quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

A Carruagem de Ouro, Jean Renoir 1953

A obra-prima absoluta de Renoir. O mais civilizado e o mais europeu de todos os filmes. Os motivos de admiração aqui são inumeráveis: construção em atos ainda mais hábil, em sua genial simplicidade, que a de A regra do jogo; utilização refinada e sábia da profundidade de campo no teatro, no palácio do rei e sobretudo no apartamento de Camilla; esplendor harmonioso das cores, e esta luz dourada e clara que desde então não mais se viu na tela. É muito mais fácil amar este filme que lhe penetrar os segredos. Sem dúvida, estes se encontram no caráter proteiforme de Camilla, retrato ao mesmo tempo da condição humana segundo Renoir, do próprio autor, de suas aspirações e visão de mundo. Proteu: símbolo e encarnação do desejo faustiano de viver várias vidas. Camille sente com plenitude, com uma intensidade avassaladora, o apelo da exuberância da vida; mas ela lhe experimenta também a frustração. Uma vida é muito pouco. Todas as vidas é impossível. Entre ambas, ou melhor, para além de ambas, há o teatro, esta miragem encarnada, este remédio à melancolia e à todas as frustrações.

Certo, Renoir presta uma homenagem ao teatro, mas seria um erro reduzir o sentido do filme à esta homenagem. O teatro aparece aqui, evidentemente, como realidade concreta (Renoir não exprime nada que não passe em primeiro lugar pelo concreto), mas sobretudo como metáfora. Ele é o receptáculo de todas as aspirações humanas à totalidade, à plenitude; é o espelho da alma sensível e ávida da heroína e de seu autor. O teatro representa uma ultrapassagem, embora real, da realidade: o teatro ou a metafísica preferida do Ocidental. Síntese de arte plástica e de arte dramática, música e confissão íntima, A carruagem de ouro é um desses filmes que permitem crer na superioridade do cinema sobre todas as outras artes.

Nota: O filme existe em três versões: italiano, francês e inglês. A versão inglesa deve ser considerada a oficial, já que nela se ouve o som direto da filmagem. No entanto -pois tudo é paradoxo em Renoir-, a versão dublada em francês nos parece muito superior. As vozes são mais variadas, mais pitorescas, mais engraçadas e, se pudermos falar assim, mais concretas. Elas acrescentam à elegância e ironia medidas do diálogo um elemento picaresco do qual não se consegue abrir mão, uma vez provado.Os atores que dublam a si mesmos (Magnani, Odoardo Spadaro) estão ainda melhores na dublagem que no idioma original. Por outro lado, Jean Debucourt, na versão inglesa, é horrivelmente mal dublado. Quanto à versão italiana, ela apresenta o mérito de fazer na Magnani falar em sua língua original. No entanto, enquanto versão dublada, ela parece menos colorida e variada que a francesa.

Jacques Lourcelles, Dicionário de filmes. Tradução: Luiz Soares Júnior.

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