terça-feira, 8 de maio de 2012

Tenebrae: A dobra do recalcado



Em 1982, Dario Argento abandona os território do sobrenatural ( Suspiria e Inferno) e retorna ao giallo. O título do filme, Trevas, remete a um sombrio interior, à cor da pulsão mortífera, e não à sua estética- solar, que evoca antes a atmosfera de um giallo deslavado, do qual só se tivesse conservado a cor vermelha. Tenebrae é um filme sobre o branco: branco como as páginas do escritor ainda não enegrecidas por seus fantasmas mórbidos, branco como a atmosfera de pesadelo que o assombra, branco como o halo virginal que perderam as mulheres que trucida ( “puta suja!”, sussurra-lhes à orelha antes de matá-las)-, branco enfim como o meio higienizante constituído por halls de aeroporto, quartos frios, estúdios de televisão e  villas iluminadas por néon. O design, glacial e  ultramoderno, privilegia as formas contundentes, as linhas retas ou quebradas e as superfícies retangulares  expostas de grandes baías envidraçadas. Longe da Roma turística cheia de signos do passado, a Roma de Tenebrae é uma cidade residencial e  impessoal, feita de jardins cercados de arame e aléias de concreto. A violência erstá presente em todos os recantos das ruas e determina a maioria das relações humanas, quer se tratem de violência comum ( um roubo num magazine, um mendigo agressivo, objetos de uso pessoal depredados, um doberman ensandecido de raiva, uma ruptura amorosa em lugar público, uma crise de ciúme ou brigas) ou criminais. A onipresença do vidro engendra uma conflagração de espaços públicos e privados. A transparência abole a interface exterior/interior e vale como prolongamento plástico de uma fronteira móbil, em torno da qual o filme se desloca: “Vemos mas não podemos tocar. A comunicação é universal e  abstrata”. 1 Neste giallo quase futurista em que a pulsão sexual é “entubada” em contêineres, o assassinato constitui o único meio de entrar em contato com o outro. De penetrá-lo. Argento insistiu com frequência na dimensão intemporal do filme, verificável tanto na escolha dos cenários quanto na dos figurinos, impossíveis a datar. A música, enfim, à base de teclados eletrônicos e caixas rítmicas, reforça a sensação de um mundo frio e desumanizado, dominado pela tecnologia.
Tenebrae é um pesadelo climatizado. Antes de tudo, a referência é à televisão italiana da época, em sua tentativa de absorver o cinema e impor a quem lhe resiste seus códigos estéticos grosseiros ( o primeiro assassino é um apresentador de talk show!). Pela primeira vez, Argento abandona o cinemascope pelo 1:85, formato mais próximo do da tela de televisão , e superexplora seus estereótipos: uma luz pálida e branca ( todos os atores tem o rosto emplastrado de branco), sequências de comédia “água de rosa”, interiores impessoais e personagens clichês: um jogador de fliperama com jeans colado ao corpo e “bodybuidado”, uma “tinca”- lábios polpudos e estremecimentos lascivos- ou uma femme fatale ( Jane, a ex-mulher de Peter Neal), versão over de Veronika Lake.

Ao cabo de vinte minutos, um pesadelo ou uma lembrança que imaginamos traumática para o criminoso irrompe no filme sob a forma de um flash-back. Numa praia, uma mulher vestida de branco e com um par de sapatos vermelhos desnuda-se diante de rapazes de que vemos apenas as pernas. Súbito, um deles lhe dá uma bofetada. Jogado à terra e macerado de golpes, ele sofre as represálias da mulher, que lhe enfia o salto na boca. Mais tarde, um segundo flash-back fecha este pequeno filme no filme e nos mostra a jovem apunhalada pelo rapaz a quem humilhara. Damo-nos conta agora que o estilo visual de Tenebrae é obra de um espírito doente; é sua matriz plástica ( todos os “motivos”- a obstrução da boca, a importância do fetiche, o desejo negativo, as cores- reencontramos aqui), e  o filme é sua versão soft. Argento enfatiza aqui a origem patológica da estética televisual e do que esta produz em matéria de recalcado (refoulé)- a televisão se torna o pesadelo literal do cinema. Tenebrae “des-dobra” precisamente a imagem cinematográfica de seu recalcado televisual. O assassino, cujos atos são calcados sobre os do romance ( “é uma espécie de homenagem ao livro”, diz-nos o inspetor Giernani), se centra no que ele considera a Corrupção, que reúne todos os comportamentos ( sexuais, humanos) que ele julga “desviantes”. Ele encarna assim uma espécie de braço armado da censura televisual, e evolui como ela no interior de um mundo regido por fórmulas petrificadas ( “”fixed patterns” é a expressão usada por Tilde,a  jornalista). O filme, que se poderia acreditar estar bloqueado por esta constatação crítica, desloca progressivamente seu objeto a partir de seu horizonte, ou seja de seu impensado: o sexo e  o assassinato.

O sexo primeiro, pois Tenebrae leva para o centro do “contêiner” aquilo que habitualmente este expulsa ( fetichismo, homosexualidade, sadomasoquismo). Um dos exemplos mais perturbadores do travestismo empreendido é a escolha do transexual Eva Robins/Roberto Coati  2 para encarnar a  moça da praia, fantasma erótico trivial. O duplo pertencimento sexual do ator/atriz contamina o conjunto do filme e instala em seu centro um princípio de indeterminação. “Se tiveres atração por ela, estás preso na teia. Eva é apenas um sonho, uma aparência”. 3 Qualquer que seja o caso da figura ( olhar heterossexual ou não), esta imagem de status incerto aprisiona numa armadilha o olhar do espectador. Ela é o lugar por onde passam todas as dobras do filme- entre normalidade e desvio, heterossexualidade e homossexualidade, atração e repulsa, clichê e subversão-, o que o leva a experimentar um desejo forçosamente contraditório, eivado de sentimentos que naturalmente se excluem. O assassinato enfim que surge como um programa, em letras capitais  e closes nos créditos do filme. A brutalidade do filme é à medida da higienização ambiente, de que a violência parece ser o recalcado orgânico e vingador. Degolas, lacerações, amputações e outros “gêiseres” escarlates reintroduzem a cor ( o desejo, a pulsão) em um mundo que enlouqueceu. Tenebrae registra o surgimento do gore no país dos sitcoms. 


Notas:

1 Jean Baudrillard, O sistema de objetos

2 Notemos que Mario Bava também havia utilizado um garoto ( Valério Valeri) para fazer o papel da pequena Melissa em Operazione paura. Em Pronfondo rosso, o amiguinho de Carlo é feito por uma moça...

3 Entrevista feita por Christophe Gans por ocasião do lançamento de Tenebrae na França. 


Dario Argento, o mágico do medo. O mundo e  suas dobras. Jean Baptiste Thoret

Tradução: Luiz Soares Júnior.