segunda-feira, 23 de abril de 2012

Uma inexorável doçura




Seria preciso mobilizar todo um arsenal de comparações musicais para falarmos da Imperatriz Yang Kuei Fei, um dos últimos filmes de Mizoguchi. O cinema é a arte mais próxima da música, pois é uma arte do tempo, e a economia interior de um filme se aproxima mais de um concerto, uma sinfonia que de um quadro ou romance. Se Yang Kuei Fei pode evocar a Berenice de Racine por seu estilhaçamento elegíaco, Cinna ou Nicomède de Corneille pela amplidão dos interesses em jogo, Richard II de Shakespeare pelo papel do personagem imperial, é finalmente com Mozart que se impõe uma aproximação, em razão de uma suavidade na modulação sem igual. O principal ator de Yang Kuei Fei não é nem o imperador Huang Tsung nem a imperatriz Kuei Fei, mas o tempo. O imperador destronado e exilado numa ala de seu palácio recorda-se dos dias passados. E é a qualidade incomparável desta lembrança que confere ao filme suas vibrações sublimes, pois a evocação de um passado ainda tão próximo e tão feliz permite ao príncipe elegíaco aceder à Eternidade. A fragilidade e a incerteza de um amor temporal são abolidas em nome de uma felicidade eterna, mais forte que a morte. O amor é uma vocação, e evidentemente implica uma exigência de Absoluto, na medida em que busca ultrapassar as contingências do tempo e da morte. Ele recusa a inexorável necessidade e a implacável lógica de nosso universo, suas servidões, suas leis e seus limites. Daí o tema da reencarnação, garantia para nós de que a morte não prevalece contra nossa aspiração ao Eterno, nossa crença no triunfo último do amor. Pensemos aqui no admirável Vertigo de Hitchcock, pois estes dois filmes possuem em comum serem uma meditação sobre o amor e a morte.
É neste sentido que se pode dizer, apesar da singularidade dos figurinos e dos costumes ( des costumes et des coutumes), que Mizoguchi é o mais ocidental dos cineastas japoneses. Se seu filme nos toca tão profundamente, é porque ilustra um dos temas mais profundos da sensibilidade ocidental: o tema do amor cortês.
É útil saber que a ação se desenrola no século VII, na época da dinastia T’ang. O império chinês, como seu contemporâneo o império carolíngio, é um mundo feudal dominado por uma aristocracia de funcionários estatais que sonham com a  independência. No Oriente como no Ocidente, o imperador se esforça grandemente para obter o respeito de seus dignatários e assegurar a unidade do império. Deve lutar sem tréguas contra as tentativas de “pronunciamiento” dos governadores de províncias excessivamente poderosas. A polidez compassada dos altos funcionários, sua abjeta adulação, o ritual do cerimonial imperial mascaram mal a brutalidade dos costumes. Mata-se com sinais exteriores de respeito, mas mata-se. Assim, o exotismo dos hábitos e das maneiras de agir não devem nos fazer esquecer o íntimo parentesco entre civilizações em aparência tão irredutíveis. Em Constantinopla, em Aix-la-Chapelle ou Changan, reina um clima idêntico de complots, maquinações e intrigas, de lucro e rapinagens, e pensamos aqui fatalmente em reinos da história do Ocidente europeu igualmente lacerados por perturbações e férteis em tragédias íntimas.

Mizoguchi nos torna tudo isto presente; ficaria surpreso em descobrir neste filme algum dos anacronismos que se encontram em tantos filmes europeus. Impressionam-me a precisão dos detalhes, a autenticidade do clima sugerido. Semelhante grau de delicadeza é garantia de uma perfeita harmonia do conjunto. À tragédia política,  história de um império em aparência tão poderoso e tão débil de fato, corresponde uma tragédia privada que a infelicidade reinante do tempo torna ainda mais comovente. Neste mundo ao mesmo tempo bárbaro e refinado, não se sabe o que fazer com um príncipe esteta e sonhador, que não sabe adaptar sua conduta à razão do Estado. A razão dos problemas do imperador não está  em que  a família de sua mulher dilapide seu tesouro, mas no fato de que ele consagra muito tempo à música e ao amor. Ele sacrifica a arte de reinar à arte de viver, , e subordina desmedidamente as exigências do poder às da paixão. Em consequência,a  renúncia de Yang não lhe serve de nada, e ela será destruída unicamente por culpa do amado. Neste clímax, Mizoguchi nos restitui à perfeição o caráter igualmente cativante e decepcionante deste nobre personagem. 
Esta “chronicle play” é magistralmente servida por uma mise en scène e uma cor de incomparáveis delicadeza. Que graça, que suavidade no emprego de tons opacos e quebradiços exaltados em certos momentos por acentos claros e fulgurantes! É Mizoguchi o único responsável por este sucesso, pois seu fotógrafo deu-se menos bem nas Portas do inferno.
Intitulei esta crítica: uma inexorável doçura. Não deveríamos pensar em Resnais, diante desta mescla tão bem dosada entre crueldade e suavidade?

Jean Domarchi, Cahiers du cinéma, agosto 1959

Tradução: Luiz Soares Júnior.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

O pai, o filho e o cinema




Há em Paul Vecchiali um lado “velha França”. Este politécnico sempre geriu suas produtoras ( Les Films de Gion, Unité Trois, Diagonale) como um bom pai de família, com amor, rigor e minúcia, como Truffaut, Rohmer, Tavernier, Varda ou mim mesmo; e na contracorrente da maioria, pois não teme as apostas aventurescas ou os riscos de falência. Este tradicionalismo a toda prova é contraditado por um olhar humano e generoso sobre o mundo dos homossexuais.
O lado reacionário, direitista traduz-se particularmente numa grande atenção dedicada à família, aos pais. Neste sentido, só vejo Tavernier com quem se lhe possa comparar ( Daddy nostalgia, L’horloger de Saint-Paul), com esta diferença significativa que Tavernier se situa em um horizonte político absolutamente oposto.
Vecchiali, creio, é o único cineasta do mundo que consagrou um filme à sua mãe (E haut des marches) e outro a seu pai ( Doença). Tratamento desigual em aparência, já que o primeiro é um longa-metragem de ficção e o segundo um curta metragem documentário, mas este último possui a vantagem de um maior rigor, um poder emocional e artístico mais afirmativo. Eis aí uma orientação artística insólita em relação ao contexto cultural nacional ( o “Família, eu te odeio”! de Gide) e a nosso cinema, que possui a tendência ou a mostrar a fratura geracional ( Truffaut, Chabrol, Becker, Pialat), ou a omitir a geração anterior ( Rohmer, Godard, Rivette, Resnais).
Paul Vecchiali, 18 anos depois da morte de seu pai Charles, reencontrou seu diário, que relata a evolução de sua doença de 1952 até seu desaparecimento, em 1959. Paul filmou este diário, escrito num caderno. As indicações que contém são sucintas, precisas. Possuem um rigor quase militar. (1). Aliás, o defunto era capitão. E a emoção surge deste contraste entre a secura do texto filmado, acentuada pelo tom neutro do recitante, e tudo o que este contém de dramático. Temos realmente a impressão de um mal inexpugnável ( fomos prevenidos desde o início do destino fatal), que progride sem cessar, interrompido por curtas calmarias. Tudo começa por crises de asma, que parecem ter levado a afecções bem mais graves, já que o capitão Vecchiali morreria de um câncer. Ao menos que tenha havido uma concomitância fortuita.

O texto é lido, com alguns retoques, por Paul Vecchiali de uma maneira bem bressoniana. Pensamos aliás no desdobramento voz/escrito no Diário de um padre. O espectador lê mais rapidamente o escrito que o recitante. Isto leva a que com freqüência Vecchiali, para manter a não-sincronização, comece a ler a quarta ou quinta linha do texto. O espectador deve então fazer um esforço para tentar encontrar no caderno o texto que acabou de ouvir. O que aumenta sua participação no filme.
Perto do fim, a escritura, até então bem inteligível, torna-se desajeitada, quebradiça. Afetados por alguns efeitos de metamorfose facial devidos à doença, revelados por um montage cut perturbador, nos apercebemos que Charles aproxima-se de seu fim, e ele dá-se conta conosco. Paul Vecchiali acrescenta que seu pai relata seu diálogo com Deus ( ele pensa tê-lo ouvido), que identificava a vida a uma passagem, e que a eternidade seria a verdadeira vida. Reencontramos aqui os itinerários de todos os finais de vida. Charles Vecchiali erra de Tulon a Roquebrussanne, em Luc e Montpellier: as pessoas muito doentes estão com frequência na vã busca- contraditória sempre- de um lugar ou de um hospital onde poderiam estar melhores...
O mimetismo entre Charles e Paul torna-se impressionante. O bigode em comum conta muito. As fotos de família são em preto e branco, assim como uma imagem de Paul, uma foto dir-se-ia. Mas subitamente esta se anima(2). Ele quisera por um momento situar-se no mesmo plano que seu pai. Cremos por um instante ver os dedos de Charles, mas são os de Paul. E além do mais Paul fala na primeira pessoa, no pronome e no lugar do pai, como se quisesse prolongar-lhe a existência. Isto é algo surpreendente na obra de Vecchiali, onde os protagonistas são geralmente femininos, maternais ( apenas mulheres em Femmes femmes, Danielle Darrieux em En haut des marches).(3).
Encontramos, portanto, basicamente planos em cores de Vecchiali que fala, planos sobre fotos de família em preto e branco e planos sobre o caderno do pai, com certas fotos às vezes sobrepostas. Mas estas fotos provavelmente não são superimpressões: custaria muito caro na economia do filme. São jogos de espelho que projetam as imagens da foto, um tanto evanescentes, sobre as páginas do caderno.
Maladie é de fato um filme sem nenhum orçamento ( no budget film). Vecchiali julga que o rodou em duas horas. O que me envergonha: levei mais tempo que isso a redigir este texto. Temos aqui a prova de que são possíveis obras-primas tocantes, comoventes como Maladie com nada. Foi Maladie que me incitou novamente a filmar curtas-metragens, sempre que tinha vontade. Em 1978, os realizadores de longas se sentiam desvalorizados se voltassem ao curta.
Eis aqui a primeira vez em que um cineasta consagra todo ou parte de seu filme à sua doença ( Charles sendo aqui o alter ego de Paul). Desde então, houve Nick’s movie ( Nicholas Ray, Wim Wenders, 1979), Diário íntimo ( Nanni Moretti, 1983),Lês derniers mots ( Van der Keuken, 1998), Le fil de ma vie ( Lionel Legros, 2002), , L’insaisissable image ( Marcel Hanoun, 2007). A origem deste lamento da doença talvez se encontre em Violência e paixão de Visconti ( 1975) e através da obra de Dwoskin. O cineasta busca não morrer para terminar seu filme.
Vocês podem me dizer que tudo já estava no diário de Charles. Paul não teve grande coisa a fazer. Talvez. Mas é o resultado que conta, pouco importa de onde vem. Necessidade de muito tato e sensibilidade para traduzir este diário em filme sem o trair.
E Maladie reencontra todo um cinema moderno, feito sobre o escrito e a palavra, o cinema de Bresson e de Straub.

Luc Moullet.

Tradução: Luiz Soares Júnior.

Notas:

1. Neste contexto objetivo, os adjetivos raríssimos que mencionam a dor tomam uma considerável importância.

2.
Vecchiali, de forma discutível, nos engana um instante: cremos ver uma foto do doutor, quando se trata de Charles.

3.
Filme de que Maladie é realmente o gêmeo: começa também com fotos de família.