quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

CIDADÃO KANE. 1941, USA ( 119’) Prod. RKO/Mercury Theatre Production ( Orson Welles). Realização: Orson Welles. Roteiro: Herman J. Mankiewicz, Orson Welles. Foto: Gregg Toland. Música: Bernard Herrmann. Dec: Van Nest Polglase, Perry Ferguson, Darrell Silvera. Intérpretes: Orson Welles ( Charles Foster Kane), Joseph Cotten ( Jedediah Leland), Dotothy Comingore ( Susan Alexander Kane), Everett Sloane ( Mr. Bernstein), Georges Coulouris ( Walter Parks Thatcher), Ray Collins ( James W. Gettys), Ruth Warrick ( Emily Norton Kane), Erskine Sanford ( Herbert Carter), William Alland ( Jerry Thompson), Agnes Moorehead ( Mrs. Kane), Richard Baer ( Hillman), Paul Stewart ( Raymond).




Tamanho foi o impacto de Cidadão Kane em seu lançamento e no imediato pós-guerra que desde então ele foi sempre citado- e ainda o é- entre os 10 melhores filmes da história do cinema em listas feitas pelos historiadores, críticos e cinéfilos. Ainda muito recentemente, no “The top 100 movies” de John Kobal, Londres, Pavilion Books, 1989, que reúne quatrocentas listas de filmes de todos os países, Cidadão Kane chega em primeiro lugar.
Uma grande parte- e sem dúvida parte essencial- da originalidade do filme já existia “no papel”, antes mesmo do primeiro dia de filmagem. Ela diz respeito à construção do filme, que compreende ao menos três elementos novos. Em primeiro lugar uma espécie de sumário, de lista de temas do filme aparece no cine jornal que resume no começo o filme da vida e a carreira de Kane. Esta indica os principais pontos a serem desenvolvidos pela intriga. Aqui, originalidade absoluta: em nosso conhecimento, nenhum outro filme comportou até então este tipo de introdução. Segundo elemento novo: a utilização sistemática e múltipla de flashbacks confere a Cidadão Kane a estrutura de conjunto de um filme-investigação (enquéte).
Estes flashbacks emanam de cinco narradores diferentes, contactados pelo jornalista-inquiridor. Um desses narradores, o tutor de Kane, Thatcher, que está na origem do primeiro dos flashbacks, a princípio só nos aparece como autor de memórias lidas pelo jornalista; mas nós o vemos em carne e osso em outro trecho do filme. Desvio imprevisto, revivendo com virtuosismo a curiosidade do espectador: o primeiro narrador encontrado pelo jornalista ( Susan Alexander) recusara-se a falar então, e seu testemunho só aparece em quinta posição no conjunto de 6 flashbacks.
Embora não fosse o primeiro filme a utilizar o flashback - longe disso, aliás, pois este procedimento aparece com força na história do cinema com The Power and the glory , Thomas Garner, de 1933, de William K. Howard sobre um roteiro de Preston Sturges, filme que apresenta analogias de estrutura e conteúdo com Cidadão Kane; além disso, o flashback também fora usado em Trágico amanhecer, 1939, de Carné-, o filme de Welles marca uma data muito importante na utilização deste meio.
Terceiro elemento novo: embora a maioria das seqüências contidas nos flashbacks se completem, como é normal ocorrer, em relação aos eventos que relatam, algumas se repetem e dão-nos diferentes pontos de vista sobre o mesmo evento: a primeira sequência de Salambô, por exemplo, é narrada sucessivamente por Leland ( quarto flashback) e por Susan ( quinto flashback). Este tipo de repetição ou variação de pontos de vista sobre um mesmo evento passado aparece, sem dúvida, pela primeira vez em um filme. A posteridade deste procedimento será relativamente abundante: citemos as célebres seqüências de Rashomon de Kurosawa ( 1951) , onde este procedimento constituirá a própria base do filme, e A condessa descalça de Mankiewicz ( 1954).
Esta construção extremamente inovadora de Kane, no entanto, apresenta falhas, tanto no plano da coerência quanto em relação ao equilíbrio das partes. Depois de ter mostrado seus personagens unicamente através de testemunhos, escritos, cine jornais, o próprio Welles renega este procedimento e torna-se novamente um verdadeiro “narrador-deus”, com o propósito de revelar ao espectador, na última sequência e por meio de uma narração direta, o significado de “Rosebud”.
De outro lado, a importância acordada à descrição de Kane como um Pigmaleão fracassado ( em suas relações com sua segunda esposa) parece muito excessiva, em relação a todos os outros aspectos da vida de Kane. De qualquer modo, esta construção impressionou muito tanto o público quanto a crítica.
O relevo adquirido pela estrutura do filme se deu provavelmente ao fato de que o personagem que esta se encarregara de retratar não estava à altura da sutileza estrutural do filme, que este carecia singularmente de substância.
É aí que o filme parece muito inferior à sua reputação. Kane, o personagem, é sem dúvida o mais belo “albergue espanhol” da história do cinema, no sentido mais negativo da expressão: um verdadeiro balão inflado, um envelope vazio de onde a principal realidade provém de dois elementos exteriores. O primeiro é a relação que mantém com sua “figura chave” ( William Randolph Hearst), e que lhe dá, já que Hearst é um magnata da imprensa e manipulador da opinião pública americana, um certo valor sociológico. Mesmo que Hearst não seja a única inspiração para Kane- cita-se também Basil Zaharoff, Howard Hughes, etc,-, a sua biografia e a de Kane são suficientemente próximas e ricas em similitudes para que Kane possa ser considerado uma tradução cinematográfica de Hearst.
O segundo elemento exterior é a semelhança que Kane entretém com o próprio Welles: megalomania, vontade constante de se afirmar diante de si mesmo ou do mundo, tentação e fascinação do inacabado, etc. No plano dramático, o mais belo acerto de Welles foi suscitar para este vencedor a compaixão que o público habitualmente experimenta diante dos perdedores ( loosers). (A notar que o próprio filme, à imagem de Kane, perdeu muito dinheiro em seu lançamento, apesar do sucesso, e só tornou-se lucrativo ao longo dos relançamentos).
Se certos autores, como Sartre em seu célebre artigo no “Écran Français” ( de 1 de agosto de 1945), em parte renegado pelo próprio, criticaram o filme como intelectualizante e estetizante, a reação destes deve ser relacionada com o caráter paradoxalmente inconsistente de Kane “enquanto herói de ficção”. Kane é, com efeito, quase que totalmente desprovido de espessura romanesca ou psicológica. Toda força do personagem reside em seu mito, que faz dele um colosso com pés de barro.Ao longo de sua carreira, Welles vai criar e interpretar personagens mais ricos, como Arkadin em Grilhões do passado e o policial Quinlan em A marca da maldade.
No plano visual, Cidadão Kane contém uma série de procedimentos ( curtas focais, plongés e contra-plongés, presença dos tetos dos cenários no quadro, objetos em primeiríssimo plano, etc) que Welles não inventou, mas dos quais ele fez as figuras de uma retórica barroca que lhe pertence plenamente de direito.
Este é o lugar de colocar duas questões. Cidadão Kane é um filme revolucionário? Um filme moderno? Os lugares comuns que circulam através da maioria das histórias do cinema impõem-nos de responder afirmativamente. Mas isto talvez seja incorrer em precipitação.

Estilísticamente, a dívida de Welles com o passado é considerável: influência do expressionismo nos cenários, iluminação e até mesmo no esquematismo de certos personagens secundários, reforçado pela mediocridade na direção das atrizes ( os atores masculinos, ao contrário, estão excelentes); influência do cinema russo na fragmentação analítica e voluntária da construção ( jamais radicalizada desta forma antes) e do découpage ( corte) propriamente dito. Sob este aspecto, Cidadão Kane, pelo retorno às fontes russas, parece justamente o contrário de um filme moderno, o cinema moderno - Lang, Preminger, Mizoguchi- caracterizando-se ao contrário como sintético e “ d’une seule couleé” ( de um fôlego só, uma corrente única), procurando fazer esquecer ao máximo a presença e o papel da montagem, neste desejo irrealizável de um filme composto por um único plano longo e perfeitamente deslizante ( lisse).
A revolução wellesiana só tem sentido, então, em relação a certos hábitos hollywoodianos. Resta a questão da profundidade de campo e do emprego do plano-sequência, figuras que Welles utiliza e que são as bases do cinema moderno. Mas nele a profundidade de campo é empregada de maneira tão demonstrativa, tão “visionária”( voyante) que ela chama a atenção mais para si do que para a sucessão de planos do découpage tradicional ( sem ser por isso mais rica de sentido).
No que se refere ao célebre plano em que Kane descobre a tentativa de suicídio de Susan ( com o copo em primeiro plano), considerado como exemplo perfeito do plano-sequência usado com profundidade de campo, longe de corresponder a um emprego realista, global, sintético, totalizante do espaço cinematográfico, ele é resultado- sabe-se hoje em dia- de um truque no interior da câmera. O plano foi primeiro filmado com o foco sobre o primeiro plano iluminado, enquanto que o plano de fundo estava escurecido e invisível, depois voltaram a película para trás para refilmar o plano novamente, agora com o primeiro plano no escuro e o foco sobre o plano de fundo iluminado. Welles aqui se revela, como Kane, um manipulador e um prestidigitador sem igual; e as principais vítimas de sua manipulação foram seus asseclas, na primeira linha dos quais figura André Bazin. Depois de ter julgado “natural” a mise-em-scéne deste plano, Bazin fala do “realismo” deste découpage em profundidade. “Realismo sob qualquer aspecto ontológico, escreve ele, que restitui ao objeto e ao cenário sua densidade de ser, seu peso de presença, realismo dramático que se recusa a separar o ator do cenário, o primeiro plano dos planos dos fundos, realismo psicológico que recoloca o espectador nas verdadeiras condições da percepção, a qual não é jamais totalmente determinada a priori” ( Em André Bazin: Orson Welles, Éditions du Cerf, 1972, Ramsay).
Nos três domínios onde Bazin o situa, este dito realismo não é nada mais que o produto das manipulações de Welles, que tem por objetivo aprisionar a realidade em um cadre do qual a rigidez, o extremo artifício, o caráter coercitivo e congelado saltam aos olhos, mesmo se ignorarmos o modo como o plano foi fabricado. É aliás uma espécie de aberração falar de realismo, e ainda mais ontológico, a respeito de Welles, que dele se distancia tão radicalmente, por sua natureza barroca, sua vocação de prestidigitador e de mestre dos artifícios, seu gosto do disfarce, da maquiagem e dos elementos postiços. Estes últimos aliás são frequentemente detestáveis no Cidadão Kane, embora tornados necessários pelo fato de que ele encarna com vinte e cinco anos um homem entre vinte e seis e setenta.
Sartre escrevia: “Tudo é analisado, dissecado, apresentado na ordem intelectual, em uma falsa desordem que é apenas a subordinação da ordem dos eventos à ordem das causas: tudo é morto. As invenções técnicas do filme não são feitas para restituir a vida. Há admiráveis fotos (...). No entanto, tem-se a impressão freqüente de que a imagem “prefere a ela mesma” ( se prèfere); somos constantemente atropelados por essas imagens excessivamente rígidas, mascaradas por excesso de cálculo (grimaçantes à force d’être travaillées). Como um romance no qual o estilo foi radicalizado e levado para o primeiro plano, enquanto os personagens foram esquecidos “ ( Este texto figura na excelente obra de Olivier Barrot: “L’écran français Reunis, 1979).

Última questão: Cidadão Kane teve uma influência preponderante sobre a evolução da mise-em-scéne cinematográfica? Aí também a maioria dos historiadores respondem afirmativamente, e alguns de uma forma exagerada, que beira o delírio. Estéticamente, a influência concreta do filme deve ser relegada ao filme noir, por meio de sua construção de “filme-inquérito” e por sua temática da nostalgia da infância, do paraíso perdido, bem resumido pela palavra-chave Rosebud. É com razão que Robert Ottoson, no prefácio a seu “Reference Guide to the American Film Noir 1940-1950”, coloca Cidadão Kane entre os oito fatores principais que determinaram o nascimento do gênero noir ( depois do expressionismo alemão, o realismo poético francês, o romance policial “hardboiled”, o uso das externas como elemento de economia no cinema do pós-guerra, o clima de desespero engendrado pela guerra e pela dificuldade dos antigos soldados de se readaptarem socialmente, o interesse pela Psicanálise e por Freud , e por fim o neo-realismo italiano).
Tratando-se de um cineasta essencialmente barroco, a influência de Welles foi forçosamente muito limitada, os barrocos tendo sempre representado uma ínfima minoria no cinema de Holywood e outros. Fora sua influência sobre alguns pequenos mestres que viveram em sua órbita (Richard Wilson, Paul Wendkos), Welles marca, em uma certa medida, a geração de novos cineastas americanos dos anos 50: Aldrich ( sobretudo em A morte num beijo), Nicholas Ray e Fuller.
Mas onde Cidadão Kane teve o papel mais determinante foi na forma através da qual o público, e sobretudo os cinéfilos e cineastas iniciantes, passou a olhar o cinema e o lugar do metteur-em-scéne no interior da criação cinematográfica. Welles era justamente o contrário de uma eminência parda; embora fosse um homem empreendedor , buscando sempre provar aos outros o seu próprio gênio, acabou por representar o emblema espetacular do metteur-em-scéne-autor. Seria ele considerado assim se não tivesse também representado no filme o papel principal?
Para o primeiro filme deste jovem de 25 anos, que já tinha detrás de si as carreiras de pintor, jornalista, ator, diretor de troupe teatral, homem de teatro e de rádio, a RKO confiou um grande orçamento e uma total liberdade, inclusive o controle- privilégio supremo- sobre a montagem final.. Sob este prisma, Cidadão Kane, antes mesmo do primeiro dia de filmagem, já era uma bomba. O gênio publicitário e auto-publicitário de Welles, que impressionou tantos cineastas da Nouvelle Vague francesa, fez o resto. A tal ponto que se esqueceu, durante mais de 30 anos, a contribuição essencial do co-roteirista Herman Mankiewicz, irmão mais velho brilhante de Joseph L., que ofuscava tanto o brilho de seu irmão diretor que este declarou um dia: “ Eu sei o que vão inscrever no meu túmulo... aqui jaz Herm... ops, Joe Mankiewicz”.
De qualquer forma, uma grande parte da substância e da construção do filme, assim como o imortal “Rosebud”, pertencem a Herman J. Mankiewicz, que escreveu sozinho os dois primeiros esboços do roteiro. ( Não podemos minimizar igualmente o papel do operador Gregg Toland e do músico Bernard Herrmann, mesmo que o trabalho deste aqui seja apenas um pálido esboço do que realizará mais tarde para Hitchcock ou Mankiewicz).
Em conclusão, poder-se-ia quase dizer que Cidadão Kane foi mais importante para a história da crítica cinematográfica que para a arte do cinema propriamente dita. Cidadão Kane ensinou muitos espectadores a ver melhor os filmes e a melhor julgar a respeito da importância do metteur-em-scéne no interior desta criação coletiva que é a realização de um filme. Evidentemente, eles teriam chegado a esse estágio de apreensão dos filmes sem ele.
Contrariamente aos que pensam que Welles modificou profundamente com este filme o status do realizador em Hollywood, excetuando-se Ford, Hitchcock e 2 ou 3 diretores, a maioria dos grandes metteurs-em-scéne hollywoodianos ( Lang, Walsh, Tourneur, Sirk) permaneceu relativamente na sombra. Assim como Welles, aliás, antes e depois de Kane. E para a maioria deles, esta discrição lhes era conveniente. Por que necessitariam eles de Welles para se afirmar?

Dicionário de Filmes, Jacques Lourcelles.

Traduzido por Luiz Soares Júnior.

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