Seria preciso mobilizar todo
um arsenal de comparações musicais para falarmos da Imperatriz Yang Kuei Fei,
um dos últimos filmes de Mizoguchi. O cinema é a arte mais próxima da música,
pois é uma arte do tempo, e a economia interior de um filme se aproxima mais de
um concerto, uma sinfonia que de um quadro ou romance. Se Yang Kuei Fei pode
evocar a Berenice de Racine por seu estilhaçamento elegíaco, Cinna ou Nicomède
de Corneille pela amplidão dos interesses em jogo, Richard II de Shakespeare pelo
papel do personagem imperial, é finalmente com Mozart que se impõe uma
aproximação, em razão de uma suavidade na modulação sem igual. O principal ator
de Yang Kuei Fei não é nem o imperador Huang Tsung nem a imperatriz Kuei Fei,
mas o tempo. O imperador destronado e exilado numa ala de seu palácio
recorda-se dos dias passados. E é a qualidade incomparável desta lembrança que
confere ao filme suas vibrações sublimes, pois a evocação de um passado ainda
tão próximo e tão feliz permite ao príncipe elegíaco aceder à Eternidade. A
fragilidade e a incerteza de um amor temporal são abolidas em nome de uma
felicidade eterna, mais forte que a morte. O amor é uma vocação, e
evidentemente implica uma exigência de Absoluto, na medida em que busca ultrapassar
as contingências do tempo e da morte. Ele recusa a inexorável necessidade e a
implacável lógica de nosso universo, suas servidões, suas leis e seus limites.
Daí o tema da reencarnação, garantia para nós de que a morte não prevalece
contra nossa aspiração ao Eterno, nossa crença no triunfo último do amor.
Pensemos aqui no admirável Vertigo de Hitchcock, pois estes dois filmes possuem
em comum serem uma meditação sobre o amor e a morte.
É neste sentido que se pode
dizer, apesar da singularidade dos figurinos e dos costumes ( des costumes et
des coutumes), que Mizoguchi é o mais ocidental dos cineastas japoneses. Se seu
filme nos toca tão profundamente, é porque ilustra um dos temas mais profundos
da sensibilidade ocidental: o tema do amor cortês.
É útil saber que a ação se
desenrola no século VII, na época da dinastia T’ang. O império chinês, como seu
contemporâneo o império carolíngio, é um mundo feudal dominado por uma
aristocracia de funcionários estatais que sonham com a independência. No Oriente como no Ocidente, o
imperador se esforça grandemente para obter o respeito de seus dignatários e
assegurar a unidade do império. Deve lutar sem tréguas contra as tentativas de
“pronunciamiento” dos governadores de províncias excessivamente poderosas. A
polidez compassada dos altos funcionários, sua abjeta adulação, o ritual do
cerimonial imperial mascaram mal a brutalidade dos costumes. Mata-se com sinais
exteriores de respeito, mas mata-se. Assim, o exotismo dos hábitos e das
maneiras de agir não devem nos fazer esquecer o íntimo parentesco entre civilizações
em aparência tão irredutíveis. Em Constantinopla, em Aix-la-Chapelle ou
Changan, reina um clima idêntico de complots, maquinações e intrigas, de lucro
e rapinagens, e pensamos aqui fatalmente em reinos da história do Ocidente
europeu igualmente lacerados por perturbações e férteis em tragédias íntimas.
Mizoguchi nos torna tudo
isto presente; ficaria surpreso em descobrir neste filme algum dos anacronismos
que se encontram em tantos filmes europeus. Impressionam-me a precisão dos
detalhes, a autenticidade do clima sugerido. Semelhante grau de delicadeza é
garantia de uma perfeita harmonia do conjunto. À tragédia política, história de um império em aparência tão
poderoso e tão débil de fato, corresponde uma tragédia privada que a
infelicidade reinante do tempo torna ainda mais comovente. Neste mundo ao mesmo
tempo bárbaro e refinado, não se sabe o que fazer com um príncipe esteta e
sonhador, que não sabe adaptar sua conduta à razão do Estado. A razão dos
problemas do imperador não está em
que a família de sua mulher dilapide seu
tesouro, mas no fato de que ele consagra muito tempo à música e ao amor. Ele
sacrifica a arte de reinar à arte de viver, , e subordina desmedidamente as
exigências do poder às da paixão. Em consequência,a renúncia de Yang não lhe serve de nada, e ela
será destruída unicamente por culpa do amado. Neste clímax, Mizoguchi nos
restitui à perfeição o caráter igualmente cativante e decepcionante deste nobre
personagem.
Esta “chronicle play” é
magistralmente servida por uma mise en scène e uma cor de incomparáveis
delicadeza. Que graça, que suavidade no emprego de tons opacos e quebradiços
exaltados em certos momentos por acentos claros e fulgurantes! É Mizoguchi o
único responsável por este sucesso, pois seu fotógrafo deu-se menos bem nas
Portas do inferno.
Intitulei esta crítica: uma
inexorável doçura. Não deveríamos pensar em Resnais, diante desta mescla tão bem
dosada entre crueldade e suavidade?
Jean Domarchi, Cahiers du cinéma, agosto 1959
Tradução: Luiz Soares Júnior.