A REGRA DO JOGO 1939 ( França) ( cópia restaurada: 110’).Prod: N.E.F. Realização: JEAN RENOIR. Roteiro: Jean Renoir. Foto: Jean Bachelet. Música: Roger Désrormières, Mozart, Monsigny, Chopin, Saint-Saens, Vincent Scotto, Johan Strauss, etc. Dec: Eugène Lourié. Intérpretes: Marcel Dalio ( marques Robert de la Chesnaye), Nora Gregor ( Christine), Roland Toutain ( André Jurieu), Jean Renoir ( Octave), Mila Parely ( Geneviéve de Marrast), Julien Carette ( Marceau), Gaston Modot ( Schumacher), Paulette Dubost ( Lisette), Pierre Magnier ( o general), Odette Talazac ( Charlotte de la Plante), Piewrre Nay ( Saint-Aubin), Roger Forster ( o homossexual), Nicolas Amato ( o sul-americano), Richard Francoeur ( La Bruyère), Claire Gerard ( Mademoiselle de la Bruyére), Anne Mayen ( Jackie), Corteggiani (Berthelin), Eddy Debray ( o mordomo), Larive ( o cozinheiro), Lise Elina ( a repórter), André Zwobada ( o engenheiro de Caudron).
Insucesso comercial notório quando de seu lançamento e de seu primeiro relançamento em 1945, é sem dúvida o filme de Renoir que foi sucessivamente mais atacado e louvado. Não apenas o público não o compreendeu e amou durante anos, mas até os anos 50 os principais historiadores , em seus comentários sobre o filme, mesclaram aos elogios gerais o seu veneno. Bardèche fala de “estranha miscelânia”, Sadoul de “incoerência”, “obra desigual”, Charles Ford de “glória um pouco usurpada”. Em 1945, quando o filme foi relançado, alguns, como Charles Charensol, ainda não tinham se desarmado de suas invectivas de antes da guerra, e até lamentavam a reaparição do filme: “A regra do jogo foi realizado às vésperas da guerra e hoje em dia estaria esquecido se não tivessem a infeliz iniciativa de ressuscitá-lo”, escreve Charensol, unindo a indignação pública do censor ao truísmo de um La Palice.
Vinte anos mais tarde, A regra do jogo será quase que unanimemente considerado como o melhor Renoir e um dos maiores filmes franceses. Nesse ínterim, os cinéfilos do pós-guerra haviam descoberto o filme, haviam-no visto e revisto nos cine clubs, tão influentes na época. Este é um dos numerosos exemplos de reputação criada pelos cinéfilos contra a crítica estabelecida oficial dos “profissionais” e dos historiadores. Nesta época, o filme é frequentemente amado e descrito como um meteoro caído do céu no meio da produção corrente da época, produção esta com a qual ele não teria nenhuma relação, semelhança nem medida comum. Este ponto de vista, completamente errado, deve ser colocado em relação com os preconceitos nutridos pelos cinéfilos do pós-guerra e dos anos 50 em relação ao cinema francês, que eles conheciam muito mal aliás.
A partir dos anos 70, este cinema é redescoberto, re-estimado e, desde então, apercebemo-nos de que A regra do jogo, longe de ser uma exceção na produção da época, pertence, pelo contrário, a uma longa e rica linha de filmes que descrevem a sociedade do tempo segundo uma visão crítica e panorâmica, apoiando-se sobre uma série de personagens, pertencentes a todas as classes.
Quer se tratassem de filmes em formato de sketches, ou fossem eles assinados por Guitry ( Ils etaient neuf célibataires), Yves Mirande ( Café de Paris, Derrière la façade) ou Duvivier ( Um carnet de bal), estes filmes mesclavam o humor à crueldade, declinando, sob todos os tons, o seu pessimismo; e todos, com uma lucidez mais ou menos aguda, têm a consciência de descrever o crepúsculo de um mundo. Podemos mesmo encontrar no argumento de um desses filmes ( Sept hommes... une femme, de Yves Mirande, 1936) uma fonte possível para o roteiro de A regra do jogo: uma jovem e rica viúva reúne em sua mansão sete pretendentes ( artistas, aristocratas ociosos, financista, empresário, etc) para escolher aquele com quem ela se casará. Cansada das mentiras, da cupidez e vulgaridade dos pretendentes, ela vai rejeitar a todos. Antes disso, para diverti-los, ela organizara uma partida de caça, e o filme contém planos quase idênticos aos de Renoir. Constantemente, se estabelece um paralelismo entre o mundo dos patrões e dos empregados. Trata-se, é bom que se diga, de um dos filmes mais preguiçosos e mal-sucedidos de Mirande, e aqui não se trata de compará-lo,no plano criativo, à Regra do jogo. Mas a semelhança de ambos os panoramas diz muito acerca do pertencimento de Renoir a um filão em voga na época. De uma maneira geral, estes filmes tiveram grande sucesso. E o público, longe de se mostrar desorientado, apreciava sua profusão dramática, suas rupturas de tom, seu niilismo mais ou menos envolto em piada. Como explicar então o insucesso total de Renoir no interior deste gênero? Alguns consideraram para este fracasso causas externas, como o lançamento excessivamente tardio do filme, às vésperas da guerra. Quanto às causas internas para o insucesso, elas são tão numerosas que hesitaríamos em enumerá-las, caso o gênio específico do filme não fosse melhor explicado por algumas. Entre elas, pode-se citar em primeiro lugar este parentesco tão profundo com uma tradição literária que vai de Marivaux a Beaumarchais e Musset, que embora pudesse seduzir a crítica, deve ter assustado o público ( aliás, um dos primeiros títulos do filme seria Os caprichos de Marianne).
Em seguida, há esta distribuição de atores , variada mas muito insólita e às vezes discordante. A melancolia desfalecente, indecisa de Nora Gregor,- princesa austríaca que havia interpretado no Michael de Dreyer e em numerosos filmes alemães e austríacos , antes de aparecer pela primeira vez aqui em um filme francês- certamente decepcionou o público, assim como a volubilidade desajeitada e estranha de Renoir no papel de Octave, personagem que contém em filigrana fantasmas de ordem autobiográfica. Será que foi esta discordância que impediu o público de aplaudir as interpretações mais clássicas de um Carette ou de uma Paulette Dubost?
Durante a preparação do filme, este elenco sofreu várias modificações: o papel de Nora Grégor estava previsto para Simone Simon, o de Renoir para seu irmão Pierre, o de Dalio para Claude Dauphin, o de Roland Toutain para Gabin e o papel de Modot para Fernand Ledoux.
Mas certamente o fator de maior rejeição do público foi esta gravidade de tom que progressivamente se instala na intriga e pouco a pouco recobre suas peripécias burlescas e “guignolesques”. Com os personagens incongruentes, inocentes, vulneráveis, sinceros de Jurieu e Octave, tão deslocados na universal mentira social que estigmatiza o filme, Renoir abolia, em um só movimento, o cinismo, a distância e o recuo que o público apreciava nos afrescos irônicos de Mirande. Distância e cinismo que, para o espectador da época, eram parte integrante do seu prazer. Privado desta distância, insensível à sábia construção da intriga, às suas referências permanentes a uma tradição literária, o público aderiu ainda menos ao filme ao perceber neste a atmosfera de uma confissão íntima, sobretudo quando esta exprime a impotência de certos seres ( Octave, Jurieu) para se inserir no jogo do mundo.
As qualidades formais do filme só serão apreciadas no pós-guerra. Então, louvar-se-á sem reserva esta virtuosidade espantosa no uso da profundidade de campo, dos planos longos, dos movimentos de câmera, complexos e fluidos, que transformam um décor teatral em uma seqüência contínua de espaços por onde desfila, como em uma mascarada, toda uma sociedade. Longe de lamentar que este vaudeville, esta comédia de erros se transforme -e se congele- em uma tragédia grotesca e razoavelmente inquietante, um novo público de cinéfilos, de amadores passionais e de cineastas aprendizes verá em A regra do jogo a síntese genial de um artista que utiliza a fundo a escritura cinematográfica, em seus aspectos igualmente visuais e literários.
Nota complementar: Renoir é por excelência um “autor de obra”: seu gênio brilha, é claro, em cada um de seus filmes, mas ainda mais na reunião dos filmes, em sua confrontação. Se ele nos espanta por ser o autor de A grande ilusão ou da Regra do jogo, ele nos causa ainda maior admiração por ter realizado ambos os filmes e de ter desta forma tocado a todas as camadas do público, como um escritor que fosse capaz de escrever ao mesmo tempo Os Miseráveis e A Cartuxa de Parma. A história das cópias de A regra do jogo testemunha a vicissitude das recepções do filme. Em 1939, sai uma cópia de 113 minutos, já reduzida a 100 minutos. Em vista das reações do público, corta-se ainda uma dezena de minutos do filme e o papel de Octave é amplamente amputado. Em 1945, relança-se sem sucesso uma cópia curta. Durante mais de 10 anos circularão cópias de 90, 85 e 80 minutos. O negativo original foi destruído em um bombardeio em Bolonha, em 1942. Em 1965, apoteose da reavaliação cinefílica do filme, lança-se, aos cuidados da Sociedade de Grandes Filmes Clássicos, uma cópia bem completa de 3000 m ( 110 minutos), estabelecida desde 1958-9 por Jean Gaborit, Jacques Marechal e Jacques Durand a partir de uma cópia excessivamente longa, reencontrada em 1946 e de um vasto stock de cortes. O esforço beneficiou-se dos conselhos do próprio Renoir, e o filme conhece -enfim- o sucesso.
Dicionário de filmes, Jacques Lourcelles.
Tradução: Luiz Soares Júnior.
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