sexta-feira, 28 de maio de 2010

Uma brincadeira de crianças. Sobre Misterioso objeto ao meio-dia


Misterioso objeto ao meio-dia segue o percurso de uma equipe de cinema na Tailândia que, a cada etapa de sua trajetória, solicita a anônimos para que improvisem uma história. O ponto de partida da narrativa é dado pela primeira pessoa encontrada, uma vendedora ambulante de peixes; em seguida, cada narrador amador é informado do estado em que ficara a narrativa , e a continua à sua maneira. Dois regimes de imagens se alternam no filme; o regime “documentário” dos habitantes das vilas em sua vida cotidiana e filmados na iminência de improvisar seu segmento do conto; e um regime de “ficção”, tradução imediata, com personagens, da narrativa que está sendo improvisada. Misterioso objeto ao meio-dia é um filme alegre, que suscita um prazer lúdico e uma fruição infantil do cinema: isto se dá por meio do jogo de pistas orquestrado pelo autor entre documentário e ficção, entre imagem e som, entre o filme e sua fabricação.

Dentre as inumeráveis leituras possíveis do filme, escolhamos duas. Podemos marcar uma cisão entre “Misterioso objeto” e “ao meio-dia”, e assim reproduzir a estrutura clivada do filme. Como Eternamente sua e Mal tropical, ele é dividido em duas partes bem desiguais: o conto e sua elaboração pelos habitantes das vilas, cujo fim é indicado por um título em forma de créditos, e uma espécie de coda 1 , de apêndice sem intrigas, delimitado e intitulado pelo sibilino carton “Ao meio-dia”. “Misterioso objeto” seria o título da primeira parte, e teria duas significações. Ele pode designar o misterioso objeto que uma narradora introduz no conto: uma bala que, ao cair do bolso do professor, se transforma em um rapaz. O objeto misterioso é também o próprio conto, cadáver requintado ( cadavre exquis) 2 de cinema, monstro estético produzido pelo encontro sobre a mesa de montagem da narrativa oral tradicional, do teatro amador e do cinema moderno. “Ao meio-dia” seria o título de um curto documentário sobre jogos infantis ao meio-dia: algumas crianças jogam futebol da escola, outras se divertem com um cachorro no quintal de casa, situado numa clareira da floresta.

Segunda leitura: o misterioso objeto ao meio-dia é o carrinho de plástico que as crianças amarram no pescoço do cachorro, enquanto uma mulher s instiga a ir lavar as mãos antes de almoçar. Colocar um brinquedo no pescoço de um cachorro é fazer uma versão infantil do “cadavre exquis”: ligar dois elementos heterogêneos e ver o que produz o seu encadeamento.

A coda documentária expõe a arte poética do filme ou, se preferirem, figura um auto-retrato do cineasta enquanto criança que brinca. Primeiro ponto: as ficções afloram nos terrenos baldios dos tempos mortos da vida cotidiana. Segundo ponto: fazer aflorar uma ficção, consiste em fazer raccord entre fragmentos de vida que não se encadeiam, sem procurar preencher os vazios. Terceiro ponto: inventar semelhantes histórias é um jogo de crianças. O cinema de Weerarasethakul encontra sua fonte na memória da infância, ou seja, num tempo onde a vida era apenas tempos mortos, onde o mundo não era ainda o teatro saturado de nossas preocupações , mas uma caixa de brinquedos da qual podíamos dispor livremente para ousar inventar colagens, inventar relações. Weerasethakul não perdeu o fio deste tempo, e seu cinema no-lo oferece. Ele surpreende nosso hábitos de cinéfilos adultos restituindo ao cinema a juventude despreocupada de uma arte capaz de todas as hibridações: a iniciação amorosa toma emprestado as rotas dos contos ancestrais ( Mal dos trópicos), desenhos desajeitados são impressos na superfície narrativa de uma escapada amorosa ( Eternamente sua), legendas permitem a macacos falarem, etc


Colocar um carrinho de plástico no pescoço de um cachorro é também fazer uma montagem áudio-visual. A fuga amedrontada do animal, fonte do prazer infantil, é causada menos pelo brinquedo do que pelo ruído que ele emite ao se arrastar e perambular pelo chão.A invenção consiste em montar um som e uma imagem que a priori não “vão bem” juntas, e ver o que produz a sua junção.

A montagem do som e da imagem é o gesto motor de um filme cujo fim consiste em encadear o registro documentário de uma seqüência de improvisações orais e os fragmentos “encenados” ( mis en scène) da ficção improvisada. Ao invés de simplesmente justapor o documentário e a ficção, de fazê-los alternar numa lógica de ilustração ou de revezamentos, Weerasethakul utiliza a disjunção entre imagem e som para organizar a confusão entre estes dois registros. Várias vezes, o espectador não sabe dizer se o que assiste é de caráter documental ou ficcional. Apenas o som pode guiá-lo... ou perdê-lo.


Este poder do som se mostra mais evidente na primeira passagem à ficção. Depois do carton “Era uma vez”, o filme começa com um longo travelling tomado do interior de um carro em movimento. Esta abertura possui o valor de um programa estético e dramático: ela coloca, ligando-os, as aventuras do conto oral e o princípio de disjunção áudio-visual. O desfile contínuo da paisagem urbana é acompanhado pelo som fora de campo do rádio do carro: sobre um fundo de canção pop sentimental, uma voz masculina narra uma história de amor fracassado, depois recita uma mensagem publicitária. Um outro homem toma a dianteira – adivinhamos, pela mudança no registro da voz, que se trata do condutor do carro falando num auto-falante: “A cavala tá chegando! Direto de Mae Khong! Cavala ao vapor e cavala salgada!” Nos fundos do furgão está sentada uma mulher. Depois de alguns planos de diálogos entre os vendedores e os camponeses, a vendedora de peixes, de frente para a câmera, começa a falar de sua infância. É uma lembrança dolorosa. Pouco sensível à comoção da narradora, o interlocutor fora de campo- compreenderemos mais tarde que se trata da equipe de cinema encarregada de coletar os fragmentos do conto coletivo- pede-lhe para contar uma outra história, “não importa qual história, um romance ou outra coisa”. Aparentemente constrangida, a vendedora demora a continuar. Sem ruptura sonora, sobre o fundo do mesmo som ambiente, a mudança de plano transporta-nos para o interior de uma casa: um rapazinho está sentado diante de uma mesa, uma mulher olha pela janela no plano de fundo. Depois de alguns segundos, ouvimos novamente a voz do vendedor de peixes , ligeiramente abafada pela distância: “A cavala tá chegando! A cavala de Mae Klong!” Enquanto a mulher deixa a janela para ficar próxima ao rapaz sentado à mesa, o vendedor prossegue com seu discurso. Som e imagem parecem sincrônicos, a continuidade sonora incita a interpretar a montagem-imagem no sentido da continuidade: simplesmente passamos para o interior da casa perto da qual estacara o vendedor de peixes, cuja voz entra pela janela, diante da qual se mantinha a mulher, sem dúvida atraída pelo ruído do furgão. Até que ouvimos novamente a voz da vendedora: “Digamos que havia uma casa. E nela um rapaz doente e uma professora”. O nível desta voz surpreende: ela é mixada muito intensamente para estar vindo do exterior, do fora de campo. O ponto de escuta é o mesmo que o do plano precedente: o interior do furgão. As palavras da vendedora, ao redobrar o visível, modificam a posteriori a compreensão da montagem e revelam a passagem, no corte, a um outro regime de imagem. A impressão de continuidade era falsa: aqui começa a narrativa improvisada do conto e, simultaneamente, sua encenação cinematográfica. O som não era sincrônico, ele faz persistir, no fora de campo, o universo documentário sobre as imagens mudas da ficção.

Ao superpor a captação documentária da improvisação oral e a recreação ficcional do conto, Weerasethakul realiza realiza um fantasma de cinema e um sonho de criança: aquele de um encadeamento imediato do visível sobre o oral, da imagem sobre a palavra. A potência performática da palavra é atualizada na economia do filme pelo poder do som sobre a imagem. Em várias ocasiões, a imagem é colocada em suspensão, indeterminada, entre os dois regimes. Então, é o som que é encarregado , com um retardo mais ou menos longo, de qualificar a imagem, de fazê-la se colocar de um lado ou de outro da fronteira porosa entre ficção e documentário.

A disjunção áudio-visual abre assim um espaço comum aos dois regimes do filme. As ficções não são concebidas ex nihilo em um espaço separado do mundo, mas são tomadas pelas malhas da realidade cotidiana, à espreita de sua realização. O percurso da equipe de cinema pela Tailândia age como um revelateur. A ficção do conto eclode espontaneamente à sua passagem. Improvisar um conto parece então o gesto mais natural do mundo: lançamo-nos nesta tarefa enquanto preparamos o jantar, depois o vizinho se engaja no processo. A única condição a esta cristalização espontânea reside na disponibilidade oferecida pelo tempo morto. É preciso saber “tomar/ dar um tempo”, distanciar a trama da vida cotidiana, suspender as ocupações para nos tornarmos disponíveis à potência ficcional que cada um carrega em si. Esta qualidade de presença no mundo não é dada a qualquer um: os tailandeses anônimos que desfilam diante da câmera impressionam pelo jogo que sabem introduzir nas engrenagens de suas vidas.

A passagem sem descontinuidade do documentário à ficção aparece explicitamente no filme. As convenções de uso querem que o making of seja um objeto em separado, filmado por um outro realizador, sob um outro ângulo, distinguido do filme por uma espécie de imagem mais “docu”. Em um plano de Misterioso objeto, ficção e making of da ficção se enlaçam em uma mesma duração, segundo o mesmo ponto de vista. A criança extra-terrestre saída do carro está sentado em uma cadeira, outras pessoas no chão. Um estratagema invisível de montagem faz desaparecer, depois reaparecer o extra-terrestre. O professor, de pé, termina um monólogo com estas palavras: “Mas bem, eu vou te contar esta história mais tarde”. Depois de alguns segundos, um rapaz parcialmente sentado se levanta, sai do recinto por uma abertura à direita do campo, reúne algumas folhas grampeadas, e entra novamente. O extra-terrestre subitamente se dirige à câmera e pergunta: “você filmou mesmo? Foi bom, terminou?” Uma discussão começa entre os atores e um homem fora do campo; quando ele entra no campo, reconhecemos Weerasethakul. Nenhum “cut!” fora pronunciado para assinalar o fim da tomada, a interrupção da ficção. A continuidade se apóia na retomada, depois da passagem ao making of , do “efeito especial” utilizado alguns segundos antes na ficção.

Não é mais o personagem do extra-terrestre que desaparece, mas um simples ator- fôra seu script que ele havia tomado entre as mãos durante os poucos segundos flutuantes entre a ficção e o documentário. Neste plano, o jogo entre o som e a imagem é invertido em relação à primeira passagem à ficção. É a imagem que produz a continuidade, enquanto que a descontinuidade é produzida pela trilha sonora, pela passagem dos atores do diálogo escrito à conversação livre com a equipe do filme. Mas é sempre o som que vem suscitar a ambigüidade, qualificar uma imagem desdobrada, suspensa entre a ficção e sua fabricação.

Walter Benjamin apresenta o “contador de histórias” como uma espécie em vias de desaparição nos tempos do romance moderno e do cinema. O conto não é tecnologicamente reprodutível; ele se transmite oralmente. Ao contrário do romancista, recolhido em sua solidão para escrever, o contador conta histórias entre os outros homens, sua narrativa não está separada de sua vida: “o que ele conta torna-se experiência naqueles que escutam sua história”. Misterioso objeto prova que o cinema, longe de desqualificar a forma oral de transmissão de experiências, constituída pelo conto, pode, pelo contrário, prolongá-la, tomar por sua própria conta a tarefa de encadear- uma história com outra, a ficção e a vida, a oralidade e as imagens. O filme de Weerasethakul não cessa de encaixar os contos uns nos outros. O conto principal é precedido de duas narrativas, uma escutada no rádio, a outra dita pela vendedora de peixes. A criança que termina a história da professora e do extra-terrestre não pode se impedir de implicá-la em um outro conto: uma história de tigre-feiticeiro, embrião de Mal dos trópicos- filme cuja abertura poderia ser o fim de um conto sobre ao qual este filme se liga...e assim sucessivamente, até o último encadeamento, o do carrinho no pescoço do cão, ponto de partida possível para um outro conto. Emaranhado na trama da vida cotidiana, dela se deslindando em direção ao maravilhoso para sem cessar retomá-la, o cinema de Weerasethakul assemelha-se ao conto, tal como descrito por Walter Benjamin: “é a memória que tece o fio que em definitivo forja todas as histórias. Pois estas se ligam todas entre si, como os grandes contadores de histórias, particularmente as Orientais, sempre se empenharam em sublinhar. Em todos eles vive uma Scheherazade, para quem cada episódio de uma história evoca imediata e irreversivelmente outra”.



Cyril Neyrat, Vertigo número 27 , revue de cinéma


Tradução: Luiz Soares Júnior.



Notas:



  1. Coda: Palavra italiana que designa o segmento com que se termina uma música.

2. Cadavre exquis: Jogo literário inventado pelos surrealistas que consiste na composição de um texto ou desenho por várias pessoas, sem que nenhuma seja informada do elemento trazido pelo colaborador precedente. Assim, no romance coletivo “L’amiral flottant”, cujo primeiro capítulo foi escrito por Chesterton, nenhum dos autores conhecia a continuação da história, e deve, segundo Michel Lebrun, se empenhar a deslindar a situação problemática com a qual o predecessor concluíra o capítulo precedente e, por seu turno, a complicar o máximo possível o presente capítulo, a fim de colocar o próximo autor na mesma dificuldade de execução.