terça-feira, 30 de junho de 2015

O mal cadente



Esta espécie de raiva razoável, esta cólera refletida e metódica que define, desde os primeiros planos, um espaço radicalmente original onde, no entanto, cada um pode imediatamente reconhecer e identificar os demônios de sua própria adolescência- apesar do caráter deliberadamente excepcional da afabulação utilizada- impõe os acentos de uma contestação que sua violência e alcance inscrevem nos rastros de L’âge d’or e de Zéro de conduite: como Buñuel e Vigo, Bellocchio sabe fundir os argumentos de seu terrível acerto de contas no movimento de um poema dramático, e preservar por meio de uma constante ironia o que a tese poderia oferecer de excesso e desmesura. Mas ainda assim seria inutilmente restritivo limitar ‘I pugni in tasca’ a suas virtudes de denúncia como a suas qualidades poéticas. Assistimos à construção precisa de um mundo ao mesmo tempo em que são clinicamente desmembrados os sintomas de decomposição, doenças do corpo e do espírito. A constatação de ruína e de decadência que, através da família visada, tem como objeto a toda uma classe social, se interdita todo recurso a um simbólico romântico, negligencia toda sombra de nostalgia passadista, rejeita toda complacência em relação ao fracasso ou infelicidade; é unicamente pela análise dos comportamentos que Bellocchio organiza e reparte as significações gerais induzidas pelo discurso aparentemente muito particularizado que escolheu seguir. Assim, o caráter passional de sua reivindicação, ultrapassando o obstáculo individualista, cristaliza-se a partir de uma exigência de lucidez crítica pouco comum. E se escolheu abandonar seus personagens ao cárcere desta epilepsia ( haut mal) a que os antigos atribuíam virtudes divinas, é sem dúvida porque a epilepsia- de todas as doenças mentais com certeza a mais espetacular, a mais “teatral”- lhe permitiria unicamente tornar visíveis as crispações e opressões de um mal mais definitivo e secreto de que ela só constitui o traço evidente, a chifra poética: ou antes, a alternância características das crises e calmarias contribui para fazer de Sandro esta testemunha privilegiada de uma decadência de que ele é ora o objeto, ora o instrumento; ele, dentre todos, o ser eleito pelos símbolos contrários que o conduzirão ao abismo, o impossível ponto de encontro de uma extrema lucidez e uma extrema aberração. E jamais a dialética do carrasco e da vítima não foi mais imediatamente sensível senão neste possesso, que porta em si os estigmas de um segredo incomunicável e universal: o segredo de uma infância que é preciso queimar para tornar-se adulto e que, não podendo queimar, ele permite consumi-lo até o êxtase final, onde o surpreende a morte.

Mas o que faz a grandeza sem precedente desta obra de jovem é menos o domínio que lhe permite abraçar, como se jogasse, a totalidade dos mitos retransmitidos pela tragédia grega à toda dramaturgia ocidental, em nossos dias ainda viva; e mais a autoridade insolente com que leva seus personagens a realizar as transgressões mais inconfessáveis: aqui, o fascínio pelas condutas mórbidas não seria suficiente para justificar esta forma de vertigem que ressente o espectador diante da visão, meio horrífica, meio cúmplice do matricídio e do fratricídio cometidos por Sandro. O sentimento que se instaura então só pode ser comparado àquele que nos proporcionam certas páginas de Bataille ( O abade C., e sobretudo História do olho). Este sentimento, nos pareceria que o cinema ( de acordo com sua natureza), e apesar da força de certas transgressões buñuelianas, estava obrigado, se não a negligenciar ou ignorar, pelo menos a transpô-lo com maior ou menos grau de felicidade e de prudência. Ora, Bellocchio, com o chicote na mão, instala-o no coração de seu filme. Não nos enganemos: trata-se de uma agressão cujo alcance não se poderia diminuir ao reduzi-la a qualquer exibicionismo do atroz ou à exposição em uma monstruosa complacência. Muito pelo contrário: aqui, o cinema atinge uma dimensão de contestação até então insuspeitada; o que o filme fere profundamente não é apenas- o que o deixaria no nível do anedótico ou do pitoresco- a concepção burguesa da família ou a calamidade obscurantista de um cristianismo tarado. Não; o que Bellocchio coloca em causa é, de forma mais geral e radical, a duplicidade e a hipocrisia de um humanismo degenerado que preside ainda hoje, apesar de Sade, Freud e Marx, às ações dos indivíduos como aos destinos das nações. ( Michel Foucault dizia, numa recente entrevista: “O humanismo foi uma maneira de resolver em termos de moral, de valores, de reconciliação, problemas que não podiam ser resolvidos. Você conhece a palavra de Marx? A humanidade só se coloca problemas que ela pode resolver. Eu acho que a coisa deve se pôr nos seguintes termos: a humanidade finge resolver problemas que ela não pode se colocar! Nossa tarefa atualmente consiste em nos libertar definitivamente do humanismo, e neste sentido nosso trabalho é um trabalho político”).

É neste sentido também, e isto está implícito, que a obra de Bellocchio pode ser qualificada de política: devemos medir bem, sob esta ótica, a ruptura decisiva que I pugni in tasca marca com as opções fundamentais do neo-realismo. Desta vez, é o homem inteiro, e não apenas o homem social, que está no centro do debate, e é o tema do discurso. Eis a razão pela qual não poderíamos seriamente sustentar que os termos excepcionais através dos quais Bellocchio define o meio que analisa ( epilepsia, matricídio, incesto) poderiam ser completamente outros. “ O homem normal, diz aproximadamente Edgar Poe, possui todas as loucuras, enquanto o louco só possui uma”. E não se constitui no mérito menor do microcosmo descrito no filme apresentar uma inquietante antologia de condutas onde mesmo a “normalidade”mais assegurada não pode deixar de reconhecer alguns de seus traços constitutivos: o narcisismo, a crueldade, a inconsciência só são hipertrofiados para serem melhor identificáveis.

O entrelaçamento de temas e de motivos conjugados em I pugni in tasca é tão rico que é difícil, ao tentar dar conta destes, não soçobrarmos em um fastidioso catálogo de significações: mais aproveitável seria sem dúvida a recensão sistemática das formas utilizadas para levar a termo a convergência dos temas e das imagens. Seria preciso mostrar como Bellocchio faz ressoar menos a inquietude dos tempos fortes ou das cenas espetaculares que das cenas mais “cotidianas”, onde confronta a solidão de Sandro à de uma criança triste ( e um tinteiro versado sobre um caderno de notas é suficiente para indicar o sentido do drama por vir;) como a inacreditável inventividade gestual que sabe obter dos atores enriquece as relações de Sandro, seus dois irmãos, sua irmã e sua mãe até apagar a idéia teórica subjacente;  como os transes do bel canto anunciam e preparam o espasmo final, onde a imobilidade terrível da morte sucede à simulação lírica; como, enfim, a idéia de sacrilégio e de profanação encontra sua formulação exata nas imagens “escandalosas”, desembaraçadas de toda provocação pueril ( o enterro da mãe, destruição dos objetos da família, etc).

Por ter sustentado o rigor de uma ideologia revolucionária por uma forma digna desta, Bellocchio não fez apenas obra de inovador: ele realizou o sonho de todo jovem cineasta, que é o de oferecer à sua geração o espelho onde esta pode ler sua condição. Mas ele não é profeta, nem terapeuta, e sabe que cada qual permanece solitário com seu mal cadente ( haut mal). Uma vez os demônios exorcizados, os outros filmes mostrarão talvez a possibilidade prática de uma libertação. Serão ainda filmes políticos.


Jean André Fieschi, Cahiers du cinéma, 179, junho de 1966

Tradução: Luiz Soares Júnior

terça-feira, 16 de junho de 2015

O caçador inspirado




São várias as relações que Otto Preminger entretém com seus personagens: eis o caso de alguém que desafia a invenção de um roteirista, e a maioria seria irrisória, fosse este o melhor. A questão não é em primeiro lugar a do moralista, mas também seria injusto dizê-la inspirada unicamente por pretextos à mise en scène; é antes a noção de personagem que nos esforçaremos de captar esta ocasião. Comparando entre si os diversos filmes de Preminger, apercebemo-nos menos de certos temas dramáticos que de certos tipos de situações apropriadas para estudar certas reações, a observar certos gestos: a virtude dramática da droga em O homem com o braço de ouro; assim como, em Angel face, da obsessão criminal ou, em Whirpool, do domínio hipnótico consiste em suscitar certas manifestações psicológicas. A independência que estabelecem os filmes de Preminger entre o elemento dramático ( a intriga, a narrativa) e o elemento psicológico ( os gestos, os movimentos, as reações) nos convidam a aprofundar a análise. Se o romancista, se o roteirista aplicado se empenha em mesclar uns aos outros estes elementos, e de apoiá-los uns sobre os outros, justificando por um elemento psicológico desenvolvimentos dramáticos que por sua vez vão propiciar o advento de outras notações psicológicas, tudo se passa aqui pelo contrário- como se Preminger desdenhasse estes jogos de construção e só observasse na intriga a ocasião para provocar gestos que serão aqueles sobre os quais nossa atenção vai se concentrar. Assim, falei há pouco em manifestações psicológicas, e não em psicologia: trata-se de instantâneos, não de estudar a evolução dos personagens. Daí este aspecto particular dos filmes de Preminger: ligações rápidas, modificações de espaço que demarcam muitas arestas no desenrolar da narrativa, a progressão finalmente substituída por uma sequência de cenas fechadas sobre si mesmas e dotadas de sua própria progressão interna, tensão, paroxismo, queda e repouso. Vejamos bem por aí como Preminger ultrapassa o naturalismo, de que possui, aliás, esta fria paixão da precisão, esta recusa em construir os personagens, este gosto em acumular as observações, como o faria um entomologista. Mas enfim, estes grandes insetos são decepcionantes, e eis que ele os enerva e espia seus sobressaltos. O distanciamento que parece impor não passa de uma liberdade que ele se permite de forma suplementar, uma simulação que deixa à presa a ilusão da liberdade: a lonjura da linha ao longo da qual ele capturou sua presa. Não há experiência nem observação objetiva neste domínio: nenhum plano, nenhuma cena de Preminger busca nos persuadir que ele conseguiu.

É sem dúvida devido à consciência aguda deste fato que Preminger busca imprimir a suas obras um equilíbrio, em certa medida inconcebível, entre as exigências contrárias do real e do artifício.
O que mais marca na visão deste homem é a sua inteligência. Por que razão permanece ambíguo? É que esta lucidez não pretende aplicar-se apenas ao exercício mais eficaz de sua arte: ela se impõe refletir sobre os próprios meios desta arte. Parece-me que o gesto criador procede ao mesmo tempo de uma intenção e da esperança que uma nova intenção apareça no gesto, à medida em quer ele se acaba: a imagem nascente no traço, e não apenas pelo traço de uma imagem inteiramente pré-concebida. É esta ultrapassagem do projeto pela criação que Preminger parece mais intensamente buscar na criação.A arte é mais múltipla que impura; o seu modo de ser é a ambigüidade, o mal-entendido- mas aqui a idéia do mal-entendido acompanha-se sem cessar pela noção de que a arte se exprime naturalmente através do mal-entendido-, como se a ferramenta se incorporasse à matéria que forja. É ocioso perguntarmo-nos se é mais questão de estratagema ou de sinceridade; pois se toda criação é engodo, este engodo muda de natureza desde o momento em que se assume e se põe como a regra essencial da criação. Então, o artista só ilude em aparência; é com as aparências que ele ilude para exprimir uma verdade poética e moral. Assim, a ambição de Preminger não me parece fundamentalmente diferente da de Rossellini, seu virtuosismo não sendo mais que uma rede com os fios mais cerrados, jogada sobre acasos concertantes. Mais que ao seu virtuosismo ou a seu gosto do jogo, sou sensível ao que, na sua obra, oculta-se de inquietude e vontade de provocar o invisível, de levar a produzir-se algum encontro fortuito entre a atenção e a desatenção.
Preminger conhece demasiado as fontes de sua arte para se poupar a baixeza do dizer. Ele, portanto, não vai ornar a imagem com uma ambigüidade que a imagem jamais reclamaria, já que esta lhe pertence de pleno e primeiro direito. É uma ambigüidade completamente outra prometida pela presença, distinta e simultânea, do ator e do personagem; a arte do metteur em scène consiste em sublinhar esta distância ( décalage) para levá-lo em seguida a se apagar em alguns instantes privilegiados. Uma cena não é suficiente para obter a inflexão de um olhar, para surpreender o esboço de um gesto retomado ou contrariado, pelo qual o ator ( ou o personagem?) vai se abandonar, se trair. Assim, muitas cenas ( e das mais excitantes) permanecem à margem da ação dramática- ou antes: desenham uma nova ação, mais intensa que a outra. Tudo é adequado nesta perseguição tenaz das manifestações mais frágeis que a câmera captura sobre o ator ausente de seu gesto, como se ultrapassado pela força que o move: sem dúvida Jean Simmons não sabia que interpretava em Angel face, e eu não admiraria tanto Whirlpool se não achasse que a sujeição hipnótica de Gene Tirney é também aquela que Preminger impõe a seus atores. Procedimento extremo, e atores mais nuançados demandam mais sutileza; nenhum hipnotismo para Jean Seberg, mas adivinhamos bem a forma como nosso homem a dirige, manifesta esta mesma intenção de conduzir o ator para além daquilo que tem consciência de exprimir.

Por muito tempo, o objeto desempenhou um papel nestes momentos em que o ator ultrapassava os contornos do personagem. Folha de papel amassado, telefone, disco. Preminger se empenhava em semear objetos sob os passos de seus personagens, com o fito de despertá-los com o choque, e na medida em que um impedimento da matéria corresponde ao abstrato de seus itinerários. Mas unicamente o ator importa, e desde alguns anos vemos este grande metteur en scène dissipar tudo aquilo que poderia tirar a atenção destes, só ensejando enfim exprimir a realidade menos premeditada pelos sortilégios da forma, e de exprimir unicamente pelo ator o real pelo artifício, a tensão pelo repouso, a duração pelos equilíbrios mais transitórios. Ele emprega tanto lucidez quanto retidão. E Cocteau me oferece a mais sagaz das conclusões: “Não é preciso confundir a inteligência astuciosa, pronta para enganar seu homem, e este órgão cuja sede não existe em lugar nenhum, e que nos ensina sem piedade sobre nossos limites. Ninguém pode transcendê-los. O esforço feito o denunciaria. E sublinharia ainda o frágil espaço em torno de nós. É a esta faculdade de nos mover neste espaço que o talento se prova”.

Philippe Demonsablon

Présence Du cinema,11. Fevereiro de 1962

Tradução: Luiz Soares Júnior

quinta-feira, 28 de maio de 2015

O tigre de Argol



Se é estranho que no fim de sua carreira um artista conceba retomar uma obra de juventude, ao menos esperamos vê-lo lançar sobre esta um olhar enriquecido  pela longa experiência. Assim, à primeira vista, são reminiscências de temas inscritos e desenvolvidos em outros tempos que nos tocam neste Túmulo indiano, com uma precisão às vezes espantosa. Subterrâneos, uma multidão de figurantes mascarados de autômatos, danças lascivas, uma atriz com a máscara imóvel e rija, e cujas pálpebras entrefechadas acusam a fixidez do olhar; vocês reconheceram Metrópolis. Um oriente de fantasia, senão de pacotilha, o combate de um homem e de um tigre meio-homem: vocês devem ter reconhecido a terceira parte das Três luzes, como reconhecerão Ministry of fear ou Woman in the window nestes corredores de mármores luzidios e glaciais, e You only live once neste reflexo de um casal às bordas de um lago, cuja água subitamente é agitada. Mas o que há de espantoso se, solicitado por um roteiro velho de quarenta anos e pelo contrato com os estúdios alemães após um longo exílio, Fritz Lang tenha assim a ocasião de afirmar a continuidade de sua obra e de marcar, com estas referências, que ele jamais desejou nada negar?

Falaremos portanto de retorno às fontes? Se sob mais que uma relação seu último filme retoma contato com o período alemão, convenhamos que há muito tempo Lang nos acostumou a este tipo de “balanço” onde a unidade não se concebe sem a diversidade. Balanço presente até na construção deste filme sistematicamente composto ( e um tanto esticado em duas partes por necessidade de distribuição): dois combates entre homem e tigre, duas cenas de dança no templo, duas viagens aos subterrâneos, dois encontros com os leprosos. Mas balanço também entre duas tendências deste metteur en scène, senão contraditórias pelo menos contrárias e se exprimindo uma por intermédio da outra: uma tendência à profusão, à extravagância, ao delírio; outra à nudez do sistema, ao rigor. E estas duas tendências, longe de se excluir mutuamente, apoiam-se umas sobre as outras. Seria fácil ver que a ordem rigorosa de certos filmes Woman in the window, Beyond a reasonable doubt, se nos dispusermos a descrevê-las, repousam facilmente sobre o paradoxo. E que delírio a inteligência pode se vangloriar de abolir quando a própria inteligência emprega todos os recursos disponíveis a organizar o delírio? Semelhante sistema, com o que ele comporta evidentemente de recusa, não deixa às vezes de ser fortemente sedutor, e no entanto suas próprias recusas o distanciam do real, ou mesmo o impedem de aderir a este.

Estética e moralmente, toda a obra de Fritz Lang vai ser o testemunho da empresa desenfreada de um artista para criar um mundo outro, um mundo que tenha com este aqui a menor semelhança possível. O tigre de Echnapur? Antes o tigre de Argol, e este se morde a cauda. Por que, com efeito, a Índia senão por estes palácios fabulosos, estes faustos e estes charlatões, se não for por um expatriação onde tudo se torna possível? Mas então, por que no século 20 empreender uma imagem às Índias e nos restituir a imagem que dela tínhamos no século XVII, em espírito pelo menos? Não sou seguramente o único para o qual a Índia é qualquer coisa de muito real, que engloba por exemplo o que viram Renoir e Rossellini, e sem dúvida muitas coisas mais. O real, vocês vão me responder, não interessa Fritz Lang. Eu concedo, e também que um olhar obstinado sobre as coisas só se justifica assim pela ambição de atravessar as aparências. Assim, é sempre partindo das coisas que a ação pode se vangloriar de nos fazer ver outras: o resto não é nada mais que uma bela desordem de imagens. Ao fazer da Índia um pretexto, o metter em scène, encerrou-se nesta via da abstração que consiste em toda reconstrução do real.

Em revanche, abre-se a via da fantasia e da profusão. Aqui, ritos e cerimônias são inventados para serem descritos, da mesma forma que as bibliografias de Lovecraft ou os labirintos de Borges, assim como estes cenários, em seu sentido mais amplo, favorizam o desabrochar de um cinema mais devotado à presença corporal do ator do que a valorização de gestos singulares que nos proporcionavam Scarlet street ou Beyond a reasonable doubt. E sem dúvida podemos preferir menos este a este outro, e este outro menos a àquele, que sabe fazer aflorar sobre o rosto a alma oculta. A alma e a dança se excluem mutuamente- ou antes: o que é portanto a dança, e o que podemos dizer dos passos? O Túmulo indiano nos oferece o exemplo de um cinema em liberdade, mas de uma liberdade sem outro objeto senão o puro espetáculo,: puro, como se diz puro acaso ou pura perda- ou seja: para simplesmente constatar um fato, e não levá-lo a argumentar.

Philippe Demonsablon, Cahiers Du cinéma, 98, agosto de 1959

Tradução: Luiz Soares Júnior


quinta-feira, 19 de março de 2015

“Um juiz? Um investigador? Deus?”



No último plano de Retorno do filho pródigo, Siracusa,- uma das defensoras mais inspiradas da utopia de que Ellio Vitorino nos conta o nascimento, as contradições, e finalmente o fracasso em Mulheres de Messine- está nos estertores de sua vontade. Ela sai do quarto onde acabara de fazer uma análise desencorajadora da situação com Ventura- também ele um dos participantes mais obstinados da vila autônoma que alguns Operários e camponeses haviam construído nos dias seguintes à Segunda guerra mundial-, e, sem forças, senta-se no limiar de uma casa. Ela olha o mundo diante de si, no vazio da paisagem, toma a pose da Derellità de Sandro Boticelli e, enquanto uma lenta panorâmica reenquadra a parte baixa de seu corpo, Siracusa deixa, cansada, descair seu braço ao longo do corpo. A personagem parece se entregar ao abandono, mas num último gesto de revolta mantém o punho esquerdo fechado.
O filme de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet encerra-se com este último signo de resistência, centrado sobre esta obstinação do desespero. Eles não renunciam. No momento em que as guerras contra os povos continuam a se infiltrar, ou a se imiscuir- uma vez que as demonstrações de força que seus instigadores julgam necessárias não são suficientes para forçar o adversário a se entregar sem combate-, em um cinema que ameaça “de uma outra maneira” a potência cada vez mais esmagadora da indústria, uma última linha de resistência se traça. Eles estão entre os últimos a não ceder, a empreender uma última batalha com os meios irrisórios mas tão bem utilizados que ainda se mostram eficazes, a encadear filme sobre filme para lançar os contra-ataques do desencantamento, para contra-atacar golpe sobre golpe aos Francis Ford Coppola e aos fabricantes de Táxis da vida – em uma guerra sobre a qual a maioria aposta, sobretudo os agressores, que está ganha de antemão: O Retorno do filho pródigo, e depois Humilhados- um depois do outro, um no outro, retém os discursos e as peripécias desta batalha.

Em O Retorno, a coalizão é completa. Todos os invasores implicados no ataque. Na Itália de depois da Segunda guerra, não são apenas os defensores da propriedade, como Carlo, que detalha as leis do cadastro e explica que não há terra sem proprietário, mas também os ‘caçadores”, armados de fuzil e adornados com lenços vermelhos, que explicam amical e doutamente aos operários e aos camponeses que sua autogestão não tem futuro. Eles seguem a linha direta ( e o ‘comunista’ Elio Vitorini a compreendia certamente neste sentido) da política produtivista stalinista, onde a prioridade era reservada à produção e onde toda intervenção do povo deveria evitar constituir-se em obstáculo à prosperidade do mercado, portanto do progresso: “Porque hoje não há nada além de um único mundo na economia. E quem se isola perde o trem... Vocês podem continuar? Seus pulmões vão estourar se continuaram.” Fim da História? Fim de uma “luta de classes”  de que o “socialismo científico” teria, com o ‘fim do comunismo”, apagado a “consciência” ao abandonar às “religiões” a conduta e os frutos da revolta. Quando um dos heróis olha reto diante de si, não em direção ao fora de campo mas do lado da visão- do espectador-, o que ele vê e de quem é o objeto da visão? Ironicamente, o roteiro se pergunta: “Um juiz? Um investigador? Deus?”

Em O mundo diplomático, Jacques Rancière explica que o ‘romance’ de Elio Vittorini é percorrido por uma “tensão” que Straub e Huillet filmam, e que “poderia se resumir em dois nomes, Bertold Brecht e Friedrich Hölderlin”, o diretor do rigor dialético e o poeta que “esteve entre os primeiros a conceber esta revolução das formas do mundo sensível de que o materialismo marxista retomou a idéia à sua maneira”. A voz e os personagens se fundem à natureza. Eles seguem caminhos que não levam a lugar nenhum. No começo da segunda parte do Retorno, três planos filmam os dois protagonistas, Cataldo e Toma, que compartilham suas inquietudes, e, a cada vez, a câmera permanece, depois de sua saída do campo, fixada mais e mais longamente sobre um atalho cujo vazio é submergido pela abundância da floresta. As árvores e a verdura onde os “atores” de Operários e camponeses liam a carta de sua história explodiu. O campo apossou-se do campo; ele o recobriu para o levantar da cortina do último ato, a hora do julgamento e do desenlace.

O texto da conferência que deu Jean-Luc-Nancy na Escola nacional da paisagem, texto que acaba de publicar em No fundo das imagens , é de agora em diante uma referência inevitável para quem deseja falar da paisagem,em pintura como em cinema. Para além de todos os ‘desprezos’ do nacionalismo, do patriotismo , ou mesmo de toda ‘comunidade’, “ não se torna menos claro... que a nação ( le pays) e o povo remetem-se um ao outro. Talvez o povo seja a nação que fala, e talvez o rincão ( le pays) seja a língua, quando é deposta no domínio do fora de sentido”. E também, mais diante: “O camponês é aquele cuja ocupação é o rincão. Ele o ocupa e se ocupa, e é ocupado por ele: ou seja, ele o toma sobre si e é tomado por ele”. Aqui, é antes de tudo uma questão de vozes. Escandidas e próximas do recitativo, elas ressoam. Perdem-se em sua ressonância. Confundem-se com seu eco. Os “pagãos” falam a um deus que não lhes ouve. Quer se trate do cenário da floresta ou, ao final, do quarto, as vozes contam menos uma história que a acentuam, dando-lhe seu ritmo e peso. As palavras se infiltram e rebrotam entre os troncos e as folhas. Quando um movimento de câmera, às vezes, passa de um interlocutor para o outro ou quando a encenação passa do campo ao contracampo, nas soberbas falsas tintas de Renato Berta, é para se colocarem à“altura das vozes”.

A “humilhação”, para os heróis que Vitorini inventou e que os Straub filmam, consiste em ser enxotado de sua paisagem e de seu trabalho, de ser posto no desemprego porque seu rendimento é insuficiente. Eles são colocados na porta do Paraíso. Não sabem mais onde pôr o pé. O Retorno... retoma um tema recorrente do western  que é o fechamento, a divisão das terras, as barreiras que seqüestram a extensão à liberdade...é, por exemplo, o tema de Man whitout a star), de King Vidor. Como o Tales do Teeteto, os camponeses e os operários são tomados pela aêtheia, pela desterritorizalização, e tombam sob sua força. O Retorno... é o filme desta queda, deste abandono e deste sobressalto que assinalam os braços que descaem e o punho fechado. A música é de Edgar Varèse, esta Arcana cuja coda foi composta em 1927 e só foi acabada alguns anos antes de sua morte, trinta anos depois. O film se abre sempre sobre um outro fim. Ele não se satisfaz jamais com seu acabamento. Esta última resolução ecoa, em Jean-Marie Straub, ao curta-metragem realizado em 1972, em plena guerra do Viêt Nam, quando já decolavam os inquebrantáveis B52, sobre a Música de acompanhamento para uma cena de filme de Arnold Schönberg, e cujo sub-título era Perigo ameaçador, medo, catástrofe. Nos extremos do desastre resta no entanto, Friedrich Hölderlin ainda, o início do Patmos: “Muito próximo/ e difícil de captar, o deus!/ Mas no lugar do perigo cresce/ também aquilo que salvará”.



Louis Seguin, Quinzena literária, abril 2003. 

Tradução: Luiz Soares Júnior.


sábado, 17 de janeiro de 2015

A imagem, aparentemente...



Em Phenomena, Mrs. Bruckner cobriu todos os espelhos de sua casa para evitar que seu filho contemple sua deformidade. Em Profondo rosso, Suspiria e Trauma, por exemplo, os momentos de revelação são ligados sempre a uma imagem especular, como se apenas o reflexo autorizasse um acesso a uma verdade do mundo, de outra forma inacessível. É a mesma idéia que encontramos nos espelhos dos quadros de Delvaux, de quem alguns são visíveis em Síndrome de Stendhal ( Pygmallião e Trens da noite). A verdade, se existe, se situa sempre no reflexo, na imagem trucada, no desdobramento. A esquizofrenia que se instala em Ana Manni ( Asia Argento) é em primeiro lugar significada pelo plano de um espelho oval no qual se reflete uma cicatriz sobre seu rosto, signo exterior de um corte interior. Mais tarde, quando decide acordar à sua aparência a sua nova personalidade, vestindo uma peruca loira, Argento escolhe filmar a sequência através de um espelho. Espelho revelador, como no fim de William Wilson, onde o herói-narrador descobre o outro lado de sua personalidade- um duplo tirânico saído da infância- diante de um espelho.
Para Dario Argento, não há um além da representação, e o real só é perceptível através de suas produções artificiais. “O quadro não é uma janela aberta sobre o mundo, mas uma vitrine na qual o mundo se torna cenário”. Helena Markos, pura sucessão de simulacros, encarna bem este processo de imagens-implicantes: uma imagem oculta sempre uma outra. Ser bi-face, semelhante a estas cartas sem profundidade que Alice encontra no desvio de uma floresta, superfície contra superfície.
Em seus filmes, é preciso portanto levar muito a sério as aparências, pois são elas que abrem para as profundezas, que revelam a substância das coisas. Daí a importância de tudo o que remete ao ilusório, ao engano, à falsificação, ao travesti ou ao truque. A profundeza está sempre na superfície, assim como o aparentemente falso é verdadeiro. Isto marca uma passagem, uma diferença fundamental para com a narrativa policial clássica, para quem a solução antes se encontra naquilo que não foi visto, ou subtraído ao olhar do investigador. Nos filmes de Argento, o fora de campo da imagem conta infinitamente menos que seu fantasma.


Por um fio ( entre a obra-prima e o cromo)

À sua maneira, a obra de Argento constitui uma síntese entre uma certa modernidade ( aquela dos anos 60 na Itália, mas também da Nouvelle vague francesa) e o cinema de gênero. Cada um de seus filmes demonstra como a primeira pôde irrigar a segunda, no entanto permanecendo fiel à estrutura do giallo. Sua arte do desvio, sua ciência da bifurcação, sua capacidade de fazer nascer de um detalhe ou de uma simples ilusão de ótica um grande momento de cinema, testemunham da posição singular do realizador de Ópera na história do cinema italiano. Da modernidade, ele soube tirar uma audácia formal própria a fazer filmes, um campo de experimentação- plástico, figurativo, formal- permanente. Do cinema de gênero, que jamais abandonou, conservou um repertório de formas e de motivos populares, profundamente ancorados na cultura italiana. A extrema distensão da narrativa, a inadequação ótica e psicológica entre o mundo e seus personagens, o caráter intercambiável das intrigas ( em Síndrome de Stendhal, um outro filme começa ao cabo de uma hora) ou a potência angustiante da imagem ( em Argento, toda imagem suscita questão) são signos modernos, mas de uma modernidade jamais indiferente às coações de sedução e identificação próprias ao cinema de gênero. Esta foi sem dúvida uma das grandes lições que Argento reteve de Sergio Leone: “Leone me colocou os pés no chão. Leone não é um teórico; ele dizia: ‘Não, o público não gosta disso.’ Ele me ensinou a levar em conta o público. Somos narradores, não profetas”.
“É esta necessidade de comunicar que torna a arte comercial mais vital que a arte não comercial, e portanto potencialmente mais eficaz, para o melhor e para o pior”, escreve Panofsky. O estilo de Argento visa à implicação máxima de seu espectador, e este é um dos paradoxos sobre os quais sua obra se constrói: de um lado, uma vontade de colocar a imagem à distância, e do outro uma estratégia perdulária disposta a tudo para ganhar a adesão do espectador e produzir o que os barrocos chamavam de meravaglia. Daí uma dimensão  simultaneamente reflexiva e popular de sua obra que, ao mesmo tempo em que se interroga sobre o que a tornou possível, joga com o efeito brilhante, a exuberância, a complicação dos motivos, os choques cromáticos ou musicais ( heavy metal e ópera em Ópera), e os sentidos, cuja tarefa consiste em provocar a vertigem.

Dificilmente redutível a uma categoria, a obra de Argento escapa de fato a toda classificação: apesar de possuir uma espantosa coerência ( dois planos são suficiente para identificar um de seus filmes), testemunha uma constante heterogeneidade. Esteticamente, seus filmes se inspiram tanto nos grandes pintores maneiristas do século XVI quanto na fotonovela italiana dos anos 60, os fumetti Neri ( Diabolik, Kriminal e outros Killing). Em sua fantasia de esqueleto, a Mãe das Lágrimas de Inferno evoca por exemplo Satanik, justiceiro sádico que fez sua primeira aparição em 1966 ( antes de ser levado para as telas dois anos mais tarde por Piero Vivarelli), mas também a Grande Guilhotina que assombrava as pinturas medievais de Signorelli. Cineasta do collage, no qual o coro dos hebreus do Va pensiero de Verdi pode servir de tela sonora a uma sequência gore ( vejamos a interminável agonia de Gabriele Lavia em Inferno), Argento se tornou mestre na arte de fazer variar, ou de questionar, às vezes brutalmente, regimes estéticos que pensávamos consagrados. Como, por exemplo, legitimar este plano de Síndrome de Stendhal onde, depois da visita da sala Botticelli dos Office em Florença, em que aparece filmada como imagem de síntese a descida de uma pílula no esôfago de Asia Argento? Como compreender a coerência plástica que justifica o aspecto kitsch da máquina verneana ( de Jules Verne) do caçador de ratos em Fantasma da ópera ou da garganta de Carlotta, verdadeira inserção pornográfica, de que vai sair a ária do Romeo e Julieta de Gounod? Todo Argento está aí: “Lutas entre sons, equilíbrio perdido, ‘princípios’ revirados, rufo inesperado de tambores, grandes questões, aspirações sem fins visíveis, impulsões incoerentes em aparência, cadeias rompidas, ligações quebradas, retomadas em um único elo; contrastes e contradições, eis aí a nossa Harmonia”. Há nele este gosto do enxerto impuro, da experimentação, da mistura constante entre matérias nobres ( a ópera) e triviais ( a fotonovela, ou mesmo o pornô-soft), por meio da qual retoma a grande forma do cinema popular italiano.

Na sequência de abertura de Profondo rosso, Marc ( David Hennings) interrompe seus músicos e lhes transmite sua profissão de fé: “Está muito bem, lhes diz ele. Talvez até bom demais. É muito estudado, muito preciso, muito formal. Tem de ser mais arrebatado. Não esqueçam que este tipo de jazz nasceu nos bordéis”. Alguns minutos mais tarde, à beira de uma fonte da piazza em Turim, uma conversação se dá entre Marc e seu amigo Carlo, cujos pontos poderiam ser aqueles endereçados por Argento à indústria do cinema italiano: “Veja bem, Marc, só há a política que nos separa, pois ambos tocamos bem. Mas eu sou um proletário do piano, e  você é um burguês. Você toca para a arte e goza com isso. Eu para sobreviver, mas não é a mesma coisa”.
O contraste governa o imaginário de seus filmes: por estabelecem relações menos impensadas que impensáveis, porque elevam a antítese a seu zênite, porque visam o mundo a partir de um princípio de semelhança para consigo mesmo ( princípio este cuja troca, circulação e metamorfose não passam de avatares), os filmes de Argento poderiam reclamar esta “dialética explosiva” que Genette designou como a alavanca do pensamento barroco: “o mundo assim bisotado se torna ao mesmo tempo vertiginoso e manejável, já que o homem encontra em sua própria vertigem um princípio de coerência”.
Ao reafirmar sem cessar sua crença absoluta no poder de ilusão do cinema, a obra de Argento poderia iluminar este célebre aforismo de Bresson extraído de suas Notas sobre o cinematografo: “Quanto maior o sucesso, mais ele frisa o fracasso ( como uma obra-prima de pintura frisa o cromo)”. Em 1985, a direção artística do Teatro Sferisterio de Macerata propõe a Argento encenar o Rigoletto de Giuseppe Verdi. Mas o projeto não vai adiante, por conta de infidelidade ao libreto. Sua versão rock e macabra, que metamorfoseia o Duque de Mântua em um vampiro lívido e depressivo, é recusada. Se a ópera não quer Argento, ele fará a ópera vir até si. Será até mesmo o seu fantasma. Em 1987, por causa de Ópera, ele investe no Scala de Milão e encena o Macbeth de Verdi, depois doze anos mais tarde nos dá sua versão do Fantasma da ópera de Gaston Leroux. Mas ele tira do fantasma ( Julian Sands) a máscara que todos os seus precedentes intérpretes- de Lon Chaney a Paul Williams- usavam, e se serve da arquitetura da Ópera Garnier como de uma metáfora do mundo da arte: na superfície, a cena e as lojas douradas, cheios de notáveis pedófilos e cantoras obesas; em profundidade, um dédalo de galerias enlameadas, percorridas por batalhões de ratos; e no meio, uma jovem soprano dotada de uma voz cristalina, que vai provocar uma conflagração dos espaços. Pois esta é finalmente a única coisa que conta, a pureza da voz e da melodia: “a arte não está na intenção, mas na execução”. Argento, é claro, filma do ponto de vista das profundezas, da violência e da pulsão que Christine Daaé sente advir em si. Ela vai aprender logo que a beleza do canto emana menos de seu órgão vocal que de suas tripas. O fantasma encarna esta nobreza selvagem, instintiva mesmo, que tanta falta faz à arte civilizada, desmoronando sob o peso de tradições ultrapassadas e rígidas. Há nele uma espécie de elegâncias bárbara: majestoso com sua musa , depois um animal, quando fareja Carlota como um felino, bloco de obscenidade dissimulado sob as camadas de carne e de poeira. Agachado no fundo de seu antro e cercado de ratos, o fantasma toca. Mas aquilo que lhe proporciona a música que sai de seu órgão não tem nada a ver com o mesquinho gozo do dandy; é um sentimento vital, sua única chance de sobrevivência.

Parece que os filmes de Argento carregam em si um desafio lançado à atividade crítica: eles não a intimam a buscar uma verdade oculta nem a autopsiar um discurso, mas em trazer à luz a estrutura de um sistema original, cujo código trata-se de encontrar. A significância, e  não a “significação”- para retomar aqui a famosa distinção de Barthes-, vive no coração do cinema de Argento: “O que é a significância? É o sentido na medida em que este é produzido sensualmente”.
A percepção emotiva do espectador, sua capacidade de adesão ou mesmo de recusa, fazem com freqüência figuras de parasita para o crítico que prefere o método discursivo ao método indutivo. Ora, o cinema de Argento é um cinema do efeito, que privilegia a emoção ao propósito, o afeto à reflexão, a intuição à elucubração intelectual: todos os seus filmes, desde o Pássaro das plumas de cristal até o Sangue dos inocentes, encenam um conflito entre estas duas abordagens, e todos terminam com a vitória ( precária) dos sentidos sobre a razão, da percepção sobre a ação, da implicação física ou ótica sobre a distância analítica. Há aqueles que, a partir de provas, buscam sem sucesso encontrar a pista do assassino ( função contrapuntística clássica da polícia, sempre impotente), e  os outros, que ao se instalarem no coração dos fenômenos procuram uma empatia sensorial  com o mundo que os circunda, quer sejam estes óticos, sonoros ou plásticos.


Dario Argento, O mágico do medo, Jean-Baptiste Thoret

Tradução: Luiz Soares Júnior.


quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

A tela do fantasma





1. Glop. “Ele te sacode, te joga para o bucho e...glop!” É o tubarão, o grande branco ( great White) descrito por Quint durante a primeira aparição do bicho. Somos tentados igualmente a ver aí uma definição do impacto do filme, ou mesmo do tipo de cinema que ilustra: ele te sacode é o primeiro grau, o suspense, o medo; ele te manda para o bucho é o segundo grau, a simpatia para com o herói diante do perigo; a comunidade humana que, na sala escura, diante da infinitude de ondas e o horror que trazem, se unifica; e com o glop!, temos novamente a lei da pulsão, a paranóia social, a familiaridade pequeno-burguesa que te atingem insidiosamente no ritmo dos retornos à tela da grande boca denteada. Podemos então aplicar a  frase de Quint ao sistema social por inteiro, a sociedade dos Grandes Tubarões brancos ( aliás, este tubarão não é chamado de “branco” por acaso, não é?), à sociedade, esta “flor carnívora”, como lhe chamou um slogan de Maio de 68.
Potência da metáfora: estas mandíbulas se abrem em múltiplos sentidos. Impacto social deste cinema deliberadamente dependurado no anzol do fantasma. Deliberadamente mítico, resolutamente épico ( perto dele, o cinema europeu, ou pelo menos o cinema francês, em sua grande maioria aparece-nos como um cinema anêmico, sobretudo quando se pretende de aventuras, à La Melville, Verneuil e Labro).

2. Mandíbulas. O operador do suspense, do medo, é o fora de campo: ou antes, dois tipos de fora de campo articulados um ao outro. Um fora de campo metonímico, contíguo ao campo visual, de onde pode surgir a qualquer momento a Besta ( ela deve, evidentemente, aparecer ali onde – e quando- não a esperamos, por exemplo no estuário quando, quando a acreditamos situada ao largo da praia, ou detrás da vítima...) e que torna sensível a analogia entre o plano, a tela e a superfície da água: superfícies calmas, águas subitamente revoltas, perfuradas pelo que surge das profundezas. A metonímia, que agita o corpo, duplica-se assim com uma metáfora, que agita a alma: este fora de campo é também o irredutível declive de sombra, o abismo tanatológico, a insondável noite onde a Besta condensa seus pavorosos prestígios. Dois tipos de fora de campo, dois registros de narrativa: a metonímia é o registro da caça, do suspense, do futuro imediato; a metáfora é o registro da História, da culpabilidade e do passado profundo ( a história de Quint, os tubarões de Hiroshima, cena primitiva e pecado original). A articulação destas duas mandíbulas arrebata o naco.

3. Sacos. Em Tubarão, tudo é corpo, ou seja saco, ou digamos mesmo saco de lixo. Um dentro e um fora, um fora que aprisiona um dentro ( seu princípio vital). Sob a  perspectiva dos dentes do mar, as diferenças são abolidas entre um homem, um cachorro, um colchão pneumático, um barco a motor, um botijão de oxigênio. Como o próprio tubarão também não escapa à regra- como ele mesmo “é feito como um saco”), é mortal. No entanto, esta obsessão do corpo como um saco ou uma caixa ( a mais simples expressão do imaginário) necessita de uma observação: o horror consiste em que o corpo seja aberto. A boca escancarada do tubarão presentifica este horror sob um modo dramático, e não deixaremos de invocar a este propósito a vagina dentada, a castração, etc. ( vejamos a narração de Quint: ele te fixa com um olho morto, depois, quando adere a teu corpo, os olhos ficam brancos, etc). Mais interessante, mais significativo no entanto me parece aquilo que cristaliza a figura do oceanógrafo: a saber, a obsessão – horror e desejo mesclados- de ver o que existe no interior. No interior de que? Do corpo, e portanto isto quer dizer de qualquer coisa: começa com os restos humanos na espécie de barca com gelo do necrotério, depois o cadáver do pescador em seu barco fulminado, os dejetos heteróclitos no estômago do primeiro tubarão, e enfim o próprio tubarão, entendido como aquele que se esconde sob a superfície da água.  Compulsão de ver o inominável, de fazer emergir o fedor dos maus objetos internos. É assim que o caçador de tubarão e o oceanógrafo são complementares, e formam um quadro coerente da neurose social de nossa época, e especialmente da americana: a paranóia do primeiro frisa e guia a neurose obsessiva do segundo, paranóia e neurose obsessiva cujo leve excesso é corrigido e tornado normativo pela figura do policial, o Americano médio. História de homens, é claro, e de homossexualidade edipiana de grupo: vejamos a sequência da exibição mútua das cicatrizes ( as sérias) entre o caçador e o oceanógrafo; mas também a sequência derrisória, mas tão simpática e humana, da apendicite do policial ( grau zero da laceração/inscrição 1 simbólica). O que elas assinalam- estas cicatrizes, feridas cerradas e integradas à memória do corpo, nesta sequência de ternura viril cujo efeito especular é garantido na sala? O cálido pertencimento à tribo humana; ou seja: extra-sexo ( horsexe). 2
Do que em definitivo se trata aqui? Exatamente da mesma coisa que em O exorcista ( onde os padres eram três), de que Tubarão está bem mais próximo que de Os pássaros: é a subtração do sexo que se trata de conjurar aqui, e igualmente do abalo pânico que invade o corpo diante desta possibilidade.


Pascal Bonitzer, Cahiers Du cinema, 265

Tradução: Luiz Soares Júnior





Nota:
1 scarification.


2 A psicanalista lacaniana Catherine Millot chama de horsexe ao transexualismo, mostrando que na mulher a ânsia por ser amada como “um”homem é efeito de um processo histérico, ao passo que no homem a vontade de erradicação do órgão peniano consiste numa identificação psicótica com a Mulher, isto é, com uma totalidade impossível. 

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Les grandes marches


Esqueci em que circunstâncias exatas eu conheci Daney- na época, nos chamávamos por nossos nomes ( sobrenomes). Este grande rapaz austero, sentencioso e apaixonado me intrigava. Ele acabara de seguir, como nós, a retrospectiva Hawks de 1962 na Cinemateca da rua de Ulm, onde Jean-Pierre Biesse, o primeiro morto dentre os cinéfilos de nossa geração, deixava-se regularmente deslizar ao longo da rampa que levava ao subsolo, e assim chegava antes ao guichet, sorridente de ter passado à frente de todo mundo para ver Le harpon rouge ou Ceiling Zero. Daney pertencia ao pequeno grupo vindo da classe de Agel no Liceu Voltaire, que iria atrair nossa atenção pela audaciosa fundação de uma revista, Rostos do cinema, que nos propunha um número Hawks e um sobre Preminger. Eu creio que ele entrou nos Cahiers antes de mim, e eu o encontrava ao acaso entre nossas idas à revista ainda amarela e entre projeções de filmes na Cinemateca, aos diversos cineclubes ( de forma notável o Cine Qua Non em Escurial, onde descobrimos An affair to remember de Leo McCarey, House of strangers de Mankiewicz e sobretudo Wind across the everglades de Nicholas Ray 1, em projeções magníficas à época). Esqueci muita coisa desta época em que eu era estudante, e as lembranças que restam se misturam.

Foi apenas em 1970, depois de quatro anos passados na Itália, que eu reencontrei Daney nos Cahiers ( o Cahiers tornado austero, como prolongamento de 1968). Ele tinha mudado: estava sorridente, engraçado, não tão sério quanto esta sinistra França de Pompidou. Daney evocava suas viagens naquilo que se chamava então terceiro-mundo, e eu tinha sido muito marcado por um texto que ele escrevera sobre Pocilga e sobre a relação que estabelecia no filme a partir das palavras porco e corpo. Nesta época, Daney falava com freqüência de Paulhan, de que admirava a escritura enigmática, esta forma perturbadora de parecer arriscar palavras modestas. Ele amava os cadernos encadernados de páginas coloridas que não ousava recobrir de tinta, as canetas e os lápis, os livros de Stevenson, de quem no entanto vendeu a edição completa de Edimburg a Bernard Eisenschitz para se pagar uma viagem- talvez à Índia. Foi nesta época que descobri em Serge alguém que adorava falar e rir. Começou então nosso hábito de nos encontrarmos nos cafés, e sobretudo nos restaurantes. O primeiro de que me lembro foi o Petit Marseillais, rua de Charonne, que permanece de pé mas que perdeu seu grande cartaz do lado de fora representando Carlitos , cartaz sobre o qual se pregava o cardápio operário que nos satisfazia. As mesas eram coladas umas ao lado das outras, e no meio do burburinho podíamos citar de letra as réplicas do Tigre de Bengala e do Túmulo indiano, que neste período tão sisudo exprimiam a liberdade de viver e o verdadeiro sublime popular- uma vez que já os havíamos compartilhado tantas vezes com os espectadores de todas as cores das salas dos bairros do XI e do XX distritos. O fato de que na época houvesse a efervescência Godard-straubiana não perturbava em nada nossa admiração, capaz de se deslocar rapidamente de uns aos outros, com o auxílio- no caso de Serge- de teorias de que ele se apossava com sua maneira tão pessoal de assimilar todas as coisas. Algum tempo depois- apesar dele dizer em algum lugar que fui eu que o levei a descobrir Jacques Tourneur-, foi ele quem me falou em primeiro lugar de forma tal que eu não pude senão passar a amar os filmes deste cineasta. Foi a partir deste momento que comecei a receber cartões-postais que Serge enviava a algumas pessoas de todos os países onde se encontrava. Os textos, ao contrário dos que escrevia sobre cinema, eram deliberadamente leves e frívolos: jogos de palavras, referências, comentários sobre o cartão escolhido, citações desviadas de diálogos de filmes, evocações de personagens. Aquele que freqüentemente voltava à baila como o mais belo personagem do díptico indiano de Lang era Asagara que, como que por acaso, fazia a ligação entre o Maharadjah, o arquiteto e a dançarina.  Há muito de Serge neste personagem: esta forma de acusar a paulada recebida em silêncio, que se adivinha através de uma passageira perda de presença no olhar.

Esqueci de dizer que um evento cinematográfico importante havia abalado nossas certezas de herdeiros da Nouvelle vague: foi a retrospectiva John Ford, que havia feito em 1963 a gloriosa inauguração da Cinemateca de Chaillot; esta iria impor uma polêmica, jamais resolvida e sempre viva, sobre quem seria o maior entre Hawks e Ford, polêmica concernente tanto aos cineastas quanto àqueles que refletiam ponderadamente sobre cinema. Creio que não serei indiscreto se revelar que hoje em dia Rohmer e Brisseau estão em desacordo sobre a grandeza de um e do outro.

De meados de 1975 a 1992, Serge Daney precisou seu pensamento com uma intensa clareza de escritura nos textos que compõem A rampa, Ciné Journal, Le salaire Du zappeur, Devant La recrudescence..., e Traffic; e de uma forma tal que basta lê-los uma única vez para ter uma idéia do que fez ou foi. Eu continuei a vê-lo mais ou menos regularmente: com o tempo, mudamos de restaurante. Ele continuou a enviar cartões postais com regularidade deste ou daquele país. Nos reencontramos em Paul, rua de Charonne, onde a gata Trottinette entronava-se sobre o guichet, por onde passavam pratos copiosos e banhados de batatas saltadas de forma irregular. A conversa podia durar mais tempo, mais tarde, neste restaurante talvez argelino da rua de Lappe, no qual Serge havia achado o contrafilé totalmente honesto. Logo apelidamos o restaurante de Honesto ( sincère). Encontro a tal hora no Honesto! Mais tarde nós o traímos com outro, rapidamente chamado o Neo-Honesto, muito menos satisfatório. Falávamos evidentemente muito e por longo tempo, e eu estava de tempos em tempos em desacordo com seus julgamentos no detalhe, mas regularmente me achava perturbado pela forma clarividente que ele encontrava de relacionar os cineastas do mundo inteiro por meio de encadeamentos de ligações que era o único a encontrar. O que o atraía, como que por uma forma de imantação, era o movimento do cinema em seu conjunto- conjunto constituído de partes distintas que raramente se percebiam umas às outras, e que aparentemente não faziam nenhum esforço para que esta recíproca percepção ocorresse.

Ele, o vigilante, via do alto e de longe aquilo que se tramava nos filmes e entre os filmes, mesmo quando estes eram fechados em sua singularidade. Foi por causa disso que passei a querê-lo ainda mais quando, mais ou menos entre 1983-1984, ele resignou-se rapidamente a registrar aquilo que chamava- e que outros se precipitaram em retomar- de a morte do cinema, confundindo as manifestações mais mórbidas de uma certa retomada ( no sentido de reprise, reprisar) cinefílica com coisas mais soberanas e então indiscerníveis. Foi em parte por oposição ao seu diagnóstico, que eu atribuía à sua fascinação pelas mídias que ele expunha no Libération, que empreendi nos Cahiers as “Crônicas de cinema” em 1985. Mas ele permanecia no entanto meu principal interlocutor, e quaisquer que fossem nossos dissensos e às vezes nossas disputas- foi a única pessoa com quem me irritei várias vezes-, jamais foram por razões pessoais; e com o tempo, se consolidaram nossas posições de fundo sobre o cinema e a curiosidade maior, em relação a Serge- eu era mais confiante, logo menos curioso- por aquilo que o cinema iria se tornar. O projeto da Traffic nasceu em 1986, e  Paulo Branco devia ser o produtor. O batismo deste projeto de revista deu-se no começo de 87 em um restaurante russo da rua de Lappe, cujo standing ( reputação) era manifesto pelo afastamento excepcional das mesas. Pouco convencido com a direção unicamente reflexiva, eu me revoltava contra a idéia de escrever outra coisa senão estas Crônicas, que eu amava como uma espécie de território pessoal onde eu era livre. Com a neve abundante fazendo as vezes de catalisador, terminei subitamente quinze dias mais tarde Le Champignon des Carpathes, que iria me reter ( assim como um infeliz filme em seguida) ocupado longe da escrita durante dois anos.

Foi só no fim de 1990, com tantas coisas acabando mal- Serge com o vírus da Aids, os eventos internacionais tendo como conseqüência a vexação das mídias, a Romênia e depois a guerra do Golfo à porta-, que eu tive a certeza de que havia urgência em fazer a Traffic. Desde outubro de 1990 até os últimos dias de sua vida, fui impulsionado pela força moral de Serge que, eu creio, marcou a todas as pessoas de quem se aproximou. Ele jamais perdeu esta capacidade que tinha de se rir das coisas divertidas que lhe contavam e de contá-las ele mesmo, pelo prazer de encontrar a palavra certa, forçosamente engraçada, contar coisas que o intrigavam ou retinham sua reflexão.  Pela primeira vez, se ele se sentia definitivamente não-reconciliado com a sociedade- mas amando mais do que nunca o mundo sobre o qual o cinema havia velado desde seu nascimento-, eu me sentia totalmente em acordo com ele em todos os pontos, até o limite de crer que eu encontraria por minha conta tudo o que ele pensava, de tal forma me identificava com as formulações felizes que inventava espontaneamente. Falar, que quando em demasia o fatigava, era no entanto um oxigênio que acabou por lhe faltar. Ele só nos escutava a fim de relançar seu pensamento, que buscava fazer avançar, esperando ganhar tempo. Eu sabia que podia chamá-lo até 1 h 15, às vezes 1h 30 da manhã. Foi no último mês de sua vida , quando todo esforço físico lhe era impossível ( e quando ele queria economizar o que lhe restava para poder escrever de manhã), que eu me resignara a jamais chamá-lo depois da meia-noite. Ele era orgulhoso a ponto de querer dar a impressão de que jamais precisava dos outros- só me chamava para falar de Trafic-, ele que jamais cessou de estar à frente dos outros, ao descobrir seus filmes. No planeta estilhaçado do cinema dos anos 60, ele ia ao encontro destes pedaços que não podiam mais se integrar: foi o primeiro a nos assinalar, ao escrever, a existência de Pelechian e Kiarostami; ele nos lembrou que havia outras capitais de cinema que não Roma e Hollywood, que elas estavam disseminadas pelo mundo, no Burkina-Faso, no Irã, em Portugal, nas Filipinas e além: e que podíamos identificar estas capitais tão logo um cineasta- isolado como estivesse- registrasse sua percepção do mundo onde vive e inventasse sua forma particular de dizê-la.  E que o cinema vivo nascia deste passo. Ele me fez tomar consciência que eu mesmo desde a infância era enojado com o cinema francês dos anos 40-50, e que o cinema também podia apreender a vida, coisa que adivinhávamos no cinema italiano e, com muita ingenuidade ( naïveté), nos filmes hollywoodianos. Parece-me que eu devo à sua memória contar que ele tinha a intenção, logo depois da polêmica a propósito de Uranus, de enviar a Claude Berri um exemplar de Devant La recrudescence... com a dedicatória- retomava o termo com que ele havia saudado Berri- “Tiens ma poule, voilà de la lecture! ( Toma, minha vaca, eis o que deves ler!). E que havia renunciado a isto devido ao esforço de buscar o endereço de Berri, acabando por confessar- diante desta evidente perda de tempo- que ele não queria mandar nada realmente. Serge considerava que o cinema havia de tal modo se estreitado em alcance, que não se podia mais odiar ninguém, e calarei pudicamente o nome de seu único inimigo.

Trafic se fez regularmente no Grandes marches ( restaurante parisiense), Place de La Bastille, que nós batizamos sem o menor sucesso de Place Straub em homenagem ao movimento giratório de Trop tôt trop tard. Outro lugar destruído de que o cinema dá testemunho. Era no Grands Marches que S.D. recebia as pessoas, e a primeira quarta-feira em que a reunião hebdomadária foi anulada- já que acabara de chegar de viagem e me encontrava só no Grands marches-, eu a experimentei como um dia de luto. O primeiro filme que vi com ele em sala foi Van Gogh, e  o último que teve forças para ver foi Antígona, que vi mais tarde. Serge foi o primeiro- e desde muito tempo já- a ousar brincar com os Straub, que possuem na verdade mais humor e senso cômico que muitos cineastas; ele, que escreveu os melhores textos e mais profundamente admirativos que escreveram sobre eles, ousou ( ele me contou ao telefone) dizer na saída de Antígona a Jean-Marie Straub: “Eu preferia seu período frívolo”. Eu não vejo Kazan ou Kubrick aceitando ouvir coisas assim, pelo menos não como uma eventualidade concebível.

Sempre ao telefone: uma noite, Serge me explica longamente os movimentos migratórios dos povos quase esquecidos através da Sibéria, o Irã, o mundo árabe; ele tinha uma febril paixão em querer manter presente em sua memória, com a ajuda de um grande atlas desdobrado, esta intensa circulação humana que não havia cessado de existir em certas partes do mundo, descrevendo-as como se o cinema tivesse registrado e guardado alguma coisa que nenhuma simplificação interpretativa, nenhuma visão esquemática das paixões, dos desejos, das circunstâncias econômicas e históricas pudesse desbotar. Como se o Mundo só estivesse esperando que Griffith e seus genros Walsh e Ford, e seus pequenos sobrinhos do outro lado do Atlântico (Godard e Pasolini) pudessem conservar alguma coisa que havíamos percebido, e que ficaria disponível à espera de outros clarividentes transeuntes. Era como uma espécie de embriaguês da memória, onde ele se colocava apenas como uma espécie de médium oral, onde sua própria existência contava pouco, com o senão de que este país que evocava na noite do telefone, Serge havia percorrido ao longo de sua juventude- percorrido a pé e provavelmente nestes velhos ônibus que vemos no Subida ao céu de Buñuel. Eu ainda o vi rir no primeiro dos oito dias que devia durar seu 49 º ano, quando eu lhe contava sobre um dos quatro filmes de John Dorr, The case of the missing consciousness, onde o herói ( interpretado pelo cineasta) está dolorosamente solicitado por dois farmacêuticos rivais, que o usam como suporte de experiências, como se escrevia antigamente, terrificantes e/ou excêntricas ( loufoques). No dia seguinte, quando o SAMU veio buscá-lo para levá-lo até o hospital onde acabaria seus dias, ele ainda teve a leveza de espírito de rir desta coincidência entre seu estado e a narrativa da véspera. Durante sua doença, que durou vinte meses, não pude nada senão calcular a extensão de seu sofrimento.


Jean-Claude Biette ( Cahiers du cinéma, nº 458, julho-agosto 1992)

Tradução: Luiz Soares Júnior

Nota:

1.     As rubricas com os nomes dos diretores são do tradutor


quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Rever Verdoux





Haveria um “em si” do cinema, do qual decorreriam regras e exceções? Quanto mais se dissemina isto, mais dificuldade tenho em crê-lo; o cinema, ao final das contas, não é nada além senão aquilo que fazem os cineastas, e a exceção- se ela possui o nome de Eisenstein, ou Buñuel, ou Chaplin- é uma exceção talvez, mas que consiste na conquista, e que não precisa se preocupar com a especificidade do cinema, já que a funda, assim como Bach ou Schoenberg preocupam-se menos em instituir uma escritura universal que em explorar sua própria linguagem, ou Michelangelo em servir mais à pintura ( ou o cinema) que em se servir dela; a arte prefere ser capturada que cortejada. E estamos todos à vontade para admirar o aço cromado ou a pátina com que um Walsh, Dwan, Tourneur, Minnelli  polem suas engrenagens; quais ouropéis  idiossincráticos suspendem-se sob o dorso de suas obras, a elegância e a desenvoltura com que as transportam.; cada vez mais me é difícil não  pensar, antes de tudo, no peso destas obras.
Quem é Chaplin? Um homem livre. Verdoux, quinze anos depois, é primeiramente isto: o filme de um homem livre ( para retomarmos a fórmula de Rossellini, falando de Um rei em Nova York). Exceção esta espécie de homem; regra, pois o Chaplin do Pelegrino ou de Verdoux, o Buñuel de Nazarin e do Anjo exterminador, o Renoir da Regra do jogo e de Elena, mesmo o Brooks de Elmer Gantry, o Rossellini de Vanina, o Mizoguchi das Irmãs de Gion: eis alguns cineastas que possuem o fato  em comum, deixando de lado os seus dissensos, de não serem simplesmente “metteurs em scène”; antes aqui se nota uma prontidão do toque que pode passar- e com frequência passa – por secura ou pobreza, um perfeito pudor das intenções que toma o esquematismo por máscara, e dissimula sob a rapidez do traço a riqueza das contradições profundas- um jogo infinito de trocas entre as significações e os meios. Verdoux é Carlitos; que o seja, mas também é Verdoux.

Mais adiante: qual o fito do cinema? Que o mundo real, tal como se oferece na tela, seja também uma idéia do mundo. É preciso ver o mundo como uma idéia, é preciso pensá-lo como concreto; dois caminhos, ambos com seus riscos. Quem parte do mundo e nele se instala arrisca-se fortemente a não atingir a idéia: estes são os perigos da atitude do “puro olhar”, que os leva a se submeter ao presente, a aceitá-lo tal e qual, a contemplá-lo, como se diz; mas tenho medo de que esta contemplação seja semelhante à exercida pelas vacas que olham os trens que passam, fascinadas pelo movimento ou pela cor e com pouca chance de um dia compreender a significação destes objetos de fascinação, e assim fazê-las se encaminhar antes para a direita que para a esquerda. Partir da idéia, risco inverso: restam neste território nove entre dez, e o campo da História ( do cinema) é semeado pelos cadáveres destes filmes que todos os exercícios de respiração artificial só conseguiram animar no tempo de seu lançamento.

Mas estes cineastas ( para voltarmos a eles), partindo também ( parece-me) da idéia, ou do esquema ( e o arranque é freqüentemente ingrato, árido, sem brilho) recuperam pouco a pouco o real; é porque este esquema não é um esqueleto, mas figura dinâmica, e a justeza de seu movimento, de sua dialética interna, recria paulatinamente, sob nossos olhos, um mundo concreto: outro e explicado, mas ainda mais ambíguo, por ser desta vez idéia encarnada, e logo depois real trespassado de sentido. É também pelo fato de que a  idéia já é idéia do mundo, visão conceitual  ( espetáculo ou metáfora): uma imagem-idéia- seja um grupo de convidados bloqueados num salão, ou o caçador estrebuchando como um coelho, ou o cadafalso diante do convento- ou seja mesmo um “personagem”, tão pleno de contradições que o filme não consista em nada senão no desvelamento metódico destas. Verdoux confia uma multiplicidade de significações não tanto ao jogo de cena quanto à agilidade do ator em inventar, dir-se-ia, diante de nós: mise en scène em torno do jogo do ator principal, e confundindo-se com este jogo. Pois a ação do ator é criação contínua, um motor e um olhar ao mesmo tempo: Chaplin age e faz agir, mas se contempla agir e contempla seu ato através dos outros; ele organiza no espaço da tela uma deflagração do sentido, experimenta um agir julgado por suas conseqüências, de que ele pesa diante de nós, à medida em que o filme se desenrola, as fases e os objetivos: processo de homem de ciência.

Chaplin, Buñuel, Renoir, “filhos deste século científico”; sua démarche é a do físico ou do entomologista: o homem é para eles objeto de estudo e de experiência, mas este homem é antes de tudo eles mesmos. Dialética implícita em Renoir e Buñuel, que o gênio de Chaplin consiste em manifestar em plena luz- ao integrar o seu mito a sua pessoa, sua “lenda” ao seu mito, a História a esta lenda, e  por um sistema de reações em cadeia, obter um corpo novo, irradiado por sua atividade, assim como a História, capturada pela armadilha do mito, revela suas mitologias. 

Reconstituição de um objeto “de forma a manifestar nesta reconstituição as funções deste objeto”: definição, segundo Barthes, da atividade estruturalista, que comanda toda a arte moderna. Assim,  Verdoux é Landru desmontado e reconstruído por Chaplin-Carlitos; simulacro, rigorosamente não-simbólico e sem profundidade, mas formal: “nem o real, nem o racional, mas o funcional”.

A vontade de infligir significação, afirmada pelo próprio recuo que Chaplin assume bruscamente em relação ao papel que interpreta; este recuo consiste no ato de um homem, e é equivalente ao de Brecht diante de Mutter Courage, de Fautrier diante de seus Otages, de Boulez para com suas Estruturas:  o sentido passou por ali, ele foi inscrito; a obra guarda o movimento desta passagem. Esta passagem é o seu movimento- a constatar e retomar.


Jacques Rivette, Cahiers Du cinema, número 146, agosto de 1963


Tradução: Luiz Soares Júnior.









Jacques Rivette, Cahiers Du cinema, número 146, agosto de 1963