segunda-feira, 28 de setembro de 2009

O festim da aranha, Jean Narboni

É impossível falar de Bergman sem um mal-estar cuja causa essencial é esta: objeto de falatórios inumeráveis, animados tanto pela admiração quanto pelo ódio, este autor parece-nos hoje em dia “sem perigo”. Se a urgência e necessidade de uma obra concernem aos novos sentidos que libera ou desnuda, além das questões que suscitam as questões desta obra, convenhamos que a obra de Bergman esteve submetida por um bom tempo a um movimento de neutralização: ou se contentaram de repercutir suas interrogações com um eco respeitoso, ou tentaram nelas infiltrar – mal tinham sido formuladas- a figura reconfortante de uma resposta, mesmo que de desespero.Ora, os filmes de Bergman- nisto, são de uma absoluta modernidade- não são mais assombrados pela questão: “do que se fala?” mas por esta: “quem fala?”, ou mesmo esta, que não se pode igualmente descartar: “quem escuta?”

No final de Prisão, um metteur-en-scéne se recusava a fazer um filme sobre o Inferno, pois o silêncio daquele a quem deveríamos colocar as questões implicariam- segundo ele- na inutilidade do projeto: ignorante de que toda questão encontra sua resposta- mesmo que esta consista num devorador silêncio-, e que deste silêncio Bergman iria fazer seu tema essencial. Se desde este filme o autor introduz o cinema no cinema, como fará mais tarde com a música e o teatro, não nos enganemos: é para se interrogar sobre a Arte em suas interferências para com a vida, sua função, seus efeitos ou suas figuras, mas não ainda sobre seu ser, que é a via na qual Bergman se coloca hoje.
A criação artística sempre se manifestou para mim como uma fome(...). Agora, nestes últimos tempos, em que ela tendeu a se apaziguar e a se transformar em outra coisa, experimento a imperiosa necessidade de buscar a razão de minha atividade artística. “ Deveríamos aproximar esta declaração de Bergman ( Cahiers du Cinema, 188, A pele da serpente) de outra, muito próxima desta, de Jean Renoir: “ Acho que num filme não deve haver nada de passivo. Um único personagem deve ser passivo e sofrer tudo, deve ser uma boca engolindo tudo, um estômago ingerindo tudo, é o autor do filme. Mas todos os elementos que ele absorve devem ser ativos: o cenário, os personagens, tudo isso tem de ser vivo; ou seja, é preciso “nos fazermos de mortos”- não, não de mortos, de adormecidos: abre-se largamente a boca, e absorvemos tudo, não é?, e depois digerimos, o devolvemos de uma outra forma...” ( Cahiers 186).
Não se trata de estabelecer aqui uma comparação entre Bergman e Renoir, e muito menos de constituir numa oposição no modo através do qual, enquanto autores, eles se comportam em relação às suas opiniões sobre a criação como “ato de devorar”. Trata-se apenas de indicar que, numa frase na declaração do segundo, se vê precisada a opinião do primeiro: “é preciso nos fazermos de mortos- não de mortos, de adormecidos”. Proposição capital, pela qual se explica a démarche dos últimos filmes de Bergman. A trilogia, Toutes ses femmes e Persona constituem, com efeito, uma das interrogações mais radicais às quais um autor de filmes se submeteu e submeteu sua arte, e aqui ainda, como em outros pontos que não nos cabe evocar agora, o parentesco entre Bergman e Godard aparece-nos de forma marcante. A má consciência do artista se exprime em agir por “desapropriação”, escamoteamento do outro, roubo de sua substância e assimilação da mesma à do artista. Mas esta avidez não demanda nenhum esforço para ser satisfeita. O artista não é mostrado perseguindo suas presas, mas “se fazendo” de morto, de adormecido, ou mesmo em silêncio; camuflado, invisível ou desapercebido, falsamente ausente, para que suas criaturas venham até ele. Ele dispõe, em relação a elas, de um espaço de retração, uma zona de atração ou imantação; suas criaturas, quando ultrapassam a fronteira, estão aprisionadas, submetidas ao mecanismo e insensivelmente conduzidas até ele, reduzidas a não serem nada além da etapa última e central de sua construção.

A teia da aranha figura bem adequadamente o jogo e a configuração de semelhante armadilha. Desde esta etapa decisiva, segundo vimos, que constitui para ele Prisão, Bergman vai se referir a isso: dois personagens projetam num sótão um slapstick 1 de solavancos, onde vemos um esqueleto que pula de um cofre e um homem despertado por um ladrão, além de uma imensa aranha suspensa por um fio. Slapstick que vai ressurgir no início e no fim de Persona ( os planos não são exatamente os mesmos, mas semelhantes os personagens, como se tratasse de um “remake”, ou de rushes ulteriores, utilizadas do primeiro). A etapa intermediária desta metáfora aracnídea é constituída por Através de um espelho, com este Deus aranha vampiresco, com o qual Karen se assusta ( vemos aí se sucederem uma cadeia de substituições, onde figuram alternadamente ,e às vezes ao mesmo tempo, o pai, o artista e o nome da divindade). Quanto a Todas estas mulheres, longe de ser um filme aberrante ou marginal na obra de Bergman, inscreve-se abertamente na linha deste pequeno filme: aparentam-se com efeito seus movimentos dissonantes e sua coreografia cadenciada , certa jovialidade pessimista, o excesso e a estilização de suas figuras. Os conjuntos e os tableaux que as criaturas que evoluem retomam periodicamente em torno do caixão do professor evocam estes movimentos de auto-expiação aos quais finalmente consentem em obedecer, e que precipitam os sobressaltos falsamente libertadores das vítimas que participam da armadilha do professor.
Demarcar esta gravitação esbaforida em torno de um silêncio, de uma ou várias vítimas na iminência de serem tragadas pela danação, este é o propósito de Bergman a partir daí ( Persona é o filme que propriamente destila a impressão da queda final no abismo).A reação de Karen, ao descobrir no diário de seu pai que ele não pode se impedir de observar com interesse a deterioração de seu psiquismo é um esboço en mineur do movimento de ruptura que afeta Persona no momento em que Alma se apercebe de que a atriz, protegida por seu silêncio, a vigia e se deleita com seu tormento. Estes casamentos perigosos, estes transbordamentos do ser, estes jorros de palavras duras, indispensáveis à sobrevivência do Outro ligam ( raccordent) os filmes de Bergman ao tema do vampirismo. Um silêncio absorve e reabsorve uma palavra através da qual o Outro se esvazia e se rompe, ao entregar-se. Não nos espantemos enfim ao ver se operarem estranhas interferências entre o vampirismo e o cristianismo. Em Bergman, Deus é o vampiro supremo, aquele que disseminou seu sangue, sua substância, mas sobretudo que espalhou sua palavra pelo mundo, distribuiu seus germes nocivos em um movimento de ilusória generosidade, cujo poder se reativa durante a comunhão, quando os fiéis absorvem seu corpo e seu sangue. Mesmo assim, este estado de possessão do crente ( ou tomada de posse: prise de possession) não é o mais pernicioso. O verdadeiro horror acontece quando a divindade silencia, e as vítimas contaminadas não reencontram mais seu sabor, quando se faz sentir a ausência e a privação que conduzem os fiéis à busca de seu mestre e senhor, a segui-lo em sua retração, a se perderem em sua cripta de proteção e de recuo. Ainda mais que na alusão ao Deus-aranha de Através de um espelho, ou no abandono desolador de Os comungantes, a fulgurância do plano da crucificação da mão, no começo de Persona, conjuga os dois grandes temas mortais de sua obra.


É preciso retomarmos sempre uma mise en garde2 , no sentido de que se não tomemos o que ficou aqui descrito por um catálogo ou inventário de temas e obsessões no aprofundamento dos quais Bergman se empenharia hoje. Se fosse apenas assim- se a vertigem da queda, a ausência, a perda e a dissipação fossem os únicos temas a serem evocados a propósito de seus filmes- ,e se mesmo se, assim sendo considerados, eles não participassem intimamente da matéria da narrativa, tanto quanto da própria, correríamos o risco de fazer Bergman recair sob a reputação desagradável de “cineasta de idéias”. Ora, Bergman se coloca contra este clichê exatamente na medida em que as forças da “desapropriação autoral” afetam estruturalmente seus últimos filmes. Não que se manifeste neles uma abstração cada vez mais marcada, este ressecamente e gosto por agenciamentos matemáticos através dos quais uma convenção deseja que se reconheça um autor que chegou à maturidade. Não percebemos, do primeiro ao último filme, nenhum desperdício importante de conteúdo, nenhuma “desencarnação” em proveito de uma ordem estritamente relacional das figuras ou de uma acuidade gráfica: pensemos, neste sentido, na presença plena e opressora dos corpos, no calor e na umidade de O silêncio, ou na acumulação de incômodos e de entraves físicos que atormentam os personagens de Os comungantes ( Luz de inverno). Parece-me apenas que o espaço e a luz onde se dispõem os corpos sofreu uma mudança. Como se um universo esférico, denso e saturado, estreitado sobre sua plenitude e seu peso tivesse pouco a pouco sido submetido à forças de disjunção, eriçado de lacunas, esvaziado, penetrado por um poder de dissolução, disposto em uma espécie de concavidade voltada para nós, tomado em um movimento de arruinamento que teria conservado intacta uma única plataforma, sobre a qual as criaturas se disporiam como fantasmas. Fantasmas agitando-se no precipício da obra e designando como obra- como o tema e o próprio perigo da obra- esta zona branca onde os personagens não mais existem. Por longo tempo mantidos no limiar dos filmes, as forças silenciosas e o poder de gerar o vazio foram insidiosamente deslizando na própria textura da obra, dissipando os seus volumes, borrando seus contornos, tornando menos nítidos os seus relevos e menos precisas suas fronteiras.

Concebemos então que os filmes cuja proposta está em jogar com o risco destas ameaças escapam à certeza psicológica, , e que os próprios filmes sofrem esta “regressão” que ocupa em sua totalidade a obra de Bergman. O silêncio, o mutismo, não são mais acordados a algum personagem em particular. A cadeia metafórica onde se alternam as figuras do pai, de Deus e do artista não admite mais nenhum destes três termos como autoridade superior ( durante um longo tempo, acreditou-se que a figura divina, ou sua ausência, fossem a instância suprema da obra bergmaniana e sua transcendência). Nenhuma precedência é mais acordada a um dos termos sobre outro, cada termo aparecendo como um acidente passageiro ou a figuração momentânea de um poder mais profundo, neutro, impessoal, indiferenciado.

Se em O Rosto, o ilusionista Vogler ( nome que é o mesmo de Elizabeth em Persona) cultivava o silêncio, era, confessava ele ao fim do filme, por não estar seguro de seus poderes de mágico. Desde então, o silêncio em Bergman não é mais designado como um poder, um atributo do qual qualquer um disporia a seu bom grado; agora, ele excede a decisão e a escolha, torna-se este poder através do qual aquele que é por ele afetado sofreria o mesmo grau de soterramento espiritual e regressão que o silêncio provocara no Outro.A força de apelo e de retirada ( retrait) 3 submete à sua lei tanto aquele que padece da mudez quanto aquele que fala diante dele. A atitude da atriz em Persona não se motiva. As explicações , tanto do médico- que evita se identificar com as opiniões de um meio medíocre- quanto de Alma, ditada pelo orgulho, são do domínio da psicologismo. E esta não é a armadilha menor deste filme- simular o silêncio de Elizabeth como algo advindo por vontade própria dela, silêncio decidido e guardado, acontecido, palavra bloqueada-, depois reduzir a nada esta interpretação, revelando este silêncio como aquele que não se pode guardar( deter a guarda), que escapa e submerge, fusiona por todas as partes, silêncio em direção ao qual remontamos como à fonte culminante de toda linguagem, silêncio anterior à toda palavra.

Refiramo-nos aqui a um texto de Bergman onde ele conta o terror que lhe causava, quando era vítima de uma doença infantil, uma cortina que balançava. ( O que é fazer filmes?, Cahiers du cinéma, número 61, p.16): “ Era uma cortina preta, dessas mais comuns mesmo, que eu via no meu quarto de criança, na aurora ou ao crepúsculo, quando tudo adquire vida e se torna um pouco assustador... Era sobre a superfície que as coisas se encontravam: nem homens bons, nem animais, nem cabeças, nem rostos, mas coisas para as quais não existia nome!...Elas eram implacáveis, impassíveis e assustadoras...”
É na tentativa de reencontrar estas formas inomináveis, esta indistinção originária onde se reabsorvem todos as figuras que o autor se esforça hoje. Lugar aterrorizante, núcleo onde se desfazem as significações, zona de a-simbolização primária. O sem-figura, o sem-rosto, falando propriamente o inqualificável. Indiferenciação primitiva que não constitui o retorno à unidade- onde tudo viria a se resolver e se apascentar, na plenitude do Único-, mas o sem-coerência, sem-certeza. As horas que afetam Bergman, aurora e crepúsculo, são- além das propícias à formação e à dissolução dos vampiros-, as horas onde ainda não se efetuou a divisão das luzes, onde ao mesmo tempo o dia cai e a noite ascende.
Ao fim, restaria apenas, para a compleição do processo, tender à própria dissolução. Trabalho côncavo que se efetua em muitas regiões em Persona: inscrição do filme em uma projeção de filme,” invagination” 4 da narrativa em si mesma ( o campo-contracampo já célebre onde o mesmo texto se encontra escutado por aquela que fala e dito por aquela a quem este se dirige), ameaça de interrupção marcada pela “queimadura” da película no exato momento de seu desenrolar, a obra esboçando nesta inscrição o movimento de se abismar em sua própria fissura. Momentos onde se confirma a relação direta de Bergman a Murnau como cineasta do horror, mas cineasta onde a obra se destinaria a tornar-se o próprio horror.


Jean Narboni, Le festin de l’araignée, Cahiers du Cinéma, 193, setembro 1967
Tradução: Luiz Soares Júnior

Notas do tradutor:

1. Slapstick: Tipo de comédia, muito comum no cinema mudo, envolvendo ações tresloucadas e intensa violência física. Mack Senett, Fatty Arbuckle e The Keystone Cops foram alguns de seus representantes mais famosos ( e mais esquecidos hoje).

2. Pôr-se em guarda contra, defender-se de.

3. Retrait: a palavra é usada aqui no sentido de uma metáfora que indica o poder movediço, de “retirada de cena” que a força superior exerce sobre o personagem, como se este tivesse sido “sugado” para o interior da cripta do vampiro, para fora do campo – o caráter sinistro da expressão e a analogia com filmes de terror não me parecem casuais- por uma força misteriosa, e sobretudo silenciosa, irrepresentável. Qualquer analogia igualmente com a pulsão de morte freudiana também não me parece mera coincidência.

4. Invagnation: Em português: intussuscepção. Termo médico que designa a incorporação de um segmento do intestino numa região mais profunda do mesmo. No caso, a narrativa incorpora ( ou deglute) a si mesma, em Persona.

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