os limites do absurdo sem jamais distrair os espectadores de sua encarnação física: a cabeça obstinada e o corpo abaulado de Abbot, com mais destaque ainda que em W.C.Fields ( em quem a voz faz mais da metade do trabalho), oferecem a garantia que a abstração da gag era apenas uma disciplina ou um instrumento. Ainda seria preciso que Abbot encontrasse um metteur em scène sutil o suficiente para que tudo que entrasse em matéria de ingredientes na composição do filme fosse seu prolongamento lógico e natural: o que justamente se constata em Abbot e Costello em Hollywood. Todos interpretam no diapasão da mesma extensão de ondas que os dois atores, sem provocar esta desagradável impressão que sentimos com freqüência nas comédias e comédias musicais americanas produzidas em série, onde os outros personagens são “escadas” ( faire-valoir) que nos alertam irremissivelmente sobre o passadismo de uma época desaparecida.
Aqui, todos os personagens estão diante de nós no tempo do filme que se desenrola, no presente. São os atores-personagens que possuem o poder de anular as marcas pesadas e ultrapassadas ( désuètes) dos estilos da época. ( E que diabos Woody Allen, que não tem necessidade de copiar ninguém, vai fazer nas pirâmides hollywoodianas?) . É a última fortaleza ( no momento) que permite-nos resistir ao regime insidiosamente totalitário da arqueologia da imagem, sob a condição de que os atores cessem de se referir aos stars que os precederam. Que eles sejam- no presente- eles mesmos. Ao menos, sua luz será real.

Jean-Claude Biette, Poétique des auteurs

Cahiers du Cinéma, 379. Janeiro de 1986

Tradução: Luiz Soares Júnior.

A superfície vídeo, por Pascal Bonitzer


O sucesso do cinema é ligado desde as suas origens ao fato de que este reproduz o movimento da vida, ou antes: ao fato de que ele é feito para isto. Nevoeiros, tremores de folhagens, nuvens, águas correntes, todos estes temas de interlúdios que são como o núcleo do cinema, sua besteira também se quiserem, mas sobretudo seu “grão” próprio. O grão da imagem cinematográfica é um grão fino, atmosférico, expondo em sua coexistência à luz as diferentes texturas da pele, dos tecidos, da pedra, das peles dos animais, das cascas, do polido dos metais e os fluidos, a fumaça, etc Esta coexistência imediata de matérias e essências diversas é a raiz do poder do cinema, o que se chama a impressão de realidade. A imagem é transparente, a película registra o jogo das luzes e das sombra; o trabalho não se faz na câmera enregistradora, mas antes ou diante ( a luz) e depois ( o laboratório). A realidade pode ser trucada a posteriori, mas ela está lá a priori, e é ela que se imprime e suscita impressão.

Já o vídeo funciona de uma forma totalmente diferente. A fita magnética opaca não tem nada a ver com a película transparente e sensível. O vídeo não truca a realidade ótica; esta opera em um outro domínio, é desde logo manual, ou antes “digital”. A imagem é de antemão suscetível de se decompor ao infinito; ela abrange quase que naturalmente um tratamento não figurativo. A imagem não possui grão uniforme; ela se compõe de pontos a partir de cada qual é possível, graças ao tratamento numérico, ao efeito Squeeze Zoom ou Quantel, desfazê-la, anamorfizá-la e metamorfoseá-la.

A metamorfose é o regime natural do vídeo; ela não tem portanto nenhuma ligação natural a uma qualquer realidade; as noções de plano e de campo não lhe são pertinentes, já que estas ( do vídeo) possuem uma significação puramente ótica. O espaço do vídeo é pura superfície; é por isso que se fala da imagem eletrônica não de “mise en scène”, mas de “mise en pages”. Não há profundidade estratificada em uma escala de planos, nem coexistência mais ou menos conflituosa- e portanto, propícia à narrativa, ao conto, ao drama- de corpos, mas uma incrustação sem conflito, um jogo de papéis recortados ( découpés), como se todos os corpos estivessem liberados da profundidade e do peso, e se distendessem sobre a superfície como cartas.

O cinema é uma arte do próximo e do distante, e de todos os sentimentos que os implicam: amizade, amor, ódio, inquietude, angústia, fobia, terror, horror, desejo, excitação, nojo... No vídeo, não há nem o próximo nem o distante, tudo é ao mesmo tempo próximo e incomensurável; Averty pode fazer Tino Rossi dançar umas 33 voltas sobre o fundo do oceano, mas podemos falar, em um jogo de tal ordem, em superfície e fundo? A imagem é liberada da perspectiva. Os corpos são liberados de todas as emoções, de todas as inibições. O espaço é de antemão jogo colorido ( o vídeo em preto e branco não possui nenhum sentido, a não ser como truque especial de cinema), eufórica, leveza ou indiferença, doce psicodelia.

No cinema, um buraco é sempre dramático. É um poço, uma ferida, uma fechadura onde se imiscui o olho do voyeur ( e onde o paranóico, como em El, insere uma longa agulha vingadora), é o buraco da banheira para onde converge o sangue, que desaparece em turbilhão ( Psicose); é uma boca que se abre sobre um grito, é a caixa do elevador onde a vítima é empurrada, é o impacto da bala entre os olhos, as órbitas sanguinolentas do cadáver; é a boca do aspirador que aspira todo um magazine ( Um chef de rayon explosif), é um buraco negro, um ânus, um sexo exposto, um ventre entreaberto, um abismo. Não há um buraco em vídeo, ou antes: só há buracos, superfícies rasuradas, incrustaáveis ao infinito. Todos os buracos são sempre tapados pelo que vem aflorar à superfície; não há buraco, só há incrustações, flores que vem eclodir no lugar dos olhos, um nariz que emerge sob a boca, um coelho no pavilhão da orelha, e o todo em música, música e musak. Não há vazio em vídeo, a imagem é um formigamento de pontos animados- pela incessante vibração eletrônica-, um espaço de incessante pulsação.

Não há atores em vídeo. O ator é a própria imagem, a imagem que faz a histérica ou a esquizo, que se metamorfoseia e que pulula. O cinema leva a sério a metamorfose mas também o que Elias Canetti chama “enantiomorfose”; a ação de desmascarar, de reconduzir a uma identidade primeira toda a série das figuras enganadoras. Lang, Hitchcock: pastiches, glacês sans tain1, identidades falsas, “invraisemblables verités” 2, máscaras diversas.

No cinema, os eventos são sempre no fundo irreversíveis, e mesmo os efeitos de “retour em arrière”3 se encarregam de prová-lo. Nada é irreversível em vídeo, pois tudo é circular e sem conseqüência, os corpos incorporais plastificados se desfazem e se reconstituem ao sabor da “mise en pages”. O vídeo é Alice, que corre sobre o espaço, se desdobra, se alonga, cresce e diminue. Alice não é um personagem de cinema, porque no cinema os truques devem ser realistas, e o realismo não tem nada a fazer na história. O vídeo não possui maquinário, nada de mundo-aquém, nada de realidade enganadora ou falsa, porque não possui realidade, ou infimamente.

Não há sombras em vídeo. A mise en pages faz-se obrigatoriamente com luz direta, o plano dianteiro sempre iluminado da mesma forma ( um pouco mais sombria) em relação ao segundo plano ( arrière-plan) azul e brilhante, que é o suporte das incrustações. O vídeo conhece as diferenças entre as cores, mas ignora as variações de iluminação.

O vídeo não conta uma história; ele desenvolve um pequeno poema visual, um haïku ( ou antes, filosofa sobre o visível, como em Godard). Poemas, haïkaï: as metamorfoses sintéticas do admirável Sunstone, de Ed Emshwiller ( mas se trata de um caso particular, as imagens informáticas). Um deslumbrante vídeo filme sobre Grace Jones. Grace Jones é um corpo ideal para o vídeo, um corpo artificial, brilhante, leve, improvável, de clown andrógina glacial, de Pierrot negro. É uma paródia de star e o contrário de uma star, pois ela não sugere nenhum drama, nenhum perigo, nenhum terror ou frisson.

Os vídeo filmes só são suportáveis quando curtos; rapidamente, eles saturam a atenção. O suporte película talvez não seja, como diz George Lucas, “apenas um estúpido material, típico do século 19”; o suporte magnético é sem dúvida um material sofisticado, fiável, digno do século 20.

Pobre século 20.


Notas:


1 Espelhos cuja superfície refletora permite que qualquer pessoa postada atrás dele veja sem ser vista. Como na cena do hotel, no Mil olhos do doutor Mabuse ( 1960).

2. Título francês do penúltimo filme americano de Fritz Lang, Beyon a reasonable doubt (Suplício de uma alma).

3. Retomar/retornar ao princípio.


Pascal Bonitzer, Le champ aveugle. Essais sur le réalisme au cinéma.

Tradução: Luiz Soares Júnior.