sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Uma obra de saúde pública.


Uma anedota pitoresca, bem urdida. Um realismo de bom tom; ar natural, desenvoltura. Narbonne no inverno, o acinzentado das cidades de província, a noite; em resumo, a  poesia. Alguns fracassos aqui e ali, um tanto de derrisório. Um lirismo ( leve), uma melancolia ( contida), crueldade, ternura. O todo, sendo considerado um espécime do bom gosto, encantou os fúteis, a todos aqueles que, ingênuos- ou porque se crêem excessivamente espertos ( os distintos diletantes que vieram da arte moderna)- só sabem amar a Bonnard opondo-o a Picasso, Eustache contra Godard.
Do lado dos espíritos casmurros, em revanche- de todos aqueles que em nome da modernidade, querem fazer passar sua estreiteza de espírito por rigor, seu fanatismo por jansenismo-, reagiram com desprezo. O Papai Noel desgostou a estes pela mesma razão com que agradou àqueles: como uma obrinha de nada. De um lado como de outro, mal-entendido.
Em primeiro lugar, em relação ao caráter anedótico. Manifestamente, o interesse do filme reside em outra parte- antes e depois, assim como durante, do lado, em torno tanto quanto dentro. Na realidade, o Papai Noel é um filme sobre a experiência. Sobre o material da experiência: a acumulação da vivência cotidiana, de suas ocorrências opacas, de onde às vezes emerge, fácil em identificar, uma réstia de aventura ( durante um mês, se vestiram de Papai Noel para ganhar  dinheiro e comprar um duffle coat). Sobre o trabalho da experiência: sobre a organização ( por exemplo, da narrativa), que a posteriori um indivíduo impõe a esta vivência, de tal maneira que esta parece se ordenar em unidades significantes, em articulações lógicas. O momento onde certos episódios do vivido se tornam capítulos de uma lição. A tentação deste gênero de empresas consiste sempre na possibilidade de um certo fechamento: o episódio fechado ao mesmo tempo em torno de seu desenrolar e de seu sentido. Mas Eustache cuidadosamente evitou sucumbir a isto, ao se abster de privilegiar o episódio central com alguma luz  particular, seja ao nível da narrativa ( este não possui mais relevo que o da loto ou do réveillon) , seja pela inserção na narração de elementos tiranicamente demonstrativos.

Sem dúvida, o Papai Noel aprende que as moças ( ou seja, finalmente o mundo) são menos inabordáveis do que parecem. Mas a lição é duvidosa. Deste saber, é preciso fazer a prova. A honestidade de Eustache consistiu em se recusar a inflar a anedota visada, e, com o risco de taxarem seu filme de insignificante e confuso, de saber respeitar as mensagens obscuras, as significações duvidosas, enquanto estas aparecem como modalidades essenciais do vivido. 

O que pensar então do realismo de Eustache? Por que esta vontade obstinada de se manter o mais próximo possível da vida, de seu desenrolar lento, de suas contingências cotidianas? ( o quotidiano das conversações, dos encontros, dos lugares, o das situações- a mais inesperada das quais ainda entretém com o real sutis implicações- o fotógrafo despreocupado que parece conhecer todo mundo em Narbonne não possui nada de um estranho mensageiro de aventuras). Esta vocação ao concreto seria o efeito de uma carência imaginativa? Pouco importa. O que é certo é que há aí uma tomada de posição enraivecida que nos faz pensar em Flaubert: esta imersão no real possui algo de desesperado, de heróico. Daí vem sem dúvida a força de certos planos distanciados, certos recuos súbitos da câmera ( a longa panorâmica sobre a cidade no primeiro terço do filme), que através do mesmo movimento com que designam o real com uma clareza sem mistério parecem, por sua própria insistência, contestá-lo, recusá-lo. Este recuo não é sem “poesia”, não tem nada a ver com esta graça turva de um olhar que teria miraculosamente o poder de transfigurar o real. É uma espécie de humilhação, uma leve náusea diante de tudo o que “já está lá”. ( Narbonne, seus barcos, suas moças a abordar, o dinheiro que é preciso ganhar, os réveillons que é preciso festejar). Este recuo consiste no único gesto de dignidade possível; é o distanciamento das quedas orgulhosas.

Um realismo desta natureza não teria evidentemente como evitar a aparência de solidariedade com um certo pathos. Um “queridinho insignificante”, um insignificante ideal ( de que Martini deleitado em uma insignificante solidão no terraço do café dos filhinhos de papai representa o insignificante emblema). Presente já em Les mauvaises fréquentations, o primeiro filme de Eustache, esta complacência para com o irrisório  parece ser a mais evidente constante de sua visão. Mas daí a lhe atribuir a função de uma definição de tonalidade consistiria em um mal-entendido sobre o propósito de Eustache. Para que a imersão no irrisório possa desempenhar este papel, era preciso que ela fosse a chave do filme- a armadura da chave, como se diz em música- , seria preciso que Eustache a promovesse, à maneira de um Fellini por exemplo, no essencial de uma mensagem. Não há nada disso. Filme sobre a derrisão, a complacência para com o derrisório ( que arrisca-se a ser qualificado de filme derrisório e complacente). O “Papai noel” é um filme do orgulho. Estes insignificantes ( minables) são eleitos, suas insignificantes aventuras são as empresas homéricas de nosso tempo. Não há nenhum de seus fracassos que não comporte, da mesma forma como os grandes insucessos flaubertianos, alguma vertiginosa ambigüidade.

Quanto à escritura deliberadamente clássica adotada por Eustache- modo de narração estritamente linear, simplicidade ideal da câmera, ausência total de signos exteriores de modernidade- , como não reconhecer aí a honestidade fundamental de um artista que, tendo de certa forma optado por uma fidelidade ao mundo, pretende não trair este engajamento pela intervenção manifesta ( pornográfica, diria Straub) dos gestos obstrutivos da arte? Os propósitos de Eustache necessitam, senão uma perfeita “brancura” ( blancheur) de escritura ( estado ideal de que conhecemos a possibilidade problemática), ao menos algo como uma escritura dissimulada ( mine de rien) , que nos faça esquecer de seus signos com o proveito de uma clareza total dos significados. A câmera atrás do vidro, se o personagem está atrás do vidro, diálogo mudo se não podemos ouvir este diálogo. Ir e vir repetido de um travelling sobre um personagem hesitante que avança e recua. Uma escritura, senão inocente, ao menos justificada pelo que quer dizer- a menos culpada possível.


“É então, escreve Francis Ponge, que ensinar a arte de resistir às palavras torna-se útil, a arte de violentá-las e submetê-las. Enfim, fundar uma retórica- ou antes: levar cada um a aprender a fundar sua própria retórica, é uma obra de saúde pública”.

Sylvie Pierre, Cahiers du cinéma, número 188, março de 1967.

Tradução: Luiz Soares Júnior.


quarta-feira, 20 de novembro de 2013

A mise en scène na prova de fogo dos filmes.



O “quatro de espadas”.


Para chegar a esta definição do cinema e da mise nm scène, Mourlet só tinha por arma a acuidade de sua percepção dos filmes - um pouco como em Kant a arte se depreende de considerações sobre a sensibilidade quase desprovidas de empirismo. Quando ele não escrevia no Cahiers, Mourlet com freqüência publicava artigos na revista Présence du Cinéma; esta revista (1959-1967) era intimamente ligada a uma sala de cinema parisiense, perto dos Campos Elísios, o Mac-Mahon, dirigida por Pierre Rissient, e cuja programação se queria exemplar. No hall, éramos acolhidos por retratos gigantes de quatro cineastas julgados como os melhores pela corrente crítica “mac-mahoniana”: Fritz Lang, Joseph Losey, Otto Preminger, Raoul Walsh. Esta lista, à parte alguns acréscimos ocasionais (de Vittorio Cottaffavi a Hugo Fregonese), é também a lista de Mourlet. São aos seus olhos os raríssimos autores de filmes onde se pode encontrar a verdadeira arte da mise en scène.
A escolha é surpreendente, sob vários pontos de vista, e em primeiro lugar por conjugar dois cineastas puros, Fritz Lang e Walsh, e dois homens vindos do teatro, Losey e Preminger. Este último é mesmo um homem de teatro antes de tudo: sua concepção da mise en scène, embora elegante e muito discreta, é muito intervencionista e distante de toda transparência. Preminger é antes de tudo o homem da fluidez, e seu instrumento mais importante é o movimento de câmera. Uma cena, para ele, é antes de tudo uma continuidade: se ele pode filmá-la em plano único, ele o fará, pronto a determinar as trajetórias dos atores de maneira a torná-la possível; se ele deve “découpá-la”, ele vai preferir raccords no movimento de preferência a outros; o campo e o contracampo não lhe são estranhos, mas unicamente se não os pode evitar, e sempre como uma forma neutra que não possui nenhuma expressividade em si mesma. O resultado, sensível em quaisquer dos filmes da maturidade de Preminger, é uma forte sensação de “direção”, não no sentido da “direção de atores” (Preminger tendo pelo contrário a reputação de dar muito poucas referências aos atores), mas antes no sentido hitchcockiano de “direção dos espectadores”. Acompanhando, flexível mas exatamente, os deslocamentos dos personagens, e sempre guardando um certo grau de liberdade em relação a estes - e quase que arbitrário -, a câmera dirige minha atenção, volens nolens, de um gesto a outro, de um olhar a outro, de um lugar a outro.

Peguemos em Alma em Pânico (1952) a pequena cena de “transição” onde Diana, a jovem heroína assassina presa de remorsos, vem encontrar seu advogado, Barret, para registrar sua declaração de culpa. Quando chega ao escritório, Diana encontra uma secretária, que “pisca o olho” para seu patrão, e diz que ele não está lá; decepcionada, Diana se senta, mas neste momento mesmo a porta se abre e Barret entra. Ele passa com a jovem para o escritório adjacente, por  uma outra porta. Todo este jogo marca-nos em primeiro lugar pela continuidade; Diana acabou de sentar; Barret, supostamente ausente, chega; eles partem por uma outra porta, acompanhados por uma leve panorâmica, e a entrada na peça ao lado se faz por meio de um raccord sobre a porta, um pouco como nos primeiros Griffith. Fica-se um momento do mesmo lado da peça, face às grandes baías envidraçadas e suas cortinas entreabertas, cuja sombra estria os muros, até o momento onde a moça anuncia o fito de sua visita. O cineasta corta, então, para nos apresentá-la em plano americano, segundo um ângulo que não corresponde nem ao olhar frontal (interdito pela convenção), nem pelo olhar de lado que indica um campo-contracampo, mas por um “olhar intersticial” (entre-deux), da ordem do que, em um contexto muito distinto, vai se chamar um olhar “suturante” (Oudart, La suture, Cahiers 211).

Volta-se dali para o primeiro ponto de vista, que é agora flexível e incessantemente modificado por movimentos à la dolly. Depois, um verdadeiro contracampo (ligeiramente assimétrico: em plano mais aproximado), de onde se sai por um plano sobre Barret, que reintroduz o movimento. A cena, sempre tratada em movimentos leves, quase aéreos, culmina depois que, confrontada a si mesma pela única vez em um plano único (portanto, sobre a tela, lado a lado), o advogado felicita sua cliente por ter confessado seu crime “off her conscience”. Como se esta alusão à consciência tivesse modificado a natureza da cena, um novo elemento, aliás verossímil, é introduzido na mise en scène: a sombra dos protagonistas. A de Barret primeiro, que antecipa e redobra o gesto paternal e protetor de seu braço sobre os ombros de Diana; depois a da jovem, que a precede e a intensifica ostensivamente, quando ela abandona a peça de forma proposital.
Em tudo isto, a maior flexibilidade e, se quiserem, a mais absoluta das transparências da mise en scène são observadas. Mas tudo é ,sem cessar, totalmente significante: os reenquadramentos que acompanham um dos personagens de preferência a outro (nem sempre aquele que fala); o movimento incessante que mobiliza nossa atenção, levando-a a concentrar-se sobre objetos sem cessar variados e impedindo-a de se fixar (ou seja: ao mesmo tempo nos impedindo de nos entediar e ao mesmo tempo de nos tornarmos críticos); os planos fixos, que se destacam fortemente neste contexto (sobretudo o que li como sendo “suturante”); o papel mudo do cenário, que se torna bastante tagarela com a aparição das sombras. No total, uma mise en scène expressiva se quiserem - em sua imensa neutralidade aparente. Estamos longe dos corpos que se auto-exprimem e da retenção do cineasta: Preminger nos mostra uma cena, escolhendo a cada instante o que ele nos mostra, o ângulo sob o qual a devemos ver, e sem se privar de jogar com todas as conotações de um cenário verossímil, mas sabiamente iluminado.
Poder-se-ia dizer a mesma coisa, ainda mais claramente (e quase teoricamente) sobre um filme reputado “menor”, e onde a teatralidade se exibe, Joanna D’arc (1957). Trata-se do fim do primeiro ato, com a chegada de Joanna diante de Orléans; ela encontra Jean Dunois, que comanda o exército francês, e a quem ela vai comunicar o seu ardor no combate. O encontro é um pedaço de mise en scène particularmente demonstrativo, em dois planos, um e outro longos e sinuosos. O primeiro nos leva - com grua - de uma torre de espia, de onde desce um soldado, até a tenda do estado-maior, onde ele se dirige para fazer um registro: o vento do Oeste não sopra mais (o que os impede de atravessar o Loire para atacar); Dunois constata sua impotência e, questionado por seus tenentes sobre eventuais reforços, responde que lhe mandam uma “menina” e que ela vai demorar sem dúvida uma semana para chegar; durante este pequeno discurso, o rumor da tenda do acampamento se infla, atirando a atenção do capitão, que olha para fora. Fazendo um raccord sobre seu olhar (em um campo/contracampo bem solto), segundo plano começa pela chegada da Donzela (La Pucelle), ao fundo, seguida - sempre à grua -, enquanto ela se aproxima, desce do cavalo, vai ao encontro de Dunois, saído da tenda para acolhê-la, depois o precede para voltar até a tenda e confabular com os chefes militares. Um objetivo dramático simples e preciso: os dois protagonistas devem se encontrar sob a tensa que representa o lugar da tomada de posição. Um meio complexo, mas totalmente naturalizado, pode permitir este encontro: dois planos longos de grua, ambos demandando uma situação meticulosa no espaço e advindo no horizonte da mais técnica das mises en scène.
O estilo de Preminger é certamente dos mais perfeitos que se possa imaginar: ele designa, a cada instante, o elemento importante da cena, e lhe sugere o sentido sem precisar sublinhá-lo. Compreende-se que este estilo tenha podido fascinar; é difícil, com efeito, ser mais clássico: respeito total das convenções, culto da transparência, limpidez do discurso, cujo sentido não é nunca dissimilado, natural o mais possível na interpretação do ator. Preminger é certamente, de todos os cineastas hollywoodianos da era “clássica”, aquele que melhor soube conciliar estas duas exigências contraditórias: fazer sentido, e não mostrá-lo. Hitchcock ao lado dele parece exagerado, Ford é mais sentimental, Hawks mais rudimentar e menos variado, e só podemos aprovar o gosto de Mourlet. Acontece que este discurso límpido continua sendo bem um discurso, e que um filme de Preminger, antes de nos deixar admirar os corpos dos atores e atrizes, nos impõe seu ponto de vista sobre os eventos - e, com plano longo ou não, cinemascópio ou não, é bem uma mise (colocação) em cena, no sentido técnico que Mourlet negligencia ou detesta. Para dizê-lo com Jacques Rivette:

“Viva Preminger, que sabe que ele não é nem um pensador, nem um reformador do mundo, mas simplesmente um perfeito metteur en scène, que neste termo existe cena - e por que o teatro seria para nós uma matéria não cinematográfica?

A mise en scène de Friz Lang é de uma natureza muito diferente. Tão controlada quanto a de Preminger, ela não repousa sobre uma intervenção constante da câmera e do olhar do cineasta, mas pelo contrário, sobre sua discrição total. Isto não escapou a Mourlet:
“A mise en place dos atores e dos objetos, seus deslocamentos no interior do quadro devem tudo exprimir, como vemos na perfeição suprema dos dois últimos filmes de Fritz lang, O Tigre de Bengala e o Sepulcro Indiano.”


Perfeição: a apreciação é audaciosa, mas dá o tom. Não era particularmente difícil defender Preminger, Walsh ou mesmo Losey, cineastas nos quais a crítica em geral havia identificado no mínimo como finos técnicos (Walsh), e na melhor apreciação como autores (os dois outros).
Friz Lang, em revanche, era com freqüência visto à época como um antigo grande cineasta que havia se dado mal; para seus detratores, era o autor de M (1931) e dos Mabuse, mas depois de seu exílio só fizera alguns filmes de gênero ordinários, com o estilo cada vez mais rígido e acadêmico - sobretudo seus últimos, como Suplício de Uma Alma. O díptico indiano foi literalmente assassinado pela crítica parisiense, que nele percebeu apenas o inexplicável remake de um serial excessivamente ridículo (já levado às telas por Joe May em 1921, por Richard Eichberg em 1938).
Situado numa Índia de fantasia e de convenção - apesar de vinte e sete dias de filmagem (de vinte e nove ao total) em autênticos palácios -, a história em primeiro lugar é decepcionante, com efeito, por seu lado folhetinesco, suas reviravoltas inverossímeis, seus sentimentos simplificados.  Os Cahiers du cinéma, grandes defensores do Lang americano, não foram entusiastas (e nenhum dos “tenores” da revista escreveu sobre o filme). Um crítico estima que “ele trata com desprezo e piada uma história desprezível e idiota”(Louis Marcorelles); para um outro, “ao fazer da Índia um pretexto, o diretor fechou-se o caminho desta abstração que constitui toda reconstrução do real” (Phillippe Demonsablon). É preciso esperar por um número largamente consagrado a Fritz Lang e uma nova crítica (Fereydoun Hoveyda, As Índias fabulosas), para encontrar um tom diferente: o filme de Lang é visto como’importante sob mais de um ponto de vista’, por sua revisão da obra anterior de Lang e pela permanência de um estilo depurado e simplificado que é sua marca. Por exemplo, “o suspense em Lang se manifesta nos olhos, e não, como em Hitchcock, no exterior dos personagens. No final de um plano, a direção do olhar de Debra Paget ou de Paul Hubshmid nos anuncia sempre que algo vai acontecer.(...) os olhos substituem, por assim dizer, a montagem paralela” (Hoveyda). Michel Mourlet, que propõe no mesmo número dos Cahiers du cinéma uma Trajetória de Fritz Lang, toma a sério esta história fantasista, e nela lê, para além da anedota, “o sentido do cósmico, (...) encarnado até o símbolo pelo gesto alucinado do fugitivo descarregando sua arma contra o sol” e “trágico no estado puro: não uma derrisória crítica dos homens, mas uma descrição da fatalidade”.
Estas fórmulas de Mourlet são sem ambigüidade, mas permanecem vagas, e não propõem nenhuma descrição da mise en scène de Lang. Na verdade, esta mise en scène depurada é difícil em caracterizar de maneira geral, e nenhum crítico jamais conseguiu senão um a priori sobre a qualidade de autor de Lang. (Parece que nunca foi ultrapassada, sobre estes filmes, a apreciação excelente mas lapidar de Helmut Färber, em um artigo para o Süddeustsche Zeitung de novembro de 1968: “O grande Fritz Lang rodou estes filmes há dez anos; então, julgaram-nos desagradáveis e ridículos. (...) Se os examinarmos agora, como obras modernas difíceis que são, começará a observar outra coisa que não o conteúdo ideológico e a psicologias inexistente de uma história de quatro vinténs: a claridade clássica de uma construção, a estilização das figuras e das situações, a significação dos olhares, a continuidade do espaço, a nostalgia, algo de paralisante, uma abstração quase doentia” (Citado por Lotte Eisner).

O filme retém soluções límpidas, que privilegiam o centro da imagem e, com freqüência, a simetria (em particular em todas as cenas de parada ou cerimônia, filmadas em arranjos frontais que fazem pensar muito nas soluções outrora encontradas nos  Nibelungos). Os movimentos de câmera são muito raros, de frágil amplidão, jamais demonstrativos nem insistentes e puramente funcionais (um reenquadramento para seguir um personagem que sai do campo, por exemplo). Os espaços são vastos, e o filme acentua a sensação de um vazio que se desprende deles pelo uso de uma focal muito curta, e ao deixar os deslocamentos dos personagens se desenrolarem na profundidade. A interpretação dos atores - certamente a mais decepcionante das escolhas de Lang - é perfeitamente coerente com estes princípios: com exceção de algumas cenas de ação (e mesmo aí), os corpos são assimilados a estátuas, a uma presença tanto mais impressionante pelo fato de sua imobilidade ser animada por um jogo extraordinariamente intenso de olhares.
Parece muito difícil, à primeira vista, casar as fórmulas exaltadas de Mourlet sobre os corpos impregnados de sublime do verdadeiro cinema e este uso dos corpos dos atores como super-marionetes. A coreografia da dança diante da estátua de Kali aparece como uma caricatura de dança indiana, e Debra Paget - com o corpo esplendidamente escultural- não nos impressiona por nenhum brilho em particular; quanto a Paul Hubshmid, sua carcaça alta e longos braços parecem antes atrapalhá-lo do que qualquer outra coisa. Mas Lang não trabalhou um sublime que adviria do carisma dos atores; contrariamente ao que julga a crítica, ele levou muito a sério este roteiro, e sua Índia de pacotilha, onde todos falam alemão, dá-nos uma sensação bem forte do abismo entre as culturas; os Alemães são mais rígidos por natureza, diante de seres que não tem medo dos grandes sentimentos - o amor, a honra, o ódio, a fé - e que os encarnam sem recuo ou ironia. O fakir é talvez um charlatão (como o sugere de forma complacente o irmão do marajá), mas executa de forma conveniente a criada, com sangue-frio; o marajá é um ser por inteiro, que não transige com seu desejo, e que acaba por canalizar sua paixão na religião; a dançarina crê com simplicidade no poder da deusa que invoca; esta pureza dos sentimentos só podia ser bem traduzida pela conjunção entre a imobilidade dos personagens e a febre que ardia em seus olhares.

É natural que tudo isto tenha impressionado um defensor do classicismo. A rarefação do gesto, particularmente, só pode dar uma força ainda maior aos gestos efetivamente realizados - por exemplo, o salto de Hubschmid por cima da mesa do banquete, quando compreende que a criada fora assassinada no baú do fakir, ou mesmo o único golpe de lança por meio do qual, em um golpe súbito, desfaz-se do tigre que salta sobre ele. Esta mise en scène estática é, portanto, de fato, extraordinariamente ritmada - pelos olhares, pelos deslocamentos nas arquiteturas angustiantes, por bruscos actings - e compreende-se facilmente o gosto de Mourlet por este cinema de um tônus, uma nobreza e, se quisermos usar o termo, de uma “perfeição” com efeito raramente igualadas. Mesmo o tratamento da metáfora neste filme, pela naturalidade com que é feito, não contraria o ideal de Mourlet; a longa cena da chegada da dançarina no palácio, por exemplo, onde ela se compara a um pássaro em uma gaiola dourada, poderia ser considerada puro expressionismo, mas ao fazer a comparação passar expressamente pelo diálogo, Lang se poupa toda tentação de sublinhá-lo na imagem.
Como a de Preminger, a mise en scène de Lang é monumental. Cada detalhe resulta de uma decisão consciente, e nada é deixado ao acaso (isto é particularmente verdade no caso do Tigre de Bengala e no O Sepulcro Indiano, e sem dúvida é esta a razão pela qual estes filmes tiveram tantos detratores: pode-se sentir como sufocante este domínio incessante). Losey e Walsh possuem “écritures” mais flexíveis, seus planos não são visivelmente “assinados” como os de Lang (que identificamos imediatamente). Eles representam a outra face do classicismo: não mais exatamente o domínio, mas a neutralidade do estilo, a transparência, a arte de se exprimir sem idiossincrasias; de Losey, Mourlet louva justamente a capacidade de variar seus modos de filmagem em função do tema e a abordar cada roteiro sem preconceitos nem fórmulas prévias. Tornou-se difícil, depois de seus respectivos finais de carreira, ter hoje por Preminger, e, sobretudo por Losey, a mesma consideração que em 1960; a “quadra de ases”  tornou-se difícil de apreciar. Constitui todo o valor do manifesto de Mourlet - ter apreendido esta efêmera conjunção de valores, mesmo se esta não constituísse uma demonstração de seus teoremas estéticos.


Dificuldades da noção de ação e de presença.
O manifesto passional de Mourlet coloca, portanto, vários problemas de aplicação. Apesar de suas precauções oratórias, permanece difícil dissociar os dois sentidos da expressão “mise en scène”: seu sentido concreto, limitado, que provém da experiência do teatro, mesmo se a prática visa distanciar-se deste; e seu sentido ideal, de vasto alcance teórico, mas que possui em seu “ativo” poucas concretizações reais, sempre discutíveis. Ao longo de seus textos, escritos no momento em que Hollywood, longe de se encaminhar para o desenvolvimento e consolidação de um classicismo, inicia sua deriva maneirista e pós-moderna, ele refere-se conscientemente a um número de exemplos reduzidíssimo:

“O acesso a esta mise en scène de vertigens e cintilações que se abre a uma liturgia onde a contemplação de uma ordem cósmica é reencontrada pode explicar porque oitenta por cento da produção cinematográfica nos parece ser inexistentes, miseráveis e sem relação com o cinema”.

Igualmente, a natureza inefável das características da “verdadeira” mise en scène torna quase impossível convencer alguém da pertinência das escolhas de Mourlet, a fortiori de sua verdade:

“Condenado a demonstrar o indemonstrável, o crítico só pode limitar-se a consolidar os a prioris de seus leitores ou lhes imprimir sem resistência sua própria marca”.

A tomada de posição de Mourlet é uma daquelas que nesta época desempenharam, para a definição de uma estética do cinema considerada “pura”, o papel da realidade e sua “evidência” contra os da imagem e sua expressividade, favorizadas pela geração crítica anterior à guerra. Sua oposição, mais instintiva que racional, à “pintura”, acompanha-se de uma certa cegueira: ao defender a “transparência” do cinema, Mourlet ignora soberbamente todas as tentativas, neste sentido, da arte de pintar (particularmente em torno de 1800, um pouco antes da invenção da fotografia); ao mesmo tempo, e de forma simétrica, André Bazin , ao falar da “janela aberta sobre o mundo”, deformava gravemente a frase do pintor e teórico do Renascimento, Alberti, que fala janela aberta sobre a istoria, sobre a ficção. Tanto em Bazin quanto em Mourlet e seus contemporâneos há uma pressuposição de “realismo” da própria realidade que não é jamais questionada realmente, e que os leva a certas aporias.
O momento chave é a defesa da “evidência” do mundo contra a vontade de potência do artista criador. “Evidência” é um termo ao mesmo tempo claro e equívoco: claro na sua significação (é evidente aquilo que se impõe à simples apreensão, sensorial ou intelectual, sem que seja necessário argumentar), mas complexo na sua colocação em prática. A “evidência do mundo” pode designar ao menos duas coisas, muito diferentes e com conseqüências quase opostas: seja a neutralidade do olhar dirigido à arte, que deixa o mundo transparecer tal e qual é; ou a capacidade do mundo a falar de si mesmo via suas aparências, arriscando-se a nada dizer, ou nada de inteligível. A fórmula remete, portanto, seja à qualificação da arte - esta é a escolha de Mourlet -, seja a uma qualidade do mundo, e esta é a escolha de Bazin com seu tema da “ambigüidade imanente ao real”; quanto à escola dos Cahiers, vai hesitar longamente entre ambos, como o testemunha Jacques Rivette - celebrante da evidência da arte em 1953  e do mundo em 1955.

A idéia de que o mundo comunique-se ele mesmo tinha sido introduzida no espírito do tempo pela fenomenologia, em suas diversas variantes. Encontramo-la, sob uma forma moderada e racional, em Maurice Merleau-Ponty e, para nos limitarmos ao cinema, na conferência que ele pronuncia no IDHEC em 13 de março de 1945. Na linha direta da Fenomenologia da percepção, a “nova psicologia” de que fala o filósofo “nos faz ver no homem, não um entendimento que constrói o mundo, mas um ser que aí é jogado e que lhe é ligado por uma relação natural”. O cinema é a arte mais adequada a dar conta desta ligação natural, pois “um filme significa como (...) uma coisa significa: um e outro não falam a um entendimento separado, mas se dirigem a nosso poder de decifrar tacitamente o mundo ou os homens e de coexistir com eles”. Dito de outra forma, o cinema é uma arte espontaneamente “fenomenológica”, já que dá a ver ao invés de explicar. Os meios formais do cinema, a partir daí, devem ser concebidos como essencialmente transparentes, e se existe alguma coisa como uma “linguagem” cinematográfica, a mise en scène consiste em seu manejo espontâneo (esta linguagem não se aprende, ela se pratica). Encontramos a idéia sobe uma forma mais radical em Roger Munier, com o tema da “cosmofania”. Munier é heideggeriano, e para ele, em consequência, a evidência do mundo é ao mesmo tempo manifestação e recusa da manifestação: “é preciso compreendê-la em seu sentido de auto-manifestação, onde aquilo que se manifesta, ao guardar a iniciativa do desvelamento, ao mesmo tempo se recusa e se fecha”. O mundo, na imagem transparente - aquela que busca se apagar tanto quanto possível -, se manifesta, mas como segredo: ele proclama que nada diz e não “quer” dizer nada.
Mourlet é próximo destes dois filósofos (que ele não cita e verossimilmente não deve ter lido), mas de forma desigual. Para ele, não há segredo na manifestação do mundo: somos calcados naquilo que se manifesta, somos em plena ação, e quase naquilo que Gilles Deleuze vai chamar de imagem-ação. Seria muito fácil casar estas proposições com as de Merleau-Ponty (que Deleuze cita a propósito da imagem-ação):

“A emoção não é um fato psicológico e interno, mas uma variação de nossas relações com o Outro e com o mundo, relações que podem ser legíveis em nossa atitude corporal”, e, sobretudo: “o Outro me é dado com evidência como um comportamento”.

Uma emoção legível nas atitudes corporais, um sujeito ao qual só tenho acesso na evidência de seu comportamento: isto é próximo das considerações de Mourlet sobre o ator, sobre o cinema como seqüência de ações ideais, sobre a fascinação que elas engendram.

“Fascinação”: o termo é pesado. Podemos tomá-lo positivamente, como sinal da eficácia do cinema, de sua força de convicção, do prazer que ele suscita - e, seguindo Mourlet, do caráter eticamente elevado deste prazer. Sua estética também é eufórica, não apenas porque profetiza o advento do cinema classicamente puro, mas porque assegura que o cinema nos fará bem, nos tornará disponíveis ao melhor e ao mais puro em nós, nos abre o caminho do Bom ao nos imergir no Belo. (Eu o sublinho novamente, pois não é evidente que o acesso ao Belo seja eufórico: não faltam estéticas melancólicas do cinema, que pensam a beleza como “fatal”, para retomar ainda um termo de Godard). Mas pode-se tomar a fascinação como um termo negativo. Ainda resta muito latim na palavra para nos lembrar do fascinum, do charme, o malefício, o enfeitiçamento. É a fonte das diversas críticas da imagem em geral, e especialmente, no século 20, da imagem fotográfica. A imagem fascina, portanto ela estaciona o pensamento, bloca a crítica, ou mesmo a consciência: posição radical de Roger Munier, para quem a fascinação engendrada pela imagem fotográfica tem por conseqüência um “silêncio da consciência”. Munier, que retoma em seu viés negativo as teses de Bazin sobre a imagem fotográfica, censura à imagem por esta não poder, como a pintura, levar-nos a sentir alguma coisa do aparecer na reprodução das aparências- e, portanto, de jamais atingirmos a aparição.

Neste terreno, no entanto, a posição de Mourlet não é tão paradoxal quanto parece. Se a fascinação exercida pela arte do cinema é positiva, ou mesmo eufórica, é porque, ao contrário da fotografia, o cinema é capaz de um ato criador como o da pintura. Aqui ainda existencialista sem o saber, Mourlet funda sua defesa de certos cineastas na capacidade que estes têm de fazer ver, a ultrapassar o aparecido para aceder realmente ao aparecer. O que decepciona nos últimos filmes de Lang (e encanta a Mourlet) é precisamente isto: a capacidade de discernir, sob as aparências mortas (o “aparecido” de Munier), um permanente aparecer, um dinamismo da presença do mundo. Pois é definitivamente da presença que aqui se trata, na fascinação assim como na mise en scène (para o espectador e para o criador). Presença do cinema - no e pelo cinema. Mas de que presença se trata? O termo é difícil, um pouco vago. Na história da Filosofia, ele designa à primeira vista (em Plotino) a união da alma com o Uno (à divindade), sob o modo da fusão: a presença é um transbordamento do espírito, algo que torna a razão inoperante e inútil. É neste sentido, mas amainado, que o termo retorna no início do século 20, nas filosofias do ser: a presença é o sentimento de ser; aquilo que não podemos de forma alguma conhecer, com efeito, dele podemos ter a intuição e o sentimento.  É disto que se trata em Mourlet. Nós não poderíamos aspirar a uma compreensão racional da realidade ou da existência, mas podemos e devemos buscar este sentimento de presença. Por quê? Pois ele nos une, não à divindade, mas à chama divina no mundo, a saber, a ação (Nietzsche passou por aí também). De um ponto de vista conceitual, isto se aparenta sem dúvida a uma estratégia de passe de mágica - mas esta é bem a tese: o cinema é a arte suprema (e Fritz Lang é seu profeta) porque este é (o único) capaz de produzir em mim o entusiasmo da presença; ora, se o cinema me entusiasma, é porque ele me propõe, não anatomias ideais nem a aparência das coisas, mas a imitação perfeita de ações grandiosas ou sublimes; “por conseqüência”, em cinema, presença e ação são da mesma natureza psicológica, e talvez - é a audácia de Mourlet - ontológica.
Não prossigo com a crítica desta tese - cujas conseqüências, notadamente políticas, seriam perigosas. Queria apenas assinalar o que daí resulta para a mise en scène. Esta - em seu sentido concreto, de colocação em um espaço-tempo e da técnica do ator e do cenário - deve visar os momentos privilegiados onde uma ação se torna presença da ação, onde um movimento realiza a revelação de uma presença, que não é nem a do ator nem a do personagem, do cenário, do lugar ou mesmo da criação artística, mas as inclui e transcende todas, para se tornar presença vital. “Se o acordo entre um gesto e um espaço é a solução e a conquista de todo problema e de todo desejo, a mise en scène será uma tensão em direção deste acordo, ou saída imediata da expressão.” Esta frase, tirada de um artigo sobre Raoul Walsh, é sem dúvida a que condensa melhor a lição e a crença de Mourlet: pôr em cena é se esforçar em atingir um acordo autêntico entre a ação e o mundo - acordo que vai se provar sob o modo transcendente da presença, esta paralisia da ação pela exacerbação da certeza sensível. Este êxtase, por meio do qual conhecemos sem pensar (como no êxtase religioso) resolve os problemas e realiza todo o desejo (ou, na fórmula ambígua escolhida pelo autor, lega uma solução ao desejo e conquista os problemas...). O cinema clássico é o cinema da ação: banalidade que Mourlet assenta sobre um fundamento vitalista e que Deleuze iria, vinte anos mais tarde, retomar com profundidade para decliná-la (em uma perspectiva vitalista também, embora de forma muito diferente).

Quando filma Um Punhado de Bravos (Objective, Burma!) em 1945, Walsh não deseja nada mais que fazer um filme de ação. Os Estados Unidos estão ainda em guerra contra o Japão, e o filme participa do esforço (ideológico) de guerra ao glorificar a conquista da Birmânia pelos aliados, pagando o preço de algumas sérias liberdades tomadas em relação à verdade histórica - tendência endêmica do cinema yankee. Quase não houve soldados americanos na Birmânia durante a Segunda guerra mundial, com a exceção dos “saqueadores” Merril, tão bem filmados por Samuel Fuller em 1962; são os Ingleses, juntamente a seus aliados e vassalos birmaneses e indianos, que ganharam esta guerra (o filme de Walsh, visto como mentiroso, foi interdito na Inglaterra). Mas se brinca com a História, o filme não brinca com a ação, nem com a imagem-ação. Aventura de um grupo de homens, ele pertence à “grande forma” (Deleuze) que faz deste grupo o representante real de toda uma nação. O comando integra-se totalmente a um único homem, em sua identificação ao chefe (Errol Flynn), mas ele é tão diverso e múltiplo quanto o povo americano - princípio corrente do pequeno grupo, cujos traços canônicos haviam sido dados por Ford no final dos anos 30. Muitas vezes, o filme se recentra sobre este grupo e seu valor de padrão, oferecendo rostos, traços de romanesco interpessoal -, mas ele funde estes fragmentos de individualização no todo da epopéia (como as origens étnicas se fundem no melting pot).

O episódio do paraquedismo é exemplar neste sentido. O filme utiliza seu tempo em expor a ansiosa espera dos homens, sua angústia à simples idéia de saltar; as brincadeiras fluem, as relações se esboçam em torno de duas figuras, a do chefe e a da testemunha (o jornalista mais velho, que evidentemente representa o espectador médio do filme, aquele que não pode combater diretamente, mas faz o possível para poder ajudar). Subitamente, o piloto anuncia - com um sinal da mão aberta - que só lhes restam dez minutos; close sobre ele, depois de sua mão acionando um comutador. Como se por magia, o filme então modifica seu regime, passa à ação. Nenhum diálogo agora, nem close, nem indivíduos. O paraquedismo é um hino mudo (quase: a música de Franz Waxman é muito presente) à liberdade dos corpos inteiramente tomados na ação. No solo, os homens são ativados, em silêncio, absolutamente integrados às suas funções, nada mais que gestos funcionais e perfeitos (se ocultar, enterrar os pára-quedas, obedecer às ordens). Começa então a longa seqüência na selva, onde os closes, que retornam ocasionalmente (para sublinhar a presença dos insetos, por exemplo) parecem quase incongruentes, de tal forma Walsh soube filmar este episódio como uma fusão quase total entre os homens e a selva. Planos distanciados, alternando com planos “americanos”, em um ir e vir permanente entre a ação do ponto de vista de cada corpo e a ação do ponto de vista superior de seu fim e de seu meio essencial: a invisibilidade, o silêncio, a assimilação ao cenário. As folhas, o solo, a água, os gritos de pássaros absorvendo os movimentos e restituindo-os a eles mesmos, intensificados por uma pura carga ativa.
Este episódio é quase mais impressionante, em sua monotonia deliberada, que a tomada do posto japonês que lhe segue. Esta é, de maneira mais esperada - embora também demonstrativa - um festival de gestos, de olhares logo esgotados numa única visada (lançar uma granada, verificar que os inimigos estão corretamente massacrados, estimar uma direção ou uma distância), de correlações entre os movimentos individuais. Nestes três episódios sucessivos - a espera dentro do avião, a chegada ao solo e a progressão na selva, o ataque -, três registros da ação muito diferentes, mas um estilo de montagem e de mise en scène muito homogêneo, embora difícil de caracterizar. As brincadeiras trocadas no avião em campo-contracampo, de forma muito livre, mas para o resto não há nenhuma prescrição a priori. Walsh não tem, como Hawks por exemplo, um tipo de enquadramento preferido; ele parece ao contrário sempre ter buscado “cobrir” um evento, longo (a progressão na selva) ou breve (a destruição do posto e do radar) por uma multiplicidade e uma variedade de ângulos e, sobretudo, buscando imprimir um ritmo próprio a cada momento. (De resto, não é preciso creditar muito a Walsh neste ponto: é pouco provável que seu contrato com a Warner tenha lhe concedido o final cut.)
Os soldados do filme não são os heróis wagnerianos ou nietzschianos que a prosa lírica de Mourlet parece ter discernido sob os personagens de filmes de guerra e de ação. Uma parte do projeto do filme consiste em assegurar a comunidade americana melted face a um inimigo monocromático, o Japa, e é preciso para isso a construção de personagens simples, populares, com preocupações elementares - comer, dormir, voltar para casa. Se o filme é, no entanto, congruente à visão mourletiana da mise en scène como virtude, é que, à diferença de Ford - em quem às vezes nos faz pensar -, temos muito pouco em Walsh o sentimento de alguma consciência sobre si mesmos nos personagens; todo o recuo crítico é esgotado na personagem do jornalista, que sintomaticamente morre de esgotamento pouco antes do fim da viagem. Os heróis se consagram à sua missão, à ação. Refleti-la vai ficar para uma outra vez, um outro cinema.

Transparência, plano longo, montagem

Dentre os cineastas preferidos de Mourlet, há ao menos um, Preminger, que recorre com freqüência ao plano longo. Vimos com o exemplo de Joanna D’arc que a extensão (e a fluidez) do plano lhe permitiam uma mise em scène flexível, que segue a ação sem sublinhá-la, mas exprimindo-a plenamente. Sem ser jamais teorizado enquanto tal, o plano longo, na escola crítica de que falo - de Bazin a Mourlet -, foi tendenciosamente considerado como mais transparente, mais conforme ao ideal de realismo expressivo, de mise en scène como trans-aparição (transparition) da evidência, mais do que qualquer espécie de montagem. Este é um dos lugares comuns mais tenazes da teoria do cinema, e em particular da teoria do plano. Em uma compreensão exatamente oposta, Pasolini vai dizer a mesma coisa uma dezena de anos mais tarde. O plano longo, que ele chama de forma aproximada (plano seqüência”, é incapaz de significar, pois consiste na reprodução amorfa da experiência vivida e que, já que nada sublinha, nada exprime; para Pasolini, o sentido começa com o gesto do montador, que corta e ajusta: um filme não significa nada enquanto não temos este gesto de “montagem” definitiva, a morte.; é portanto assim que o plano longo é como a vida: sem estrutura nem significação.
Bazin era pelo plano seqüência, Pasolini o condenava - mas a partir de uma mesma caracterização do plano longo, que segundo eles reproduzia as condições de nossa relação à realidade. É sobre esta última que eles divergem: para o cineasta italiano, a realidade não possui nenhum sentido se nós não imprimimos um por um o gesto de interpretação, em parte arbitrário, sempre pessoal e arriscado, da ordem da montagem; para o crítico francês, a realidade é essencialmente, ontologicamente ambígua, e decidir da sua significação é não apenas arbitrário, mas impossível. Ao poeta agnóstico, que deseja criar o sentido, se opõe o crítico cristão influenciado pelo “personalismo”, para quem o único sentido imaginável provém de Deus; portanto, não é nem dominável nem conhecível em sua profundidade. Michel Mourlet não considera diretamente esta questão, mas sua utopia da mise en scène como emanação da energia vital e presença do Belo/Verdadeiro repousa sobre a refutação do sentido. Para ele, o sentido só pode provir do arbitrário do artista, de uma “vontade de potência” não quebrada pela consideração do real e do mundo. Sua posição, próxima da de Pasolini na medida em que faz repousar o sentido sobre o artista, se distingue por seu idealismo: ao final das contas, o que é determinante não é a realidade enquanto tal, mas a realidade artística, a realidade do mundo imaginada pelo artista.

As conseqüências na concepção da mise en scène são importantes. André Bazin associou estreitamente a filmagem em planos longos à utilização da profundidade de campo, a partir de sua análise de certas cenas de Soberba de Orson Welles e de Pérfida de William Wyler; um e outro destas escolhas artísticas de mise en scène vão num mesmo sentido:

“Trata-se sempre de integrar ao découpage e à imagem o máximo de realidade, de tornar total e simultaneamente o cenário e os atores presentes, de modo que a ação não constitua jamais uma subtração. Mas este acréscimo constante do evento na imagem visa aqui à neutralidade mais perfeita. (...) Wyler quer apenas permitir ao espectador 1) tudo ver; 2) escolher “ a seu turno”. É um ato de lealdade em relação ao espectador.”

E um pouco adiante, esta famosa conclusão:

“A profundidade de campo de William Wyler se quer liberal e democrática como a consciência do espectador americano e os heróis do filme!”

Em resumo, para Bazin, a mise en scène em plano-seqüência e profundidade de campo é aquela que corresponde quase idealmente a uma exigência de realismo concebido como respeito da realidade em sua ambigüidade. Ao mesmo tempo, ela é também um meio de expressão, paradoxal se assim o quisermos, em todo caso potente e mais sutil que uma mise en scène analítica, como o demonstra a análise da seqüência da cozinha em Soberba; a câmera permanece imóvel durante quase uma bobina inteira, mas é para melhor permitir à “cena na duração de ser um condensador” que Welles se priva de tocá-la antes que ela tenha atingido uma voltagem dramática suficiente, que vai estabelecer a faísca em direção à qual toda a ação é tensionada.

Não foi difícil à geração seguinte de críticos mostrar que Bazin em grande parte não levara em consideração o valor realista deste tipo de filmagem. A mise en scène de Welles ou Wyler é tão articulada, arbitrária e intervencionista que não importa qualquer outra mise en scène analítica, e a explosão histérica de Agnes Moorhead no final da cena, sem ambigüidade, determina todo o desenrolar da seqüência, decoupada ou não. Bazin - como, de outra forma, Pasolini - superestima enormemente o valor intrínseco de uma forma, o plano longo com profundidade de campo, que é suscetível de dar lugar a utilizações muito diversas.
Quando Ingmar Bergman decide, em Fanny e Alexander (1983), filmar em um único plano a espera da família Ekdahl no salão da avó, enquanto agoniza Oscar, o pai de Alexander, esta é antes de tudo uma decisão ditada pela sua experiência de teatro. Bergman contou a forte impressão que lhe havia causado a técnica analítica da “ação” do diretor sueco Torsten Hammarén, que ensaiava horas com cada ator para colocar de forma precisa os gestos os mais insignificantes, até obter uma impressão de conjunto fluida, ritmada, perfeitamente natural. Em seu filme, (o making off o testemunha), Bergman se esforça em atingir o mesmo natural pelo mesmo meio paradoxal do analitismo, do detalhe trabalhado, do encadeamento calculado. Com este magnífico trecho de mise en scène como domínio absoluto, estamos nas antípodas do sonho baziniano da ambigüidade imanente ao real, e no desmentido flagrante da equação pasoliniana exclusiva entre sentido e montagem (ao menos se considerarmos como montagem a intervenção de Bergman para regrar seu plano-seqüência).

Bergman é evidentemente ainda mais distante de Mourlet: o ator, em um filme como Fanny e Alexander, aporta seu savoir-faire, sua experiência, mas se apaga largamente diante de seu papel, sua presença não sendo dada diretamente como na utopia mourletiana. O plano longo não é, portanto, forçosamente ligado à evidência, mas pode sê-lo ao cálculo e ao teatro. A ausência quase total de referência direta a esta forma em Mourlet é sintomática: longe de ver, como Bazin, a possibilidade de “manter uma ligação viva e sensível do ator com os protagonistas e o cenário”, Mourlet veria antes aí um duplo perigo: de um lado, o risco de um filme literalmente amorfo, contentando-se de reproduzir a realidade sem lhe acrescentar nenhum valor artístico (versão pessimista e disfórica da concepção pasoliniana); por outro, o risco igualmente importante e assumido do teatro, do cálculo, da falsidade e do expressionismo - cuja presença em numerosos planos longos de Wyler ou Bergman testemunha eloquentemente. De fato, a prática das tomadas de plano ininterruptas durante toda a duração de um evento se desenvolveu, sobretudo, nestas duas direções, a de Welles e Bergman de um lado, a de Jean Rouch pelo outro: ou o plano é longo, mas muito estruturado, ou o plano pelo contrário é semi-aleatório, esposando os caprichos de um evento que ninguém domina realmente. O movimento ou a imobilidade da câmera não muda nada, e encontramos planos absolutamente estáticos onde o evento é totalmente dominado por um realizador transformado em “metteur en scène” (é o caso típico de Welles), ou outros ao contrário em que o cineasta se contenta em registrar os desenvolvimentos, desconhecidos dele, de uma situação que ele lançou (é o caso da maioria dos primeiros filmes de Phillippe Garrel).
Na estética da “mise en scène”, o filme se dirige a nós fora dos circuitos da razão, dos circuitos do sentido. Todos os instrumentos da racionalização, montagem à frente, devem ser tão econômicos quanto possível: parcimoniosos e invisíveis. Antes da crítica sistemática, nos anos 70, da ilusão da transparência associada ao plano-seqüência, Mourlet tinha intuitivamente se apercebido que esta forma não era nem econômica nem discreta, mas saída diretamente do arsenal da “vontade de potência”.

Extraído de O cinema e a mise en scène,  Jacques Aumont
Tradução: Luiz Soares Júnior
Revisão: Ricardo Lessa Filho

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Um manifesto negativo



A época das estéticas e dos manifestos.


Ainda não tínhamos celebrado, tanto na França quanto no resto do mundo, o cinquentenário do cinematógrafo. A época estava ocupada com outras coisas, e quando se deram as celebrações, foram sem alcance intelectual. Foi apenas um pouco mais tarde que fizemos o inventário deste meio século de cinema: um inventário muito mais estético, formal, ideológico que industrial ou técnico. Quando André Bazin escreveu, no início dos anos 50, os três artigos que ele em seguida fundiria sob um único, sob o ambicioso título de “A evolução da linguagem cinematográfica”, ele visava a uma única coisa: a passagem do cinema a uma espécie de idade adulta, que o faz sair da dependência do visual ( “da pintura”, diz ele), na qual ele estava no período mudo, mas também da dependência do teatro, ao qual o haviam com freqüência reduzido no início do cinema falado. “ A imagem- sua estrutura plástica, sua organização no tempo-, por tomar apoio sobre um realismo maior, dispõe assim de uma variedade muito maior de meios para modificar internamente a realidade. O cineasta é não mais apenas o concorrente do pintor e do dramaturgo, mas igualmente do romancista”. Já havia evocado esta conclusão no capítulo precedente: com efeito, temos de nos haver agora com “um segundo cinema”, que pode modular e modelar o tempo, ou antes os tempos; que pode variar seus pontos de vista de forma infinitamente flexível; que pode dizer tanto “eu” quanto “ele”; que pode sugerir o passado, inclusive o passado mais-que-perfeito, e mesmo visar ao futuro ( ao menos o futuro optativo); ou seja, que é enfim dotado dos meios elementares de sua arte.

Esta definição do cinema do pós-guerra vai ser frequentemente ligada, em seguida, à vaga noção de “modernidade cinematográfica”- ao mesmo tempo que o incremento de realismo autorizado, à mesma época, pelo plano longo, a tela larga, a vista pseudo-documentária e o emprego ostentatório de atores não-profissionais. É que a possibilidade do romanesco- assim como as liberdades que tomava em relação a  todas as regras mais ou menos convencionadas o cinema de Rossellini, e o que se chama ainda na França, de neo-realismo- iam em parte no mesmo sentido: dar a um cineasta, ao autor de filmes, a possibilidade de exprimir um ponto de vista sobre a história que ele conta, quer seja um ponto de vista afirmativo e assertivo, uma espécie de intervenção do “eu” em um mundo de ficção, ou, pelo contrário, um ponto de vista discreto, implícito, às vezes até as raias da ambigüidade, e que parece deixar falar os seres, as coisas e os lugares. Em resumo, tornava-se possível ser plena e verdadeiramente um “autor de filmes”, o que o “primeiro cinema” havia permitido apenas de uma forma mais rara e limitada, tanto em sua variante muda ( pelas limitações essenciais que esta comportava, em primeiro lugar a da imagem metáfora) quanto em sua variante falada, onde o cineasta era com freqüência secundário em relação ao roteirista.

O cinema-romance, o cinema miticamente moderno de Rossellini, não eram as únicas estéticas do filme a  se efetivarem, na época. No mesmo momento, Bresson ativava o sistema que ele iria aperfeiçoar em suas grandes obras-primas ( Um condenado à morte escapou, 1959, Pickpocket, 1960) e que o levaria aos aforismos sistemáticos de Notas sobre o cinematógrafo. Também no mesmo momento, Éric Rohmer desenvolvia uma abordagem abertamente estético e histórico ( no sentido de “história da arte”), pleiteando pela vinda de um cinema autenticamente clássico,  e  colocando na linha de frente a noção de beleza. De maneira menos coerente e menos formal, um conjunto de cineastas, na primeira linha dos quais seria preciso citar Chris Marker, experimentava reatualizar os ideais, políticos e formais, das vanguardas do entre-guerras. Em um contexto nacional já protegido pelas leis e instituições, puderam eclodir uma dezena de estéticas ou de ideologias críticas, todas apaixonantes, fecundas, todas ligadas à atualidade mais vibrante, fazendo deste período, 1945-1960, incontestavelmente o mais rico do ponto de vista de uma história das idéias sobre a arte cinematográfica.

Foi no fim deste período de excitação crítica que surgiu um texto singular. Em pleno verão de 1959, os Cahiers du cinéma ofereceram a seus leitores, sob o título provocador de “Sobre uma arte ignorada”,e  munido de um “capitólio” redacional sibilino, um dos mais diretos manifestos críticos jamais escritos sobre o cinema. Inscrevendo-se no quadro geral de uma época fértil em reivindicações de novidade ( a Nouvelle vague já estava lá), este estranho manifesto complica o quadro. Dizer, em 1959, que o cinema foi mal avaliado como arte, é fazer tabula rasa de todos os manifestos do período mudo
( em particular, aqueles que quiseram fazer do cinema a arte da montagem ou da imagem), dos manifestos situados na passagem ao falado, assim como de todas as proposições recentes que se felicitavam pelo cinema ter se tornado um igual da arte literária. Postular, em suma, que a avaliação crítica , se não pode sustentar um sentido da História, deve dar conta de uma essência da arte do cinema, era igualmente provocador, em um contexto jornalístico francês onde a crítica marxista era, quantitativamente ao menos, a mais importante.

O artigo de Michel Mourlet é de fatura clássica; repousa sobre uma tática e uma retórica simples: para definir a arte do cinema, o melhor consiste em diferenciá-la o mais claramente possível das outras artes ( como havia feito Bazin, mas de outra forma). Por que o cinema ( “apenas o cinema”, diria Godard mais tarde, nas Histórias do Cinema) é definível por oposição a  todas as outras artes? É que ele é a única arte inventada, a única que, necessitando de um certo desenvolvimento da técnica e de um certo estado de civilização ( em particular, o gosto pela representação mimética), não teve, como as outras, uma origem mítica e um desenvolvimento universal, mas resultou de uma invenção local e historicamente determinada. No entanto, não é sobre este dado histórico ( incontestável) que raciocina Mourlet. Ele parte- para aí tomar o exato contra-pé- das três teses da história e da psicologia das artes:


- as artes em geral resultam do exercício de uma visão determinada, submetida ao desejo do homem e atingida de forma segura, desde que se domine a técnica; são as artes da intenção, ou mesmo as artes que só constituem uma intenção;

- elas supõem a existência, entre o mundo e  a obra de arte, de um terceiro termo, que permite a simbolização do primeiro pelo segundo. Este “terceiro simbolizante” foi com freqüência chamado de uma “linguagem” ( da pintura, do teatro, da dança, da poesia), e  a este respeito Mourlet tem uma fórmula fulgurante: “ nas artes o mundo troca sua forma contra sua verdade”; as artes tradicionais dão forma ao mundo ( que não a possui por conta própria), sob o risco ( o preço) da verdade do mundo, que se perde na operação, a forma não sendo verídica;

- enfim, e  por conseqüência, toda técnica de mise en forme ( pôr em forma) é a priori tão boa quanto outra:  é a existência do terceiro simbolizante que importa na sua natureza particular. A crítica não possui razão teórica para escolher um momento mais essencial um mais autêntico: toda prática coerente da pintura, poesia, dança ou da música é uma manifestação verídica desta arte.

A concepção do cinema como arte não se define pelo desejo do artista


“Um olho de vidro e uma memória cinzelada de prata dão ao artista a possibilidade de recriar o mundo a partir do que ele é, portanto de fornecer à beleza ar armas mais agudas do verdadeiro” ( p. 23). Esta frase paradoxal é a chave primeira da estética do cinema segundo Mourlet: criar sem criar.


“Recriar o mundo...”

A arte em geral é criação: é a concepção dominante no Ocidente. A apologia do artista genial, implicada por diversas vezes em nossa tradição filosófica e estética, jamais verdadeiramente cessou. O gênio possui diferentes facetas: ele é aquele que, praticamente um demiurgo, é capaz de compreender o cosmos, a ordem do mundo ( é esta a versão, neo-platônica, da Renascença); ou então ele é aquele que descobre e explora domínios e rotas desconhecidas ( concepção nietzschiana, avant la letre, do Romantismo); ele é também este homem cujas qualidades de exceção se manifestam por um temperamento e um comportamento singulares. A primeira concepção, do gênio à altura de Deus, por conhecer a ordem do universo, se distanciou de nossas inteligências e sensibilidades; ela foi submergida pela segunda, a do descobridor do desconhecido e do infinito, da qual Rimbaud e os surrealistas foram os profetas e os panfletários. No entanto,a  concepção “organizadora” do gênio, se desapareceu sob sua  forma clássica, jamais cessou de assombrar como um remorso a arte do século 20, aos programas abstratos e militantes dos anos 20 ( De Stijl, o construtivismo), aos exercícios de domínio ironicamente absolutos que, que Duchamp a Warhol, deixaram sua marca profunda em todo empreendimento artístico atual.

Ignorância ou desprezo, Mourlet não faz nenhuma alusão a  esta história. Sua concepção da arte é anterior ao século 20: ele pensa o artista como se pensava em meados do século 19- e  o destinatário, exatamente como se pensava no século 17. “A arte é a religião da lucidez” ( p. 31), ou seja,a  religião da época “lúcida”, aquela que não tem mais ( necessidade) da fé em Deus- mas esta nova “religião” concerne diferentemente o artista e seu público.Para o público, ela funciona realmente como religião, ou seja, como cimento social, respondendo a um desejo de ordem que se trata de cumprir: o espectador, o participante do rito da arte é quase, diante de si mesmo, um  cidadão platônico, aspirante à Beleza, e sabendo que de qualquer maneira a ele será oferecida a Verdade. No entanto, Mourlet o vê prestes a se abandonar totalmente à obra, ao artista, até a “absorção da consciência pelo espetáculo”; um espectador, não crítico, não distanciado, tendo total confiança em uma arte absoluta, que não pode ludibriá-lo. Quanto ao artista, este é movido por um motor aparentemente contraditório com este ideal, sua “vontade de potência”. O exercício da arte é então- algo mais próximo de uma concepção clássica- a prática de uma série de limitações desta vontade no que esta possui de arbitrário. O artista deve curvar sua personalidade de exceção, até o ponto de chegar a compartilhar das angústias e das questões do público; também para ele o exercício da arte é um exorcismo: “o artista realiza a obra de arte para se libertar, para apaziguar suas contradições” (p. 32). Reencontramos aqui o terceiro traço do gênio: o sofrimento, interior porque “nascido sob o signo de Saturno”, exterior pois incompreendido. O artista deve fazer a prova ( experiência) extática do excesso, a fim de se reencontrar a si mesmo, em uma espécie de oblação purificadora- ao menos que ele conheça suficientemente o domínio de si, para evitar esta “prova”.

Em todos os casos, o artista, a arte, o destinatário se relacionam com o sublime. Sublime da grandeza, pela ambição sem limites que define o verdadeiro artista; sublime do terror, pelo verniz quase infernal que adquire a descrição do ato criador; sublime crítico do triunfo do humanos sobre a fraqueza, do empenho do “domínio de si”” Que tudo o que não diga respeito a esta ordem do sublime seja nulo, inútil e sem interesse, que toda arte que não seja exclusivamente íntima e passional, votada ao excesso, preciosista, aristocrática, que seja frívola e derrisória, isto é ao mesmo tempo uma evidência de nosso desejo e uma conseqüência lógica da função existencial da arte” ( p.33). A arte é uma atividade, não um “reflexo passivo da integral realidade”, e Mourlet emite sempre as palavras mais duras possíveis contra o realismo em todas as suas tendências, neo realismo na frente, por ser sempre demasiado passivo, demasiado despido de vontade criativa: diante da obra realista, que “não exorciza” nada, o espectador nada pode experimentar.

Concepção provocante- menos por sua enunciação terrorista, que na época irritou ou seduziu, que por sua falsificação deliberada entre as concepções moderna e clássica. Moderno é, em Mourlet, o recurso à idéia de gênio criador, substituindo-se à idéia de uma comunidade artística que estabelece as regras e beneficia-se de progressos comuns; o artista só tem contas a acertar consigo mesmo ( e com a verdade), de forma nenhuma ao meio dos artistas, nem à sociedade que lhe permite existir. Mas de forma contraditória, este artista ainda crê que se pode colocar no núcleo da criação artística o problema da verdade ( portanto, do erro e da falsidade). Em resumo, o artista cria, de acordo com sua “vontade” criativa, mas ele não saberia criar qualquer coisa: ele “recria o mundo”. Se, na concepção romântica, ele é um vidente, na forma clássica ele submete sua visão à obrigação de compartilhá-la com os outros, em toda a sua claridade e precisão.


“...a partir do que é”

Sobre este fundamento paradoxal, compreende-se melhor a definição da arte do cinema. O artista não tem realmente escolha, pois seu arbítrio, seu desejo e vontade são impostos: é “o mundo” que define todo empreendimento artístico,até o espectador ( o qual não possui nenhuma escolha: diante do filme, ele só receberá o mundo, e não deve buscar mais nada”. A arte do cinema consiste em fazer uma imagem do mundo ( nada de realismo bruto) masque esta imagem seja bem uma imagem do mundo ( nada de irrealismo também). “A essência do cinema como arte não é mais o documentarismo nem a féerie, se o documentarismo se limita a restituir as aparências incontroláveis e se a féerie autoriza a mentira, o truque e os artifícios de estetas; mas é ao mesmo tempo o documentário e a féerie, trata-se da beleza imposta pela evidência irrecusável do olho” ( p.34).

-A arte do cinema possui uma essência: não é preciso defini-la por seus acidentes, suas realizações de acaso, que dependem das circunstâncias( não identifica-la a uma escola, um movimento, um momento passageiro); o que imposta é menos sua existência que esta ideal essência que é a sua ( eis porque Mourlet possui uma lista extraordinariamente seletiva de “verdadeiros” cineastas). Esta essência é a beleza: o material desta arte o que ela possui da ordem do evidente, o que aparece em sua visibilidade, o que a distingue( e não aquilo que eu distinguo nela)- sob o controle e o citério do “olho irrecusável”: “O objeto desta arte é o mundo, mas apenas enquanto é capaz desta evidência: não, portanto, todo o mundo, mas simplesmente seus aspectos ou qualidades que são suscetíveis de agir imediatamente sobre nossas sensibilidades. A arte deve capturar certos aspectos do mundo ( nada de féerie), mas não todos( nada de realismo passivo); ela deve selecionar algumas de suas aparências.




A arte do cinema não supõe um terceiro termo simbolizante


À esta primeira tese sobre a arte e o artista se acrescenta uma tese sobre o espectador:ao mesmo tempo que o artista tem relação diretamente ao mundo via certos de seus aspectos, o espectador vive numa relação de imediaticidade do mundo através do filme: ver um filme não equivale a ler, não é mesmo compreender- é antes de tudo sentir, aceitar que mostram algo quer não possui sentido, ou cujo sentido não me é revelado. Mourlet desenvolve esta idéia em suas direções, uma mais psicológica, outra mais ideológica.




O cinema total

A expressão cinema total foi inventada, parece, por um escritor René Barjavel ( em seguida conhecido autor de ficção científica) em uma pequena obra aparecido discretamente durante a guerra. Ela foi retomada ( sem referência a Barjavel) por Bazin, em um artigo aparecido dois anos mais tarde. Nos dois autores, a idéia diretora é a mesma:o cinema está em progresso incessante, efetivo, em direção a um estado ideal, que é ou será a reprodução perfeita e completa de todos os fenômenos, em todas as suas dimensões sensoriais. A utopia de um cinema se endereçando a todos os sentidos-inclusive o olfato e o toque- é antiga ( a encontramos no Melhor dos mundos de Huxley, 1932), e de um interesse limitado. O mais interessante é a idéia da perfeição da reprodução,que remete a uma outra velhíssima utopia, a da ilusão. Sabemos que, se é possível enganar a orelha pela reprodução sonora, só se pode enganar o olho em condições muito limitadas( as do “trompe-l’oeil”),que aliás não tem nada a ver com o cinema. A ilusão perfeita é impossível, e desde muito tempo havia concluído que ela não seria o fito da arte. O cinema total, como escreve Bazin, é um mito:é bem assim que o compreende Mourlet, já que ele designa simplesmente o ideal de um cinema que “toma” seu espectador, que o submerge pelos meios mais diretamente sensoriais e emocionais possíveis, sem a interposição de umas “linguagem” de imagens.

Resta-nos o aspecto dinâmico( histórico) desta tese: um progresso técnico permanente, de que se pode julgar a partir do paradigma de um exemplo maior- a passagem do cinema mudo ao sonoro ( maior porque acrescenta um parâmetro sensorial completo, não apenas o da palavra). Se o cinema falado representa um progresso , podemos então dividir a história do cinema mundo em duas tendências: uma, sem futuro, que copiava a pintura; outra, progressista, que buscava falar sem palavras. Mourlet retoma, mais ou menos, este raciocínio demasiadamente especioso , e daí deduz conseqüências estéticas: tudo o que não vai no sentido do cinema total é ruim, já que não é conforme à essência da arte do cinema. Vêem-se assim condenadas no cinema mudo, - e claro, no cinema falado-, a metáfora, a pantomima, a deformação “caligárica” do cenário, as deformações fílmicas ( o flou, as sobreimpressões), porque elas operam uma tranferência de essência, do mundo evidente à imagem, portanto tendem a restabelecer um terceiro termo (um tiers symbolisant) simbolizante, uma linguagem que poderia se autonomizar. A história do cinema é a história de sua “purificação”, de sua adequação cada vez mais perfeita ao ideal de uma arte da imediticidade e da transparência.




A fascinação


Esta transparência da mídia possui seu correspondente psicológico: o espectador é projetado no filme, ele é presente nele de maneira espontânea. “A absorção da consciência pelo espetáculo se chama fascinação: impossibilidade de se arrancar às imagens, movimento imperceptível em direção à tela do ser totalmente tenso em um fremente desejo, abolição de si nas maravilhas de um universo onde morrer situa-se no ponto extremo do desejo. Provocar esta tensão em direção à tela aparece como o projeto fundamental do cineasta” ( p.36).
O tema da captação fílmica, em si mesmo, não é novo nem raro; o destacável é a intensidade que lhe é conferida: absorção, fascinação, tensão, abolição de si, extremo do desejo,até os limites do estase ( “estamos fora de nós mesmos”), sem que se busque aliás a distinguir, nesta captura, aquilo que pertence ao efeito-ficção e à própria imagem ( à imagem-ação).

Aí também temos uma franca axiologia. O mau é aquilo que rompe a fascinação, e particularmente, tudo aquilo que leva a tomar consciência da existência da imagem, ou que manifesta, voluntariamente ou não, uma intervenção do autor. À primeira vista, é a montagem que é aqui visada, porque esta é sempre “a intervenção exterior e brutal de uma vontade que se superpõe ao olhar da câmera”(38). Reconhecemos aqui ainda um tema baziniano, aquele da montagem interdita, com o adendo de que Mourlet é mais radical: não é o caso, como em Bazin, “quando o essencial de um evento é dependente de uma presença simultânea de dois ou vários fatores de ação” que a montagem seja interdita, mas todo o tempo- porque não se trata apenas de ontologia ( para retomar o termo de Bazin), mas também de pragmática. A montagem deve ser interditada para respeitar a duração, o ritmo, a natural, e a presença do evento; e também para não quebrar a fascinação do espectador. Em suma, do lado do artista como do espectador, o cinema não suporta a linguagem da arte. No cinema, “o mundo não troca sua forma contra sua verdade”: elas são indissociáveis.




A estética do cinema não é relativa  

O cinema, na versão oferecida por Mourlet, é portanto, ao contrário das outras artes, uma arte absoluta. Impossível a seu respeito aceitar as convenções arbitrárias, pois a arte do cinema é responsável para com o mundo. Com o cinema, “a beleza se vê conferir a arma do verdadeiro”: uma vez que o cinema submetido  auma regra que é a regra do mundo, ele inclui uma dfoimensão de verdade, que as outras artes não possuem.




A mise en scène como princípio estético


A “lei de progresso” que manifesta a utopia do cinema total deve então ser compreendida como uma espécie de consciência histórica própria. Mourlet, talvez influenciado por André Malraux, que tinha reivindicado, vulgarizando-a, esta tese hegeliana da consciência histórica, parece bem pensar que existe um sentido da História que se encaminha em direção à atualização das essências; portanto, no que concerne ao cinema, em direção a uma adequação ideal entre uma natureza e uma prática, santificada pelo fato de que o cinema é a arte do século, ultrapassando todas as outras e remetendo-as a seu relativismo ( como ainda, em Eric Rohmer). Existe portanto um princípio estético diretor do cinema, e ele é absoluto. Enquanto que, nas outras formas, pouco importa o princípio de “colocação em forma”, já que o mundo é simbolizado e não diretamente presente, no cinema, só existe um princípio de “colocação em forma” ( mise en forme) aceitável: é aquele que Mourlet chama de mise en scène, e que garante a presença direta do mundo.


Mise en scène: chegamos. Em 1959, é tudo menos um termo neutro. A expressão é carregada de História, e antes de tudo, de uma história do teatro. Mesmo Mourlet é obrigado de lhe  dar a princípio uma definição desta ordem: “a colocação em um determinado lugar dos atores e dos objetos, seus deslocamentos no interior do quadro”. Mas por mínima que seja, esta definição já mostra que a mise em scène de cinema não é a mesma de teatro: se, no teatro, colocar em cena equivale a colocar sobre uma cena, no cinema tudo é remetido ao quadro. (...) os movimentos, os gestos, as mímicas dos atores, a aparência do plateau de interpretação só possuem existência no retângulo  do quadro. Certos pensaram mesmo que, já que a representação cinematográfica consistia na transposição de certos eventos sobre uma superfície, e que esta superfície se modificava no tempo, dever-se-ia poder descrever o cinema como uma espécie de écriture. De Kouleshov e de sua teoria da expressividade do ator até Bresson e sua concepção do cinema como “colocação em relação” de imagens sucessivas das quais nenhuma é auto-suficiente, não faltam definições do cinema que não integrem este dado do retângulo, da imagem, do caráter achatado ( plano, plat) literal da realidade por sua filmagem.

Para Mourlet, as conseqüências são bem diferentes. A mise e scène como “colocação num lugar”e gestão dos deslocamentos é a se considerar- mas unicamente porque esta contém em germe alguma coisa que o teatro não possui nenhuma maneira de atingir, a não ser na caricatura e no exagero: o potencial de afeto de cada gesto, cada olhar e movimento. O quadro é o intensificador de tensão que permite magnificar, ou mesmo de transfigurar estes afetos e este potencial. A mise en sène no cinema não é uma técnica: graças às limitações benéficas do quadro, ela se torna uma força ( ou, em outras passagens, uma energia). Tudo se passa como se o quadro, ao encerrar a mise en scène, ao clarificá-la, ao torná-la definitiva, se tornasse uma espécie de instrumento que focalize sua energia.

Este poder do quadro é pouco sublinhado por Mourlet ( isto o levaria a acordar aos parâmetros da imagem um valor expressivo próprio, o que não está disposto a fazer). Ele permanece portanto muito vago, e não precisa sua definição de mise en sène de forma técnica, colocando no centro do filme, de seu poder e de seu princípio, no centro da “mise en scène” aquilo que, a seus olhos, encarna melhor a energia: um, a seleção de momentos privilegiados, “as ações e reações de um homem em um cenário”.



A mise en scène e o ator.



O centro e a origem da mise en scène tal como a concebe Mourlet é portanto o ator, e o critério do verdadeiro artista do cinema, “consiste na franqueza e na lealdade para com o corpo do ator”. Ao contrário, os maus cineastas, os falsos cineastas, são aqueles que não cessam de manipular os corpos, como Hitchcock, Welles, Eisenstein. Toda a energia do fluido misterioso que é a mise en scène passa pelo corpo do ator; é dele que sobre a tela ela emana, é ele quem encarna o melhor meio de captar o espectador, de fascina-lo, de fazê-lo comungar com o “encantamento de gestos, de olhares (...) onde nos perdemos para nos reencontrarmos lúcidos e apaziguados”. Há a este respeito uma frase tornada famosa:


“Já que o cinema é um olhar que se substitui ao nosso para dar vazão a um mundo segundo nossos desejos, ele vai se pousar sobre rostos, corpos resplandecentes ou mortificados mas sempre belos, desta glória ou deste estilhaçamento que testemunham de uma mesma nobreza originária, de uma raça eleita que com embriaguês reconhecemos como nossa, última precipitação da vida na direção de deus”.( p.43)

O início desta frase foi imortalizado por Godard em O desprezo- que a cita no começo do filme, mas estaca antes das considerações sobre o ator e substitui o final por este aqui: “este filme é a história deste mundo”. Ali onde o cineasta se propõe a fazer um filmar sobre “o mundo substituído ao nosso”, ou seja, um filme sobre o poder da ilusão cinematográfica, sobre seus limites e artifícios constitutivos, Mourlet via este mundo “acordado a nossos desejos” como o reino de personagens literalmente maravilhosos. Corpos resplandecentes de Beleza, encarnações mágicas da imagem do Divino, do Belo.  Com este devaneio todo, estamos bem longe da mise en scène como mise en place, com tudo o que esta implica de cálculo. Fazer do cinema uma arte de mise en scène  como defini-lo como criação de um mundo maravilhoso, onde reinam a beleza e a energia dos gestos e dos corpos é ter abandonado a cena pelo ideal, é ter deixado para trás o ator pela criatura, é querer  transcender a ficção no mito. Pressionado até este limite, esta concepção não corresponde a nenhum filme existente, é uma pura Idéia de “mise en scène”, ou seja, do exercício sobre o mundo de um olhar que o transfigura.

Se há uma possibilidade de encarnação deste ideal, consiste, na mise en scène, na maior transparência possível ( a recusa da montagem e da expressividade da imagem, e para o ator, numa interpretação natural. Este termo é difícil em definir, no sentido francês do jeu naturel, como no sentido inglês do natural. O natural ( actor) é aquele que é vão dirigir, porque ele sabe de instinto o que deve fazer, e sobretudo porque, fora de um certo registro ou alguns limites, ele não saberá interpretar. O caso extremo é o ator não-profissional, aquele que é preciso flagrar por surpresa, e que só interpretará se fizermos apelo a todo o seu ser. Nicholas Ray, que adorou sempre este estilo de atores, de Robert Mitchum a James Dean, explicou bem esta relação complexa entre um registro, uma personalidade, uma intuição, uma ciência inata- e a posição de retração ativa que isto implica no realizador. Quanto à interpretação “natural”, consiste num ideal- neutro, aparentemente espontâneo- do jogo do ator; pode-se dizer que é uma técnica tão pensada quanto outra qualquer.Natural e construído: contradição nos termos que com freqüência deu, nos atores franceses, o que se pode chamar o “natural estereotipado”.

Mourlet não tem uma teoria do ator, senão bem implícita. O que ele chama mise en scène refere-se a estes dois fatores, tão indefiníveis um quanto o outro: a transparência absoluta de um olhar portado sobre os atores absolutamente naturais. Ela une uma atitude de criador à atitude deste outro homem que é ao mesmo tempo sua criatura, seu rival, seu modelo e seu material. E em um como em outro caso, ela propõe um mundo cinematográfico perfeito, que se define por um duplo oxímoro: o cineasta é ao mesmo tempo total vontade criativa e total retração  diante da expressão pessoal; o ator é aquele que é antes de interpretar. A mise en scène tornou-se uma força, uma energia e, para dizer tudo, uma virtude. Vertu vem do latim  virtus, que significa força, mas acrescenta uma conotação ética ( até mesmo moral) que não é deslocada: a mise em scène só se concebe como pura, desembaraçada das escórias do artifício, do estilo, da expressividade, e também da “inchação” egotista, da pretensão do autor e do narcisismo do ator. Só há mise en scène à medida em que fundada ( e fundida) no mundo, no ser, e é algo justo se o artista é, como o poeta para Heideggger ( ao qual Mourlet involuntariamente faz com freqüência pensar), um passageiro inspirado, pelo qual o Espírito transita e que nada acrescenta de si mesmo à obra.


Jacques Aumont, O cinema e a mise en scène

Tradução: Luiz Soares Júnior.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Menos com menos é igual a mais




1.      1. Há em Le départ uma cena onde Jean-Pierre Léaud e seu cúmplice, ele também garçon-cabeleireiro, fazem-se passar por um marajá e por seu secretário. Compreendemos rapidamente que se trata de uma fraude ( risos) , mas ao mesmo tempo é difícil não acreditar na existência do tal marajá. Estes poucos segundos contém talvez toda a arte de Skolimowski: um homem que contaria maravilhosamente suas histórias e que as terminaria com um sorriso fino, zombando da credulidade da plateia. Que preço teria a derrisão se ela não se acompanhasse de uma arte ao menos à altura de tornar as coisas plausíveis? Aqueles que zombam de suas próprias palavras devem ser antes de tudo grandes oradores. Senão...


2.     2.  Em O départ, um jovem de Bruxelas sonha em participar a um rally automobilístico. Como deve ser ( constante skolimowskiana), uma moça mais calma e mais velha que ele torna-se, sem razão aparente, sua cúmplice e companheira. Depois de uma jornada exaustiva ( discussões,  vendas e trocas, brigas, tentativas de estupro, trabalho, encontros, etc), o herói aluga um quarto de hotel. Na manhã seguinte, é acordado pelo ruído dos carros que passam: ele não tinha se acordado a tempo, perdeu o rally. O que é fortíssimo nesta história  é que em nenhum momento prevemos este final, quando no fundo, segundo toda a lógica, este é o único possível. Quando chegamos na última cena, se diz: “claro, claro...”, mas já é muito tarde. Em Le départ, Skolimowski  portanto soube melhor dissimular os enlaces de sua história que nos filmes precedentes. Ele prova assim que pode se dar bem em qualquer horizonte de cinema, por exemplo o filme comercial...


3.      3. Ao mesmo tempo , Le départ é um filme “de nada”, menos audacioso que La barrière, menos soberano que Walkover. Para isto,  há diversas razões, todas secundárias: diálogos menos bem cuidados ( Skolimowski não fala bem o belga); foto ( Kurant) um pouco suja,etc. É preciso tomar este filme por um exercício de estilo e detectar os riscos da arte pela arte. Aliás, seria inútil criticar a Skolimowski seu excesso de talento. Ele tem o direito de fazer um ou dois filmes na linha de Walkover, visto a importância e beleza deste último.


4.     4.  Os personagens de Skolimowski  são tão mais obstinados , ligados a uma idéia fixa quanto mais o mundo não cessa de se retrair a seu contato. Eles só podem de viver à espera de um acontecimento importante, de uma prova de força decisiva, coisas que jamais chegarão ou chegarão mal. Só subsiste um frenesi, e isto na exata medida em que é alimentado de entropia. Não haveria em seus filmes como ter ponto final, uma lição medida, na medida em que todas as paródias são permitidas. É que o provisório é a única realidade, o único valor e talvez o último. Certezas fugitivas, pontos de referências irreconhecíveis ( travestidos), o  mundo continua seu jogo, mas algo nunca está no seu devido lugar. Esta naturalidade mesma é suspeita: é um sonho cujo sonhador sabe que logo estará acabado. Momentos onde tudo é suspenso, provisório, inacabado ( de que Gombrowicz diz que eles são a busca- provisória- da “imaturidade”).


5.    5.   Voltemos ao marajá. O gosto de Skolimowski pelas  farsas, as gags, é sem dúvida polonês, , certamente uma sobrevivência potache, com certeza uma coisa importante. Se todo filme se revela ao final uma mistificação, muito barulho por nada e  um falso rigor servindo a um real sentimento do vazio, é evidente que cada plano, a cada instante, pode ser “uma armadilha”. Assim, o que parecia espontâneo pode revelar subitamente (  basta um travelling dianteiro, para  trás, ou um zoom) seu pertencimento a um plano premeditado. Tudo é legível a vários níveis: vemos assim os “irrealismos” e estranhezas de Walkover e de La barrière tornarem-se explicáveis, realistas, em um certo sentido. O sonho e a realidade se livram a uma troca de bons procedimentos ao termo do qual acabam por se parecer intensamente. Pensemos na sequência que abre La barrière. Quem ousará desde logo se pronunciar sobre o que seja aquilo?


6.     6.  Eis o domínio de Skolimowski: convencermo-nos ao mesmo tempo do  caráter evidente e arbitrário do cinema. Um plano pode pertencer simultaneamente a dois ou três contextos possíveis, onde ele teria a desempenhar um papel diferente mas plausível. Trata-se unicamente de não limitar o sentido, -não, é claro,  fazendo filmes “insensatos”, mas pelo contrário: dando-lhes um excesso de sentido. O que conta é o deslocamento ( dépaysement): durante alguns segundos, , não mais reconhecer o mundo ou a praça de Brouckère, nem mesmo saber mais se este mundo foi feito para nosso uso. Durante um segundo, duvidar de tudo e não mais se habituar. Habituamo-nos menos às coisas quando elas possuem duplo ou triplo sentido. O que contam seus filmes : vale mais a pena se agitar em todos os sentidos do que chegar em algum lugar. Esta é também a maneira como são contados: vale mais agitar todos os sentidos, todos os registros...Skolimowski é o homem que diz: vejam um personagem; se eu o filmo de longe, temos uma comédia musical; de mais perto, um melodrama; de mais perto ainda, temos cinema verité. Tudo é verdadeiro. Que cada um escolha o que lhe convém. Eu escolho tudo.



Serge Daney, Cahiers du Cinéma, 192

Tradução: Luiz Soares Júnior.