quarta-feira, 10 de setembro de 2014

De uma Índia a outra




Elle, défunte nue dans le miroir, encor


Que, dans l’oubli fermé par le cadre...



( Mallarmé).




Anne-Marie Stretter...Michael Richardson...A mendiga de Savannakhet...o vice-cônsul da França em Lahore...os leprosos de Shalimar...Impossível não ceder ao charme, à volúpia, à música das palavras e do espaço imaginário construído com esta fantástica economia de meios na qual Marguerite Duras é especialista. A música, o perfume, o sonho de que estes nomes estão prenhes, e a data, 1937. Vejamos: mas em que consiste este charme? A Índia branca, 1937. Acrescentem à música, à poesia dos nomes a imagem admirável de Bruno Nuytten, os figurinos ( Cerruti 1881) de Claude Mann, Mathieu Carrière, etc, estas magras silhuetas brancas, estes fantasmas vestidos de linho, em smoking de verão, em roupa de festa, cuja imobilidade ou as lentas evoluções fixam com dificuldade uma história vaporosa como o incenso, incerta como o crepúsculo sobre o delta do Ganges, vibrante como o ar no calor tropical. Mas sim, é claro, isto salta aos olhos: a moda rétro!

Demoremo-nos um pouco sobre a moda rétro.  Rétro quer dizer nostálgico; portanto, pouco ou o bastante, reacionário. O filme de Marguerite Duras seria portanto reacionário, seu efeito principal seria o de dar um corpo a este tipo de nostalgia que adquirimos o hábito de designar com o termo ‘rétro’? Mas de fato, nostalgia do que na moda rétro?
De um gozo ( jouissance); do gozo dos senhores ( maîtres), ou seja, de um excesso de gozo ( plus de jouir) absoluto. Eles eram belos, eram racistas, etc- mas sabiam viver. O que significa este discurso, senão isto: nós que não o somos- que não somos racistas, belos-, ou que o somos com má-consciência (portanto, com um déficit no gozar), nós perdemos desde então uma certa inocência, uma certa voluptuosidade, uma certa “arte de viver”- arte de que nos cabe o despojo: “aquilo que nos resta deles”, este ersatz provisório, Gold Tea. Em sua cor ambarina, seu gosto defumado , sua frescura, vocês vão reencontrar alguma coisa deste objeto perdido.

India Song mimetiza inegavelmente este discurso, esta sedução de um excesso do gozo anterior à descolonização, de que Jean-Pierre Oudart nos indica aliás a referência histórica: feudal.
Acresçamos de nossa parte uma conotação hegeliana:  belos e racistas, eles ( os Sulistas, os SS, etc) deveriam desaparecer , historicamente falando. A moda rétro designa neste sentido seu público como servil ( diremos mais simplesmente: pequeno-burguês), na medida em que esta não representa jamais o gozar do mestre, o gozo do senhor, sem mostrar ao mesmo tempo a sua morte : Lacombe Lucien, Porteiro da noite ou ( com algumas variantes), Chinatown. Eles estão mortos, vocês estão vivos, e entre eles e você só resta- não resta nada além ( ó sedução, deusa do marketing!) desta imagem de paraíso terrestre, estas bijouterias sujas de sangue, ou de forma mais diretamente intercambiável uma pequena garrafa cheia de gasosa com chá: se os filmes rétro são sempre trágicos, eles possuem também sempre- e  o mérito do pub Gold Tea consiste em mostrá-lo- uma competência cômica secreta.

Em certos sentidos, India Song obedece bem a este esquema; obedece até um pouco bem demais, até a caricatura e a paródia. Este lado “forçado” vem evidentemente da técnica de mise en scène- ou seja, estes planos longos, esta interpretação hierática e sobretudo na disjunção entre imagem e som, do campo e do fora de campo.
Sublinhei em outro texto o efeito de estranheza da voz off no sistema de uma ficção. Ele é, em um certo sentido, pelo menos duplo: por um lado, estas vozes múltiplas que povoam o espaço off e o animam ( descrevendo, sugerindo por intermédio de pequenos toques eficazes, o odor de morte do incenso, a bruma violeta do delta do Ganges..), estas vozes que nenhum rosto sobre a tela fixa jamais, e que ora pertencem às figuras que assistimos evoluir, ora a personagens invisíveis e não-identificáveis, ora a ninguém ( “vozes intemporais”); estas vozes mescladas compõem uma trama frouxa e rasgada de palavras e de frases, uma fuga de palavras e de frases, sitiando como fumaça ou vapor de incenso  as lentas silhuetas que o cadre fixa. A sensação de lentidão, de torpor tropical, de ociosidade colonial se encontra intensificada. Por outro lado- ou antes: de forma complementar-, esta imagem privada de voz, de son, estes sons, esta música, estas vozes que erram na indeterminação do fora de campo, marcam a narrativa com uma espécie de fissura, introduzindo entre ela e os espectadores um tipo de tela suplementar- a tela do passado, já que estes corpos, estes rostos jamais se exprimem de viva voz. ( No cinema, a voz viva é necessariamente in, jamais off). Muito mais que em Céline et Julie, penso aqui em Invenção de Morel: são os mortos, os fantasmas, os traços, sem outra consistência que não a de fosforescências, deslizantes diante de nós.

Portanto, teríamos aí o dispositivo de um drama hegeliano-rétro: gozo e morte dos senhores ( no caso: de uma casta da grande burguesia colonial). Falta, no entanto, uma dimensão essencial:  a seriedade histórica, este espírito de sisudez histórica que se reflete nos filmes rétro a través do realismo da mise en scène. Há sobretudo na narrativa aqui alguma coisa a mais, que modifica completamente o quadro. Esta coisa suplementar pertence à ordem do dejeto, mas não do dejeto de um “excesso de gozo”, conversível em valor de troca e representável, do tipo “aquilo que nos resta deles, Gold Tea”.

É justamente o dejeto da representação, o irrepresentável. É também a isto que serve o espaço off em India Song: para inscrever a assombração de alguma coisa que não se deixa reduzir pela representação, pelo discurso histórico, pelo trágico. Há, portanto, em India Song, alguma coisa que, parece-nos, não tem nada a fazer narrativamente na quase ou pseudo-narração dos amores e do suicídio de Anne Marie Stretter, mas que vem transversalmente fantasmagorizar e secretamente modificar a narrativa. Esta ‘alguma coisa’ é por exemplo o canto da mendiga de Savannakhet, ou a evocação dos leprosos de Shalimar pelo vice cônsul de Lahore, e talvez seja também o grito, o amor, a loucura do homem de Lahore.

A mendiga, os leprosos, não são de forma alguma os servidores, os trabalhadores que esperam pela morte dos mestres. Sem dúvida, evocam o Outro, mas não o Outro dialético, ligado de forma contraditória ao Uno e destinado pela História a ocupar o lugar deste ( Senhor). Completamente fora de campo, eles são completamente estrangeiros, completamente estranhos. A mendiga, os leprosos não trabalham. Parasitas e dejetos sociais no mundo real, eles são aqui literalmente os parasitas e dejetos da narrativa.
Eles não trabalham, não possuem o status legal de dominados: senão não estaríamos distantes de uma clássica ficção política e de uma clássica mise en scène das contradições de classe. Mas o que fazer dos leprosos de Shalimar e da mendiga de Savannakhet? ( É claro, o enquadramento marxista-leninista funciona também para eles: os lumpen. Mas cada um sabe o que são as categorias nevrálgicas do marxismo leninismo). O que fazer do canto ininteligível do Outro? Em Nathalie Granger, o livro, Marguerite Duras opõe, em uma pequena nota no rodapé da página, à clássica noção de violência de classe aquela, impensável, impossível, de uma classe da violência.

A violência de classe pertence ao domínio do possível e do pensável, na medida em que ela constitui-se no meio por intermédio do qual a História avança: esta violência é feita, historicamente, hegelianamente, para ser enquadrada, canalizada, subordinada e “ultrapassada” ( pelo Partido, pelo Estado “do povo inteiro”). Ela consiste em uma figura ardilosa ( rusé) da Razão. Mas em se tratando de uma classe de violência, de que espécie de classe pode se tratar e a que classificação apelar? A violência, neste sentido, é precisamente aquilo que estilhaça toda noção de classe e todo espírito de classificação, toda paciência do conceito.  Uma “classe de violência” só pode ser uma classe parodicamente. “Classe” de intensidade pura, onde comunicam-se transversalmente, musicalmente, seguindo as amplidões de onda do canto e do grito, do grito cantado, do fora de campo, a mendicante e o vice-cônsul, e os leprosos nos quais ele atira ( e o silêncio de Anne Marie Stretter: há sempre um lugar para o silêncio nas ficções de Marguerite Duras). Não deixaremos de rir destas coligações ( as pessoas sérias, é claro). E, com efeito, esta é uma classe feita para rir, a dos leprosos, dos mendigos e dos vice-cônsuls.


Do ponto de vista do espírito sério, do trágico, da ciência e da História, deveríamos estacar aí e denunciar em Duras uma Vicki Baum ao mesmo tempo rétro e modernista. Eu prefiro ver outra coisa senão charme exótico na evocação dos mendigos de Shalimar. A questão dos leprosos e dos leprosários é com efeito a mais incendiária e recalcada do espaço ocidental desde a idade clássica ( Michel Foucault o nota o início de História da loucura: “Aquilo que vai permanecer por muito tempo além da lepra, que vai se manter numa época onde há anos os leprosários  estarão vazios, serão os valores e as imagens ligadas ao personagem do leproso. (...) Com frequência nos mesmos lugares, os jogos de exclusão vão se repetir, estranhamente semelhantes dois ou três séculos mais tarde. Pobres, vagabundos,  objetos de correção, alienados tomarão o lugar abandonado pelo leproso...”). O leprosário é o modelo arquitetural de nosso mundo. A ficção de India Song: um leprosário nômade, com fronteiras móveis, com limites flutuantes, que traça a comunidade no gesto de exclusão com que se constitui.


Pascal Bonitzer, Cahiers Du Cinéma, 258-259


Tradução: Luiz Soares Júnior.




segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Riccardo Freda, por Jacques Lourcelles





Em Os Livros de minha vida,  página 50, Henry Miller tem razão em assinalar: “Rabelais, homem da Renascença, conhecia seus contemporâneos. Os homens da Idade média, apesar de todas as dificuldades que se imagina, comunicavam-se entre si, e se visitavam. O mundo culto formava a esta época uma imensa tela cujos fios eram duráveis e condutores de eletricidade. Os escritores de nosso tempo, estes homens que deviam exprimir e formar as tendências do mundo, dão a impressão de viverem reclusos. Sua importância, em todo caso sua influência, é praticamente nula. Os intelectuais, os escritores, os artistas de hoje desembocaram em um promontório, que a cada nova onda desenfreada é ameaçado de extinção”.

Em nenhuma outra parte esta reflexão é melhor justificada que no cinema. Cineastas embarcados em empresas análogas ( penso aqui em Walsh, em Mizoguchi,  em Losey por exemplo; ou, se preferirem, aos títulos The Lawless breed, Yang-Kwei fei, a The gypsy and the gentleman, a Beatrice Cenci), artistas inspirados diversamente por temas vizinhos mal se conhecem, sabem pouco ou nada que existem. Fato mais importante: cada um resguarda em seu país uma impressão de solidão, e se sente isolado em seu trabalho. Vejo que alguns dentre eles devem se sentir satisfeitos às vistas desta situação, e declaram que no momento de toda criação a solidão é o óbulo do artista, que queixar-se é portanto supérfluo. É correto, mas ao que eu saiba, jamais se constatou que comunidades reconhecidas de artistas ou de boas relações entre eles jamais colaboraram para limitar ou interditar a criação individual, apenas tornando mais claras as intenções, mais seguras as tentativas, e em definitivo mais profunda sua influência. 

Este isolamento, no caso de Freda, é duplamente paradoxal, e duplamente perigoso, se o seu efeito consistir em dissimular os verdadeiros propósitos do autor. Vocês podem se espantar ao saber Freda isolado, justamente num país em que os cineastas tentaram justamente se rebelar contra o isolamento, agrupando-se todos sob a égide de noções comuns, e daquilo que foi chamado neo-realismo. Mas justamente, pela sua própria importância ( muito mais verbal que criativa), este movimento colocou definitivamente nas margens aqueles que não tinham intenções de integrá-lo. Para dizer a verdade, com a exceção de Freda, conheço poucos cineastas que vez ou outra de sua carreira não tenham flertado com esta doutrina, levando-se em conta evidentemente o fato curioso para tal movimento ( neo) que o número de cineastas que pretendem tê-lo preparado, ou desde um longo tempo servido, é claramente superior ao número daqueles que reconhecem tê-lo seguido. Depois, a moda mudou: o neo-mitologismo chegou. O destino geral do cinema italiano, de certa forma, acabou por encontrar-se com Freda; e é na vasta corte de seus imitadores que devemos solicitar hoje os signos de seu reconhecimento. Dizer que Freda, sem que tenha feito nada para isto, acabou por ser integrado pelo conjunto do movimento de cinema do seu país leva-nos a assinalar uma evidência. A aparência exterior dos roteiros e dos personagens, infelizmente caricaturais em excesso na maioria dos filmes vindos atualmente da Itália, consiste em um primeiro argumento, quase excessivamente poderoso. Um outro e semelhante argumento, desta vez, pode ser retirado dos elementos pensantes ou meditativos do cinema italiano: e Rossellini, em termos não equívocos, comenta freqüentemente em suas entrevistas, desde Il Generale della Rovere, da necessidade de uma nova exaltação heróica que, aliás, ele se mostra totalmente impotente de suscitar em suas próprias obras. Estas diversas confirmações, de um lado como de outro, reforçam a auto-suficiência tranqüila de nosso autor, além de seu doce cinismo. Assim, Freda, até então isolado pelo cinema de gênero que praticava, então contrário às modas, seria atualmente considerado um mascarado, quando precisamos designá-lo, pela abundância vulgar dos produtos que atravancam este gênero. 

Coincidência cronológica, evidentemente. Sabemos que a minúscula trama de amor e de lucidez crítica que se exerce em torno do cinema só começaram a existir em torno dos anos 1950-55; e nós mesmos ( porque a crítica até então não tinha dito nada), nós mesmos só começamos a descobrir Freda em 1957 com Beatrice Cenci, e ainda alguns meses mais tarde, com I vampire ( início de 1958), depois um silêncio de dois anos e meio e, em 1960, Agi Murad começava a série de filmes de Freda que saíram desde esta data, ainda possíveis de se ver. Seguramente, seria mais fácil ( digamos, em 1952) tornar evidente o talento de Freda à época porque seus  filmes de então eram melhores, mais coerentes, mais homogêneos ( égaux) que alguns daqueles que as circunstâncias lhes permitem dirigir nos dias de hoje; e sobretudo porque à época seria infinitamente mais fácil apontar a sua flagrante originalidade, assim como a nobreza de seu tom, em relação ao contexto imediato onde estas duas obras nasceram.

O isolamento de Freda ( que hoje o vive "dentro da multidão", contrariamente aos dias de antanho, onde estava às margens) é paradoxal por uma outra razão, até mesmo divertida: com efeito, ele é um destes cineastas que, mesmo a seus próprios olhos, aspiram a mais e mais expressamente a continuar as tradições ancestrais, em representar gestos e atitudes que já alimentaram tantas obras do passado. Ele constitui o inverso do metteur en scène a quem devemos defender como uma criatura advinda de um outro planeta, um inventor, um homem sem ligações, criando a partir do nada suas próprias origens. Constatemos portanto que Freda adapta, e adapta enormemente. Pouchkine, Hugo, Casanova e sua vida, Dante, Tolstoï, lendas diversas, gregas, italianas, mexicanas, etc lhe forneceram histórias, favoravelmente inspirado. 

Antes de todo comentário, gostaria de citar momentos precisos, adoraria dizer sua fidelidade a estas obras e sua inteligência, que jamais se excluem nele; como  consegue levar para a tela a verdade viva que circula por estas obras! como, em alguns segundos, com uma carruagem sobre a estrada, , com um parque, um travelling-para trás de uma audácia e alegria geniais, ele transcreve as páginas 182 a 212, edições Nelson, dos Miseráveis ( III, 2 a 8); como no cenário seguinte do restaurante, ele conclui brevemente sobre os pratos de Fantine, "fim jubiloso da alegria". Se esta cena- ou se um pouco mais adiante Cosette retirando-se da água e reencontrando Jean Valjean na noite; se a mesma recebendo a boneca miraculosa não vos suscitarem maravilha, não vos indicarem uma intensidade e uma candura feitas de um grande desprezo pelos artifícios,  que chegam a igualar este autor aos maiores, então, sim, de acordo; mas desta vez com o conhecimento de causa, Freda não irá vos interessar, e é inútil prosseguir. 


Os autores, os contos, as lendas que enumerei trouxeram para Freda heróis, figuras: Don César, Dubrowsky, Jean Valjean, Casanova, D'Artagnan, o imperador Justiniano, os Cenci, Agi Murad, Jason, etc. figuras emblemáticas de si mesmas, é claro, mas igualmente das verdades que pretendiam impor ou defender. Estes autores trouxeram igualmente para Freda cenários, a cada vez reconstruídos para ele com precisão, em suas dimensões e atmosferas exatas, em seu caráter específico e ao mesmo tempo natural; o que inclui também que eles sejam naturais para os seus habitantes, e que dentre eles nenhuma dissonância deve nascer: Espanha do século XVIII, festas e assassinatos da Itália do XVI, a Paris tumultuosa das revoluções, neve das viagens infinitamente distantes de Casanova, prisões, mármores sufocantes dos subterrâneos de Dante, e assim até o infinito...Figuras e décors que a mise en scène vai agora manter e comprometer naquilo que será seu único exercício: uma constante revelação recíproca. A mise en scène de Freda não é estranha àquela de outras obras-primas do cinema, ou mais variada; poderíamos dizer que ela constitui a sua raiz, e confesso que pensei por um instante em acentuar o significado etimológico.

Do découpage clássico, o plano privilegiado desta mise en scène- aquele que melhor lhe sugere o projeto e a idéia é o plano geral em movimento que percorre e penetra o cenário, explorando-o, e acompanhando de longe um personagem que avança, apropria-se do lugar, combate ou morre. Exemplo: o plano no Vingança do águia negra, onde o pequeno André Dubrowsky, filho do Águia negra, ronda em torno da mesa do festim e atravessa a sala do palácio, ainda ignorante da armadilha na qual o príncipe Youravleff quer agarrá-lo- o mais belo plano da obra de Freda. Quando se trata de cenário, não sabemos bem o que dizer. Com efeito, depois dos abusos e aberrações minnelianas, reforçadas ou exploradas por seus comentadores, depois dos hábitos que acabaram por se sedimentar desta concepção de décor, como podemos mostrar que o décor é aquilo que há de mais grave, de menos decorativo em uma mise en scène? Como fazer compreender que a mise en scène de Freda- onde, no entanto, tudo se encena no e pelo décor- não tem absolutamente nada a ver com uma valorização, um "passo à frente" reivindicado ao décor? Simplesmente, ela põe sua esperança -esta é a  parte um pouco mística de toda empresa razoável de mise en scène- no fato de que, uma vez apreendido o décor ( e portanto, logicamente, as ações que nele se desenrolam e engloba), tudo será dito e conhecido, e o resto- temas, psicologia, julgamento moral- tornado inútil.

Assim, este cinema seria naturalmente espetacular: toda relação humana se resolve em termos de espaço. Separações, alianças, dispersões, reagrupamentos, traições, fugas, mobilizações, conversões são a matéria desta mise en scène; e sua aplicação consiste no seguinte: que tudo se torne legível, no fundo do coração em primeiro lugar, no seio de um partido fundado pela defesa de qualquer valor, mas sobretudo sobre o próprio terreno da luta onde a ação se exprime enfim, se extrai e se purga de sua expectativa, de seus preparativos, de suas motivações nebulosas, coléricas ou melancólicas. Oculta sob as dobras desde quilômetros, a lâmina brilhante , enfim saída do bolso, vai servir para alguma coisa. A emoção então não é ausente, mas verdadeira e destacada ( décuplée). 

Peguemos uma situação banal de melodrama: uma mãe separada de seu filho. Instalemos agora esta cena em seu espaço, centenas de metros de campos e de via férrea: é durante um êxodo da Guerra de 1914-18, na região de Veneza, que a cena se passa, e o filme se chama La leggenda del Piave. Vejamos sobre o trem a mãe ansiosa, percorrendo o espaço com o olhar, debruçada sobre a porta exterior de um vagão; o trem, que acaba de fazer manobras, progride lentamente, e adquire velocidade ao longo do campo; ei-lo ultrapassando uma passagem de nível novamente: a mãe espia sempre; do outro lado, há a estrada, a massa dos veículos, uma charrete estacada: em cima dela, entre os móveis e as bagagens, a criança, que em uma fulminação a mãe percebe; e sempre o trem, progredindo sem parar. Algumas peripécias ainda, que esqueci ( só pude ver o filme uma única vez)- ou seja: alguns segundos reais, densos e intermináveis, durante os quais os corpos lutam, tropeçam, lançam-se, correm, aproximam-se, distanciam-se, depois voltam finalmente a estar próximos, apesar das barreiras do mundo.  Quem, tendo visto esta cena, ousará glorificar a originalidade, a invenção temática?

Em meus exemplos, tenho de citar várias crianças. Não há poucas na obra de Freda: o pequeno Lazarillo do início de Dom César de Bazan, Cosette, Dubrowsky, o filho de G.M. Canale em La leggenda, alguns ainda nos melodramas e, na família dos Cenci, Beatriz, uma criança também, feita para a felicidade , mas que um pai incestuoso, os cálculos de uma madrasta, o aparelho complicado da justiça e do tempo conduzirão sob o machado do carrasco. De fato, é isto um filme histórico: que tendo que filmar, por exemplo, a batalha de Waterloo, o cineasta possa mostrar até que momento a batalha poderia ter sido vitoriosa, a partir de qual momento igualmente ela só poderia degenerar em derrota amarga. Aqui, e até o fim, a impressão que retemos é de que Beatrice poderia ter sido salva, e não o foi. Crianças, portanto, estão perdidas neste mundo de violência, de inteligência e cálculos. Embora perdidos nele, participam de suas aventuras, para em muitos casos servir de reféns frágeis e preciosos; para serem também aqueles que é necessário salvar. Em todo retrato de um metteur en scène, é costume falar algumas palavras sobre a matéria e as bases dramáticas que os caracterizam. Com Freda, estes são extremamente simples, e as crianças são introduzidas igualmente. Manter vivas, proteger aquilo que é precioso, umas crianças, uma mulher, certas idéias, constituem o fito e a ação dos personagens que Freda tirou das lendas e dos velhos livros. Mas no momento da ação, no décor, sobre o muro a pique de um castelo que é necessário escalar ( não desvalar), na sala de armas, em uma clareira, em seu décor enfim, o defensor, o herói está só. A mulher ou a idéia a defender estão em outro lugar, em sua memória, na peça ( a prisão) do lado. O herói tem diante de si os obstáculos, e a face convulsa ou hipocritamente cautelosa do inimigo, tão intensamente claro, intensamente legível ele também; e é aí que o verdadeiro filme começa. Eu sei que este gênero de filmes, tão pouco sutil- aventuras, pompas e corpo a corpo- é mal visto por uma parte dos espectadores, a quem ofende em primeiro lugar por esta falta de sutileza; e onde em seguida é deplorado o fato de que são convocadas , segundo eles, as partes mais baixas da atenção do público. Eu me permito, em se tratando de Freda, de não subscrever a esta opinião, e de tomar muitas vezes o caminho oposto a esta. 

Para começar, vejo uma substituição ocorrer: aos temas, às dúvidas,  às angústias elaboradamente entretidas pela maioria dos cineastas ( a incomunicabilidade entre os seres, o doloroso problema do casal, etc; ou, em um outro registro, as zonas de insalubridade das grandes cidades, a indiferença dos poderes públicos, etc); a esta espécie de cumplicidade estabelecida com o público por um interesse frívolo pelos problemas, pela compaixão, substituem-se aqui um documento e uma interrogação. O documento: os trabalhos do herói, os fatos memoráveis. Aqui também, ainda estamos em plena tradição. Início das Investigações de Heródoto: "Hérodote de Thourioi expõe aqui suas pesquisas, para impedir que tudo aquilo que os homens fizeram se apague da memória, e que os grandes e maravilhosos prodígios (...) sejam sem cessar lembrados". Tito-Lívio, Plutarco, recenseavam as vidas e os eventos importantes para a instrução de seus contemporâneos. A interrogação: um apelo mudo; o que é requisitado do espectador é que ele seja levado, pela energia disseminada no espetáculo, a definir a si mesmo em relação ao que lhe é apresentado, e talvez a se conhecer. O que é aqui proposto pertence antes não à ordem da comunicação, mas da confrontação e do silêncio.

Em segundo lugar, esta mise en scène que captura os homens em seu décor já é, sob os figurinos de outras épocas, antes de tudo uma análise do élan vital que o precipita em direção a uma causa justa; em segundo lugar, a força que lhe possibilita este élan, terceiro o acolhimento reservado a esta força pelo destino. Enquanto tal, esta análise é, portanto ( e aqui me repito), a raiz das soluções e a fonte da energia que poderia permitir resolver, ou antes anular os problemas evocados mais acima. 

Enfim, nesta mise en scène, no acordo que encontra continuamente entre o herói e seu espaço, acordo que subsiste para além de todos os dilaceramentos, e até mesmo na morte, vejo a realização de um fim, assumido ou não, de toda arte: o apaziguamento Apaziguamento verdadeiro, o único que não seja uma última peripécia acrescentada precipitadamente ao roteiro, uma fictícia reconciliação dos seres, mas uma força que progride paralela ao drama e o acompanha. Apaziguamento misterioso, comparável ao do herói, tomado alguns instantes antes de realizar o ato. A ação, ao ser realmente realizada, se revira e se torna um espetáculo até mesmo para aquele que vai realizá-la, neste momento privilegiado onde ele espera que o destino lhe permita saber se este lhe dá razão ou não, se está contra ou a favor dele. De Gilliat, no Trabalhadores do mar, antes do ato que irá tudo resolver ( IV. 6), Hugo diz: "De Gilliat não poderia daqui por diante nem ajudar o auxiliar, nem estacar o inimigo. Ele não era nada além do próprio espectador de sua vida ou de sua morte". Em quantos filmes de Freda as peripécias do roteiro constrangem o homem a encarar calmamente a sua morte? Em quantos as execuções capitais estão preparadas; em quantos, um torso se encontra cercado por uma dezena de espadas, de lanças ou de baionetas, para espreitar neste segundo o frêmito ou a tranquilidade do homem conduzido a seu limite?




Mas a obra de Freda não compreende apenas os filmes citados acima; e se o filme de aventuras propriamente ditos devem ser colocados do mesmo lado, os filmes de horror ( ou de ficção científica) e policiais devem em seu conjunto lhes serem opostos; eles são o lado reverso da medalha. Nestes dois gêneros, desenha-se um outro cinema, de escravidão, de comprometimentos e de passividade, onde os personagens, abandonados a suas taras e ambições, não tentam mais exercer sobre elas nenhum controle. Em Os vampiros, vejo os dois investigadores guiados pelo acaso e unicamente para ele na solução do problema, até o umbral do atroz; um deles morrerá, pois terá chegado perto demais; o outro triunfará, mas seu triunfo será pior que qualquer derrota. No mesmo filme, as moças capturadas pelo drogado, o drogado submetido a seu doutor e alimentado por ele, a própria duquesa, escrava do tempo e do envelhecimento, formam uma ronda infernal ( mas calma e ordenada como um espetáculo), que o autor sobretudo se esforça por não estilhaçar ao emitir nenhum comentário ou avaliação moral. Ele apenas isola alguns instantes de silêncio e de imobilidade, onde o tempo poderia estacar, e que não se constituem em efeito senão na expectativa de uma violência maior, ou o grito imobilizado na garganta. A duquesa ( Gianna Maria Canale), só em seu quarto, liga o mecanismo de uma velha caixa de música. A música ressoa, evocando um passado longínquo. A duquesa se aproxima de um espelho, e olha. Ela vê suas pupilas fixas, que não testemunham os trajetos da idade, seu rosto liso e imóvel onde não se lê nenhuma emoção, senão uma imensa surpresa de ser ela mesma. Ela acaricia suas bochechas, sua pele muito branca sob a qual escorre ( com dificuldade) o sangue de outras jovens sacrificadas. Neste instante, o que não ousaríamos esperar chega: o cinema existe. 


Passividade mais sorridente, menos velada, mas não menor em Caccia all'uomo: vejamos aqui os escroques rústicos e grosseiros dos campos e seus confrades mais calculadores e melhor vestidos das cidades, mas colocados ambos no mesmo pé, descobertos e reduzidos à impotência pela fungadela mecânica de um cão. Quanto a seu mestre, também não parece em situação muito melhor, e o manejo de seu instrumento de trabalho não lhe deixa margem de iniciativa e repouso superior à dos homens que deve caçar. É por pura bondade fraterna, ou por pura lassitude, que a intriga lhe concede alguns ( admiráveis) intervalos de liberdade.
Passividade, enfim, em Raptus: os olhares da primeira mulher do doutor, consentindo à hipnose, ao bel-prazer do Outro, recebendo duas vezes o anestésico, a segunda vez mortalmente. Certo, estes filmes de horror são voluntariamente mais ameaçadores que assustadores; e seus personagens estão muito mais assustados do que nós, que os contemplam. Mas é que, ainda aqui, trata-se de um espetáculo;  e os obstáculos, as armadilhas, as torturas valerão apenas para aqueles que os ultrapassam ou sofrem. Como sempre no grande cinema, um julgamento é emitido, mas pelo silêncio e no grande espetáculo.


Falei da audácia tranquila de Riccardo Freda. Adoraria, antes de acabar, voltar a isto. Sabendo de antemão que a maioria do que se encontra na herança literária européia lhe seria favorável,  Freda sabe agora que nove entre dez dos filmes que se roda em seu país são, no domínio do roteiro, feitos para ele. Ele se torna cada vez mais calmo. Trabalhando sob encomenda como muitos artistas fizeram antes dele, ele não reclama de nada, a nada se recusa. Não se conta mais ( tenta-se contar) os filmes que ele remendou ou tentou tornar apresentáveis ao público. Seu próprio nome lhe é indiferente. De maneira que não é absurdo dizer que o que ele fez de melhor nestes últimos anos é o fim de I mongoli, filme de Leopoldo Savona, na Itália, de André de Toth no resto do mundo, e alguns planos singulares de Raptus, filme talvez inglês de Robert Hampton.

Com Freda, é portanto a tradição, alguma coisa de Homero ( quando as circunstâncias se prestam a isto) a aventura reencontrada em todos os lugares, o gesto ao mesmo tempo amplo e preciso do herói, renovado e regular como estas estações que tanto cansavam a Valéry; seu sacrifício, seu triunfo, os fatos sangrentos da História; é tudo isto que se perpetua, amarga e impessoalmente. E também o irresistível sentimento de liberação que se extrai destas coisas olhadas na cara. 


Jacques Lourcelles. 

Présence du cinéma, 17 Primavera 1963

Tradução: Luiz Soares Júnior