O último plano do Ano do dragão de Michael Cimino, composto de movimentos que bruscamente se interrompem, repartem e alternam até o definitiva “parada” ( arrête) sobre a imagem, propõe uma variante de uma figura de retórica típica da nova língua comum do cinema. Com efeito, todo filme- e estes são numerosos hoje em dia- que termina com um congelamento sobre a imagem manifesta sem o saber uma metafísica da imagem como novo valor sagrado. A imagem ( vide também as tomadas de posição tão violentas quanto arbitrárias daqueles para quem o cinema “é antes de tudo a imagem”, postulando por princípio uma combinatória infinita de elementos visuais) repousa agora- nesta nova língua comum da “imagem”- não apenas sobre a possibilidade ( o que seria uma maneira agradável de visar o cinema) mas sobre a obrigação de acordar crédito e valor não mais à restituição do espaço e da vida que podem se inscrever na tela de cinema ( tal como a podemos viver, sentir, observar ou imaginar), mas à compilação de todas as figuras visuais , secretadas ao longo da História do Cinema pelos gêneros.
O cinema publicitário nos habituou a perceber cada plano como um banho fetal de imagens- e cada spot como uma auto-estrada narrativa desembocando sobre uma palavra., um nome, uma frase, uma imagem. Esta idealização da imagem como superfície- significada, portanto, geralmente pelo congelamento sobre a imagem ao final do filme- conduz progressivamente o cinema a ser nada mais que uma vasta reconstituição arqueológica fundada sobre um princípio implícito: nós sabemos que o cinema no qual acreditavam nossos ancestrais era apenas a ilusória reprodução da vida. Cada filme hoje nos lembra cruelmente por intermédio de seu ponto final que o cinema é apenas uma sucessão de imagens, condenada ao fotograma. A televisão, depois o magnetoscópio- de forma mais radical que todas as Cinematecas do mundo- transformaram todos os cineastas, sem exceção, em possuidores efetivos ou potenciais de todos os tesouros cinematográficos, desde os documentários dos irmãos Lumière até o pornô e a ópera filmada, desde Griffith até os Straub. O que é de hoje em diante comum ao cinema que se faz atualmente e ao Grande Livro do Cinema que cada espectador pode ler ou folhear sobre uma tela de tv é este congelamento sobre a imagem- operação desconhecida, há vinte anos atrás, mas tentação irresistível para todo espectador: estacar o instante.
Godard atribuía a Truffaut a invenção do congelamento sobre a imagem no final de Os incompreendidos ( Truffaut que amava tanto os livros). Esta invenção, anterior a Truffaut, é ligada em todo caso à adaptação cinematográfica de um livro: é ao final de Madame Bovary que Minnelli congelava a imagem de Mason-Flaubert. Esta petrificação sobre a imagem que Minnelli havia imaginada a respeito de um livro tornou-se um signo de adesão ( ralliement) cinematográfico: correlato ao fato de que a imagem postula apenas a ser uma pura operação quantitativa de retranscrição ( pode-se já produzi-las eletronicamente). Hoje, não importa quem pode- se sua memória insconsciente dos filmes não é suficiente- conscientemente retranscrever (recopier) os efeitos que admira no controle remoto). De uma parte a outra, trata-se do regime do “congelamento” sobre a imagem.
Mizoguchi, quando realizava seus filmes sublimes a partir da antiga ilusão segundo a qual o cinema deveria captar a vida- e não compor imagens- não sonharia um único instante em acabar um filme “congelando” a vida. Ele que nada poupou para torná-la real sobre a tela não poderia ser tentado a reduzi-la aos confins de uma imagem. Um plano de Mizoguchi nunca foi uma adição de receitas ou de efeitos abstratos, mas um incalculável encontro (a mais eficiente dos 4x não encontraria jamais as menos) de vibrações humanas, atmosféricas, luminosas e técnicas, suscitadas por uma certeza: que a vida, que existe antes e depois do filme, não deixa em nenhum momento de estar lá ( desde o devaneio inicial ou a primeira intuição do filme até a tiragem da primeira cópia)- esta vida sempre a colocar, insidiosa ou às vezes brutalmente, questões ao cineasta. Mizoguchi não esquecia jamais que deveria buscar captar em um filme o essencial da vida. ( A história do bife, contada por Claude-Jean Philippe, testemunha desta atenção constante em Mizoguchi, que tinha ouvido na voz de uma atriz ,que acabara de comer uma bisteca, tons de satisfação e bem-estar impossíveis para o desempenho da personagem).
Esta feliz ilusão, que Mizoguchi compartilhava com a maioria de seus camaradas, teve por aliada uma intuição que apenas Murnau e Griffith possuíram a um tal nível: que o espaço é, com o rosto humano ( e, a partir do falado, a voz) a única ordem de grandeza que assegura ao cinema, pelo ultrapassamento de suas técnicas, seu caráter sagrado de arte. O espaço, no cinema de Mizoguchi, é a própria metáfora da vida, que reverbera para além das contingências sociais e históricas dos seres humanos, sem jamais se hieratizar em uma indiferente beleza abstrata. Mizoguchi restitui ao mundo visível seu caráter sagrado: por suas bruscas aberturas de espaços (os mais belos movimentos de câmera jamais concebidos por um cineasta), que exilam os seres ou os jogam uns contra os outros, Mizoguchi exalta a profundidade de campo até o ponto de fazê-la exprimir, por uma espécie de indução de ondas que prolongam os atores-personagens, a imensidão da vida.
Com o simples jogo combinatório da imagem, a tarefa nos dias de hoje não é simples. O espaço filmado não é mais percebido como uma virtual conjugação de vibrações: se acreditassem ainda nisso, não teriam a necessidade de sobre-significar ( enfatizar) que o filme acabou, como se faz congelando a imagem. As vibrações do plano, a dramatização do espaço, o distanciamento ( ou a aproximação) dos personagens são suficientes ( às vezes com, é verdade, um pouco de música em torno). E mesmo se alguém buscasse retomar um pouco desta antiga maneira, os espectadores, antes mesmo de se deixar tocar por eventuais metamorfoses inéditas, veriam antes uma figura de estilo. O impasse é praticamente total. Como romper a barreira deste congelamento sobre a imagem? Alguns conseguem. Detetive de Godard termina sobre uma imagem conhecida ( happy end no carro) com a qual o diálogo “goza”. Também o som, no final de América-Relações de classes ( Straub-Huillet), que desfibra a imagem contemplativa e abre uma brecha no impasse.
Em Abbot e Costello em Hollywood ( programado na “última sessão” de Eddy Mitchell na FR3), o espaço não se encarrega de exprimir grandes coisas ( Sylvan S. Simone provavelmente apenas era um artesão um tanto inquieto por criar) ; só que, mais prosaicamente, o espaço permite aos atores e suas gags se desdobrarem com toda a clareza e precisão. O gênio cômico de Abbott, que não é sem relação com a trivialidade de Benny Hill, consiste em intensificar as gags até os limites do absurdo sem jamais distrair os espectadores de sua encarnação física: a cabeça obstinada e o corpo abaulado de Abbot, com mais destaque ainda que em W.C.Fields ( em quem a voz faz mais da metade do trabalho), oferecem a garantia que a abstração da gag era apenas uma disciplina ou um instrumento. Ainda seria preciso que Abbot encontrasse um metteur em scène sutil o suficiente para que tudo que entrasse em matéria de ingredientes na composição do filme fosse seu prolongamento lógico e natural: o que justamente se constata em Abbot e Costello em Hollywood. Todos interpretam no diapasão da mesma extensão de ondas que os dois atores, sem provocar esta desagradável impressão que sentimos com freqüência nas comédias e comédias musicais americanas produzidas em série, onde os outros personagens são “escadas” ( faire-valoir) que nos alertam irremissivelmente sobre o passadismo de uma época desaparecida.
Aqui, todos os personagens estão diante de nós no tempo do filme que se desenrola, no presente. São os atores-personagens que possuem o poder de anular as marcas pesadas e ultrapassadas ( désuètes) dos estilos da época. ( E que diabos Woody Allen, que não tem necessidade de copiar ninguém, vai fazer nas pirâmides hollywoodianas?) . É a última fortaleza ( no momento) que permite-nos resistir ao regime insidiosamente totalitário da arqueologia da imagem, sob a condição de que os atores cessem de se referir aos stars que os precederam. Que eles sejam- no presente- eles mesmos. Ao menos, sua luz será real.
Jean-Claude Biette, Poétique des auteurs
Cahiers du Cinéma, 379. Janeiro de 1986
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