quinta-feira, 29 de abril de 2010

Lost Highway: o isolamento sensorial segundo Lynch

A leitura do roteiro de Lost highway, que acaba de ser lançado, é muito instrutiva. Revela-nos que a versão final do filme de David Lynch é o resultado de um refinado trabalho de cortes. Todas as seqüências com caráter explicativo foram excluídas. Todas as junções narrativas foram cuidadosamente eliminadas. O filme ,é claro, ganhou em potência elíptica. Esta “poda” narrativa lhe permitiu sobretudo atingir uma perturbadora opacidade, que procede de uma série de golpes de força rítmicos absolutamente envolventes. Deste ponto de vista, Lost highway é certamente um dos filmes contemporâneos que mais suscitou interrogações da parte de um espectador desorientado, e que busca se situar. Podemos assim presumir que Lynch projetou, com este filme profundamente inovador, criar uma relação totalmente inédita com o espectador.
Por um lado, o filme distribui uma multiplicidade de signos, de índices, de enigmas, de lapsos que, por meio de um jogo de pistas, espelham uma dimensão ( doublure, dobra) secreta da realidade; esta, tal qual um inconsciente muito ativo, se manifestaria permanentemente de forma descontínua, e encobriria a vida com um leve véu paranóico. É a função conspiradora e esotérica do roteiro. Tudo em Lost highway, aliás como também em Twin Peaks, o filme e a série, remete a um complot inexprimível, feito de premonições e de percepções extra-sensoriais, o que os aparenta tanto a uma certa tendência do cinema moderno, a do sentido suspenso ( ver a recente programação da Cinemateca Francesa em torno do tema da conspiração), quanto à lógica do romance-folhetim, de que a série X Files ( exibida no M6) é um avatar absolutamente apaixonante, e cuja estética deve muito à série Twin Peaks. Os signos flutuam e não mais se ligam uns aos outros. A narrativa não está mais em primeiro plano, mas tem essencialmente uma função rítmica ou climática. Notemos que esta forma de abstração lírica não é absolutamente o apanágio de um cinema de autor, ou de artista, mas encontra insuspeitáveis ressonâncias no cinema de ação. De The last action hero ( John McTiernan) ao recente e curioso Au revoir à jamais ( Renny Harlin), passando por Die Hard 3 ( McTiernan ainda) ou L’Effaceur ( Charles Russel), a distribuição de signos enigmáticos e a ausência de uma ligação aparente entre eles tornou-se uma verdadeira figura de estilo. A ausência de raccord no nível espacial encontra enfim sua correspondência no nível mental. Em Lost Highway, o complot é sem fim, sem fundo, o inimigo está no interior do país ou do cérebro, e as significações deliram. Pois toda a arte de Lynch, que atinge seu auge em Lost Highway, consiste em fazer a América delirar- seu puritanismo, suas soap-operas, suas perversões ocultas, seus complots- ou seja, fazê-la sair de seus esconderijos.
Por outro lado, Lynch busca um contato hiper-sensorial com seu espectador; ele trabalha no sentido de colocá-lo em um certo estado de receptividade, fazendo-o simultaneamente se desorientar ( perdre pied) e encontrar uma nova relação com fluxos de percepção excessivamente sutis, que se aparentam, é claro, aos que nos é possível atingir através do uso de uma droga. É a função musical ou cerimonial da mise en scéne. Há, deste ponto de vista, um evidente parentesco entre o cinema de Kenneth Anger e o de David Lynch. Em ambos, o metteur en scéne é uma espécie de xamã, de médium que busca suscitar o transe no espectador, com o objetivo de manter despertas regiões anestesiadas de seu cérebro. Isto é particularmente verdadeiro no caso das cenas de amor em Lost Highway, verdadeiras cerimônias inquietantes , e que fazem assomar não apenas os fluxos eróticos mas cósmicos. A música, tanto em Anger quanto em Lynch, desempenha também um papel fundamental. Anger aliás usou a canção Blue velvet vários anos antes de Lynch. Em Lost highway, cada trecho musical, do genial I’m deranged de Bowie a This magic moment de Lou Reed, passando pela sublime Insensatez de Antonio Carlos Jobim, sem esquecer todas as intervenções de Trent Raznor ( que já concebera a trilha sonora de Natural born killers de Oliver Stone), funciona ao mesmo tempo como um comentário da seqüência correspondente e como uma intensificação da ação que decorre. Lynch, com a cumplicidade de Badalamenti, cria assim uma verdadeira narrativa musical paralela, com seus cuts brutais e suas revoadas líricas. Assim como a música é absolutamente visual, a mise em scéne torna-se musical. Desde Blue velvet, Lynch tem a tendência a fazer durar cada vez mais as sequências, a estirá-las, a infundir-lhes uma metástase e a considerá-las como entidades autônomas que são tratadas musicalmente. Em Lost highway, esta dimensão hipnótica e musical da mise en scéne é de tal forma interna ao filme que dir-se-ia que a arte de Lynch está às vezes mais próxima de certos músicos conceituais- como Brian Eno, Tricky ou Bjork, que cria uma realidade musical fascinante por seu ultrapassamento das contradições entre tecnologia e instrumentação tradicional- que do cinema.
No ponto de encontro de todas estas funções, há o filme, realidade em si que não possui outro referente senão ele mesmo. Para compreender Lost highway, o pior lugar seria o ocupado pelo espectador-detetive ( lugar de que os policiais no filme, sempre pasmos, são os substitutos ideais), que desejaria a todo preço decifrar ou interpretar o filme através de um discurso, um saber, uma estrutura unívoca, quer esta seja analítica, policial, cinefílica, mística ou simplesmente filosófica, mas sempre exterior a este film-boîte1. Não que este filme-máquina não possa acolher toda a espécie de significações , mas apenas para eletrizá-las e fazê-las girar; é absolutamente necessário entrar no filme de Lynch como no interior de um organismo vivo, nele se abrigar, de habitá-lo e ser por ele habitado, de assombrá-lo e ser assombrado por ele. A figura do anel de Moebius, com suas duas faces que se voltam para si mesmas, evocada por Michel Chion em sua excelente monografia sobre Lynch, jamais foi tão adequada do que quando aplicada a Lost Highway. O jogo de dualidades, de ressonâncias, de ecos que constituem o próprio fundo do filme não nos diz outra coisa. Tudo é duplo em Lost highway- os personagens, as situações, os objetos-, e cada elemento só pode ser percebido em função de uma rede de correspondências próprias ao filme. O espectador é tomado em um circuito integrado, um círculo involutivo no interior do qual ele deve criar suas próprias referências. Ainda mais que em Level 5, Lost highway talvez seja este puzzle, invocado por Chris Marker, cujo desenho não remete mais a nenhum modelo, mas unicamente a si.
O circuito temporal de Lost highwayw é muito estranho. Embora a idéia da narrativa seja finalmente muito linear e suponha uma sucessão temporal cronológica, tudo se passa como se as relações entre o passado, o presente e o futuro não obedecessem mais a regras de subordinação. Sem revolucionar de maneira explícita a cronologia, Lynch torna impossível a identificação do momento. A substituição de identidade entre Fred Madison e Pete Dayton é o pivot do filme, mas sem seguida nada nos garante que o que é situado cronologicamente depois não tenha se passado antes, pois o fim do filme remete à sequência da abertura. Mais precisamente, o tempo da narrativa, em Lost highway, constitui ainda um tempo perfeitamente interno a si mesmo, cujo desenrolar obedece a regras que não tem nada em comum com as do tempo da crônica. É um tempo espacializado. Como o Homem-Mistério, o tempo possui de alguma forma o dom da ubiqüidade. Mas ele é fechado sobre si mesmo apenas em aparência, pois pode permanentemente integrar informações que o fazem mudar de direção. Neste sentido, o cineasta mais próximo de Lynch seria talvez o Bergman que, em meados dos anos 60, forjou filmes-cérebro, cuja lógica própria é a de uma máquina produtora de imagens e de um espiral de tempos internos a estas mesmas imagens. A aproximação não é fortuita, já que Lynch é um grande admirador de Bergman, a tal ponto que o rosto do Homem-Mistério em Lost Highway assemelha-se à máscara da Morte em Sétimo selo. Dir-se-ia assim que se Twin Peaks era para Lynch um equivalente possível da Hora do lobo, Lost highway é um pouco o seu Persona, por seu jogo sobre a dualidade e a dissolução do tempo e da identidade que este jogo pressupõe. No mundo anglo-saxônico, apenas Kubrick e Cronenber souberam criar cristais de tempo tão fascinantes. 2001 e Shining produziram em sua época o mesmo efeito de sideração e desorientação. Videodrome e Crash igualmente. O precursor desta estruturação do tempo é, evidentemente, Hitchcock que, com Vertigo, tinha criado uma linha temporal perfeitamente autônoma, já fundada sobre a repetição e a dualidade. Mas Vertigo, que claramente é a matriz do filme de Lynch ( que nos propõe uma versão invertida, na qual a morena é frígida e a loira explosiva), como tantos outros, permanecia, apesar de sua extraordinária potência poética, ainda ligado a uma cronologia muito tradicional. Enquanto que Lost Highway, assim como Shining antes dele, ou Crash bem recentemente, poderia ser visto como um filme-instalação, que nos contempla tanto quanto é contemplado, que nos persegue tanto quanto nós o encaramos. Neste sentido, o trabalho de Lynch é tão próximo de Hitchcock quanto de artistas contemporâneos como Bill Viola ou Gary Hill. Ou mais exatamente: ele é uma releitura de Hitchcock no tempo das instalações especulativas. . As câmeras-cassetes de vigilância em Lost highway são como naves exploradoras, sondas de imagens que criam um horizonte virtual, um pouco à maneira das instalações de Gary Hill. Em outros momentos, a utilização da multi-projeção e da superimpressão evoca diretamente a arte de Bill Viola. Lost highway é uma fita de sonhos, como a estrada perdida que vemos desfilar a toda velocidade nos créditos, mas é uma fita que teria integrado, nos tempos do vídeo e da eletrônica, os avanços e retrocessos rápidos. Assim, pode-se, a todo momento do filme, entrarmos em contato com não importa qualquer outro instante do filme. Dom de ubiqüidade, ainda e sempre...
Se o cinema de Lynch é abstrato, é à força de ser figurativo. Carregado de todas as imagens americanas, das mais artísticas- o fascínio de Lynch por Edward Hopper não é desmentido aqui- às mais triviais- a publicidade e, claro,a pornografia-, passando pela fotografia, as séries televisivas, ou ainda algumas obras fulgurantes ( A morte num beijo ou A marca da maldade, ou mesmo seus próprios filmes, Eraserhead e Blue Velvet, sem esquecer todos os outros que foram citados). No entanto, Lost highway é o contrário de um filme-citação. Longe do maneirismo ou da referência, dir-se-ia que Lynch integrou todas estas imagens em um fundo indiferenciado que faz coexistirem múltiplas espessuras, a fim de melhor fazer assomarem suas próprias figuras. A figuração, que é o grande assunto do cinema americano ( ver Mars attacks! De Tim Burton, filme que tira sua força de uma arte estritamente figurativa), toma em Lynch uma dimensão particularmente saturada. Este excesso de figuração, cujo emblema mais intenso será o personagem de Patrícia Arquette, leva à iconoclastia ( a desfiguração ou o esfacelamento), que igualmente é ultrapassada em direção a uma abstração que passa pela “descarga” de todas as figuras, e se aparenta muito nitidamente ao processo cibernético de compressão de dados. Tendo assim realizado sua própria revolução, Lost Highway pode desta maneira flutuar no éter, aberto a todas as virtualidades, máquina de pensamento que marca a espantosa irrupção de um grande cinema figurativo-abstrato.

Thierry Jousse
Cahiers du Cinéma, número 511
Tradução: Luiz Soares Júnior.
1. Film boîte: Filme caixa, fechado em si mesmo, tendo a si mesmo como referente.

O esplendor na relva. Sobre Nouvelle Vague

Nouvelle vague ou o retorno de Godard sobre os espaços de uma história. Delon e seu duplo em busca de sua identidade. Eu sou um Outro. Em Cannes e em qualquer outro lugar, a natureza, o amor, o dinheiro, o encontro, o poder. Elle est retrouvée- Quoi?- L’éternité.

Nouvelle vague. A ambição de Godard, confessada desde a primeira frase de Nouvelle vague ( ou Vague Nouvelle) pela voz-off de Alain Delon, consiste hoje em escrever uma narrativa. O que pressupõe uma história, uma trajetória, um modo de narração. Diz-se repetidamente que Godard era incapaz de contar uma história, de manter a distância da narrativa para se dar ao luxo de maravilhar-se. No entanto, talvez pela primeira vez, ele consegue ganhar a aposta da história. O enunciado é aliás bastante simples, límpido como a água do lago que Godard sente prazer em filmar. Basta reportarmo-nos ao texto de apresentação que Godard se deu ao trabalho de escrever ( Cahiers, 431-432). Ao termo de uma dupla prova, um homem e uma mulher se reconhecem. É uma história de duplos, de amor, de dinheiro, de ressurreição.
A verdadeira novidade de Nouvelle vague está no tempo. Tradicionalmente, o tempo de um filme de Godard é de natureza intensiva, ou seja, jamais está ligado ao desenrolar da fita da película durante a duração da projeção. É uma espécie de presente perpétuo que não acumula uma energia cronológica, que é indivisível em passado, presente e futuro. Pra usar uma metáfora matemática, trata-se de um tempo expresso “compreensivamente” ( en compréhenson), ou seja, de um único jorro, em uma única vez, e não em extensão, como o exigem as leis da narrativa; um tempo puramente espacial, que não remete à “curva” ( courbe) , à parábola de uma história preexistente ao filme. A inverso disto ou quase, Nouvelle vague nos dá a sensação de ser o primeiro filme de Godard escrito, narrado no passado simples, o tempo da narrativa. Faulkner e Chandler, abundantemente citados, são espécies de arquétipos ou modelos, os últimos grandes escritores do esplendor romanesco. Chandler nos chama a atenção, por sua presença virtual, para o fato de que toda história é policial, e que ela contém um mistério em si mesma. Quanto às frases de Faulkner, com freqüência fazem alusões ao ritmo das estações: “o versão estava desgovernado”, e sobretudo “Todos eles perfilados sobre o fundo do verde luxuriante do verão,e o abrasamento real do outono e a ruína do inverno, antes que a primavera florisse novamente” ( frase já citada em Grandeza e decadência de um pequeno comércio de cinema). É sem dúvida inspirado por esta referência que depois do primeiro afogamento, a primeira cisão da narrativa, Godard filma o desenrolar das estações, a pura e simples passagem do tempo. Alguns planos da Natureza- o sol, a chuva, o vento- bastam-lhe amplamente. Mas estes breves instantes de suspensão criam um verdadeiro corte na narrativa. E, ainda à maneira de Faulkner, Godard pode retomar a segunda onda ( vague) em curso ( Delon/Lennox já retornou, dois dias depois), e entrar por refração no segundo tempo da narrativa para melhor acompanhar a sua história. Em suma, reina em Nouvelle vague uma espécie de fatalidade trágica que não havíamos sentido desde, digamos, Pierrot le fou. Não é por nada. De onde vem esta história de um homem que retorna? Difícil de dizer. Sem dúvida, não diretamente da literatura, como a de Prénom Carmen, mesmo se pensarmos nas grande narrativas mitológicas de retorno à pátria, como a de Ulisses; da Bíblia tampouco, como em Je vous salue Marie, mesmo se evidentemente trata-se aqui de ressurreição e que não possamos nos impedir de entrever no personagem de Delon/Lennox uma figura crística. Mais simplesmente, creio que esta história vem do passado. Ela remonta lentamente à superfície para chegar até nós. Do passado do próprio Godard, que não hesita a se referir diretamente ao mundo de sua infância, mundo onde, como aqui, o dinheiro reinava sem divisões; mas também de um passado mais indefinível, atravessado por memórias do cinema.
A imagem se encontra no passado, portanto. É este mesmo o tema do filme. É a história de uma repetição, de uma imagem que volta, de uma imagem enterrada sob uma outra. A escolha de Delon é aliás intimamente ligada às reminiscências, às harmonias que ele contém e sugere. Durante o afogamento, é O sol por testemunha que ressurge e, face ao personagem de Roger Lennox ( o do primeiro tempo), não podemos deixar de pensar no garagista atordoado de Notre histoire ( Bertrand Blier), um filme que Godard confessa amar bastante. O sentimento ambivalente do já-vivido domina Nouvelle vague. “A lembrança é o único paraíso do qual não podemos ser expulsos. A lembrança é o único inferno ao qual estamos condenados”, diz uma voz um tanto fúnebre. Tudo é duplo como Delon e seu fantasma, que assombram a tela. A imagem é forçosamente virtual e alojada em uma outra imagem. Aliás, a idéia de uma segunda chance, da “onda” ( vague) que retorna e que seleciona não nos deixa de lembrar do roteiro de Vertigo. Um pouco à maneira de Scottie/Stewart, Alain Delon/Lennox busca fazer reviver uma imagem atualizando-a, tentando modificar-lhe o fim e a destinação. Mas em Hitchcock, o eterno retorno conduzia à morte, enquanto que em Godard, ele atinge, pelo contrágio, o renascimento. Os dados são relançados. O tempo sai de sua garagem para partir novamente, sobre novos trilhos. Foi dito aqui e ali que Nouvelle vague era um filme que exalava a tristeza e a melancolia. Se há um poeta elegíaco em Godard, em particular no simples sentimento da fuga do tempo, eu creio no entanto que Nouvelle vague é o filme do renascimento, da ressurreição da imagem.
Como todo filme de Godard, Nouvelle vague propõe uma interrogação sobre a imagem. Qual o seu status? Sua natureza? Qual o seu lugar? Em uma curta seqüência, Godard, pedagógico, nos propõe um exemplo. Uma imagem: A neve sobre a água= o silêncio sobre o silêncio. Este instantâneo joga ao menos sobre dois níveis. Primeiro enquanto definição da imagem e de sua manifestação. A imagem é, em Nouvelle vague, o que quer escapar à palavra, o que se situa para aquém do ato de nomeação, o que advém em um movimento de suspensão que precede ao nome ( era já este o sentido de Prénom Carmen). Res non verba, nos diz um intertítulo latino do filme- as coisas, não as palavras. “A imagem é autista. Eu quero dizer que ela não fala. A imagem não diz nada”, dizia Fernand Deligny ( Cahiers, número 428). Estas palavras do psiquiatra-filósofo, Godard poderia fazer suas. Pois a imagem em Nouvelle vague luta para existir mineral ou vegetativamente, como em um movimento de retorno às origens. Salvo que a origem aqui não se situa no antes, mas no depois, reconquistada pelo cinema hoje. Os planos de árvores ou cavalos, assim como os de Delon ou Domiziana Giordano, estão lá ontologicamente. Não significam, eles se impõem.
O segundo nível é aquele da metáfora, ou mais exatamente da alegoria. Mas Godard opera uma inversão da alegoria, enquanto figura literária. Não se trata da viagem do abstrato em direção ao concreto, para a encarnação, o sentido tradicional da imagem de que restavam, sem dúvida, traços nos equivalentes corpos-natureza de Je vous salue Marie; aqui, trata-se do contrário, de ir do concreto para o abstrato. A neve sobre a água produz o silêncio sobre o silêncio. A força de Nouvelle vague consiste em exprimir, através da imagem de existências, puras essências. O amor, o dinheiro, o encontro, a natureza, o poder. A imagem, seu segredo, é o segredo da própria essência. A árvore, diante da qual se encontram a condessa Torlato-Favrini e Roger Lennox, torna-se imediatamente a árvore do conhecimento (aquele diante do qual adquirimos conhecimento, dixit Godard em um raccourci cujo segredo ele detém).
Quanto à esfera do dinheiro, é a que detém o papel mais explícito. Todos estes personagens que gravitam em volutas e arabescos em torno do núcleo central do casal e da natureza não exprimem nada além da natureza abstrata do poder econômico. Este mundo das altas finanças, este concentrado da grande burguesia européia desempenha provavelmente aí um papel duplo. Não podemos nos impedir de ver, uma vez mais, a figuração literal do dinheiro que foi usado para fazer o filme. Contraditoriamente, pode-se dizer que o filme existe ao mesmo tempo graças ao dinheiro e contra o dinheiro, em um movimento simultâneo de corrupção e de construção. Mas a economia que preside à história tornou-se puramente abstrata. O dinheiro tornou-se invisível, não é nada além de um signo, e a economia nada além de linguagem. Não há mais valor de uso, mas apenas valor de troca em um movimento de pura circulação não figurativa.
A alegoria invertida é um deslocamento. E o deslocamento, sob a forma de um travelling lateral ou horizontal recorrentes, é a figura-mãe de Nouvelle vague, a que estrutura o filme à maneira de um leitmotiv ou de um refrão. Para parafrasear a frase de Rivarol, citada no filme, “Pois as paixões nos dilaceram, mas a sintaxe de Godard ( e do cinema) é incorruptível”. O que nos garante este instante de pura felicidade onde, em um duplo travelling invertido, Godard nos dá novamente uma definição instantânea do cinema. Luzes que se apagam e que se acendem. Positivo e negativo. O cinema como Noite Transfigurada. E é ainda o travelling que transmite o sentimento aquático da fluidez, o movimento do fluxo e do refluxo, da onda que vai e retorna. É provavelmente o que dá a Nouvelle vague seu caráter apaziguado, quase clássico, em todos os casos profundamente decantado, ao contrário de Soigne ta droite, filme em crise que expõe sobre a tela a profunda derrisão da imagem e sua incapacidade a existir ainda nos dias de hoje. Parece-me que Nouvelle vague inaugura um período de verdadeira maturidade, ao mesmo tempo em que assinala um novo começo na obra de Godard. Eis aí a segunda chance.


Thierry Jousse
Cahiers du Cinéma, número 433, junho 1990.

Tradução: Luiz Soares Júnior.

sábado, 17 de abril de 2010

Feuillade e seu duplo


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Vemos imediatamente o que liga Judex- que se inscreve naturalmente no mundo excessivamente reservado de Franju- à continuidade de uma obra de que começamos a conhecer as referências e os pontos de apoio, como este bestiário favorito de pombas e cães, estes malefícios noturnos e calmarias diurnas ( depois, o contrário), ou ainda esta criatura mediúnica assumida por Edith Scob desde La téte contre les murs, de filme em filme. Estabeleçamos antes que se trata em Judex do primeiro Franju “em repouso”( passado este Pleins feux, irrealizado), digamos, de reconciliação. É fácil constatar que toda sua obra gravita e se organiza a partir de duas linhas de força essenciais, igualmente líricas, mas uma corresponde a um impulso de insurreição, denunciador( Le Sang, Hotel, La tête, Thérèse), a outra a um movimento de nostalgia e de apaziguamento ( Le Grand Méliès), a primeira veia ligando-se à representação de um trágico-documentário ou transposto- mas presente, a outra procedendo antes de um olhar menos crispado que tenta unificar , por intermédio assumido da arte ou de uma reflexão sobre a arte, o passado ao presente. Em comum, uma atenção segura no sentido de preservar e enriquecer uma eficácia didática de observação pela contribuição de uma poética pessoal que refere, ao fim das contas, o lirismo da criação ao próprio movimento desta criação.
Nesta ordem de idéias, Judex parece uma variação nova do fundador da Cinemateca Francesa sobre o nascimento do cinema, uma meditação “romanceada” sobre Feuillade, completando a meditação documentária sobre Méliès; seja porque, em ambos os criadores, face a uma avant-garde que deve sua sobrevivência unicamente à História, se conciliavam as aspirações da arte popular e os germes do cinema moderno, “Le Grand Feuillade”, depois de “Le Grand Méliès”, constituíam ao mesmo tempo homenagem, análise e crítica que são apenas três formas de amor: a exaltação do realismo onírico do primeiro “prova” o cinema contra o onirismo realista do segundo ( e vice-versa), como a ficção persegue a realidade, como as atualidades reconstituídas do mágico Méliès julgavam e fundavam os marcos da autenticidade.
A atividade desacreditada do “remake” encontra portanto aqui uma justificação pouco comum. “É preciso recompensar os plagiadores”, repete Jean Renoir, sempre razoável; não que esta arte possa ser reduzida aos parâmetros da cópia e da imitação, pois nos encontramos justamente nos antípodas da fraude e da facilidade. Mas seria divertido imaginar o elogio sistemático da retomada ( reprise) , do elogio ou, segundo o caso, da traição, da apropriação, da contradição. Que um Logan “desvie” Pagnol em proveito próprio só depende de uma substituição, de qualquer forma legítima, de folclore. Mas entre A cadela e Scarlet Street, ou A besta humana e Human desire ( ou ainda entre The diary of a chambermaid e Le journal d’une femme de chambre), é com o decalque impossível, com o confronto entre dois universos inassimiláveis ( e que, no entanto, se roçam pela graça de um tema em comum, de um sub-reptício “a partir de”) que temos de lidar, cada um dando a mais justa medida , à sua maneira, da irredutível do outro; o jogo da restrição e da liberdade exposto à pureza mais imediatamente visível, mais reconhecível de seu próprio mecanismo. Mas Franju-Feuillade é ainda outra coisa. Seríamos tentados a dizer: como Picasso impondo a Courbet ou a Velásquez um imperioso renascimento, soberbo ( mesmo que às custas de uma violação), renascimento que os destina a uma modernidade conquistada pela segunda vez.
Violação e renascimento, mas também luta singular entre dois saberes totalitários, um jogo de “quem perde ganha” invertido sem cessar que confirma uma certeza: os grandes pintores foram ( são ainda) os primeiros depositários de suas construções teóricas. Eles são raramente inocentes- ou o são em demasia, mas então se distanciam da pintura para reencontrá-la em seu além ( Van Gogh) ou em seu aquém ( Rousseau). A fusão contemporânea entre o saber e a inocência que assombra o artista se oculta em algum lugar no secreto território das origens. Em Giotto, em Monteverdi. Com Feuillade também.
Retorno às fontes, mas também através daquilo pelo qual as fontes permanecem vivas: presentes. Compreende-se que um único espírito está em julgamento aqui ( un esprit seul est en cause), e que Franju tenha sonhado com o Fantômas, e que a Judex seja apenas reservado o anedótico. O essencial, e o que intensifica a dimensão da “peregrinação” em direção às origens é a posição privilegiada de Feuillade, que François Lacassin chama “o terceiro homem” ( depois de Lumière e Méliès), ao mesmo tempo o último dos primitivos e o primeiro dos modernos. Judex, em oposição a tantos filmes com referências ancoradas na vida ou na literatura, opõe um cinema referenciado a si mesmo: às suas origens, a seus segredos ( nós o vimos), mas origens e segredos que podem ser redescobertos menos através de hipotéticos mistérios de fabricação que pela superposição, como que por surpresa, procurando esta inocência tão dificilmente capturável, pois sempre comprometida pelos desvios impostos pela astúcia ou pelo saber. Unicamente neste estágio encontra seu sentido esta reconciliação de que falamos mais acima, já que a démarche de Franju não conseguiria ter evitado as armadilhas da retórica se este não tivesse imposto à busca pelo cinema perdido a uma outra, menos espetacular, mais apagada: o reencontro de uma infância que pressentimos ligada aos sortilégios deste cinema. E da mesma forma com que Breton pode afirmar que é preciso abandonar sua “infância” para saborear a de Rimbaud, foi preciso que o homem-Franju se desse conta com precisão de emoções distantes no tempo para oferecer-lhes uma outra espécie de metamorfoses.
Pois o que separa o Judex de 1916 do Judex de 1963 é, evidentemente, a distância de uma mitologia “atual” e de seu reflexo historicizado, ou aquilo pelo qual a segunda se esforça de reproduzir a primeira em seu duplo movimento de convenção e de convicção: aqui emerge uma forma ( nostálgica) de crítica, e em primeiro lugar nas inevitáveis modificações do roteiro inicial, desnudado de suas motivações psicológicas e de um grande número de meandros explicativos. Retomando o velho mestre à sua conta e risco, Franju vai se sobrepor ao espetáculo , e se abandonar a uma ironia de bom grado solene. À simples cópia do estilo, ele reserva o destino de um “como se” cúmplice mas um pouco distante, as entidades morais sendo abolidas sob um olhar poético, unitário, em uma celebração plástica das aparências, espionadas, negadas, ressuscitadas, ou seja, em um Parecer que não é mais da ordem do embelezamento, mas a própria estrutura do filme; a redução da narrativa se efetua ao nível do signo ( o plano como aquilo que o habita), mas fora de todo simbolismo, de toda metafísica; o signo existe unicamente em razão de si, mas totalmente.

Primeiro nível: a constatação, o apelo ao resgate. Com Feuillade na cabeça, evidentemente. No entanto, ainda mais Les vampires que Judex, realizado por questões de comodidade. Vampires, serial altamente estimulante, evocado por blusas negras ou pelo ritmo de uma certa java. Também temos Fantômes, que nos é engenhosamente transferido aqui na figura de vizinhos cúmplices ( Diana Monti-Francine Bergé). Temos ainda, para além de Feuillade, o acolhimento de todos os ancestrais; de Gasnier, para irritar os fantasmas de Monsieur Gaumont, e de outros seriais esquecidos, além de Lang: vejamos Judex, sua organização diabólica, seus homens de negro e seus mil olhos que nos perseguem, embora as razões sejam diferentes, a partir de Mabuse ( ele tinha direito, segundo Franju, “como precursor de uma moral autêntica, à estima revolucionária”). Ou mesmo- por que não?-, de Griffith: em filigrana da candura de Edith Scob, sempre ofertada à violência, aflora às vezes a vulnerabilidade dos sorrisos constrangidos de Lillian Gish.

Desde a abertura da íris- primeira referência- sobre a inquietude do banqueiro Favraux, este olho mágico que prefigura outros olhos, este olhar indiscreto e tenaz que vai encadear a narrativa na mais ínfima de suas articulações estabelece seu poder sobre a célula dramática originária, o plano, que tem aqui todas as suas virtudes restabelecidas. O plano que, para Franju, já sabemos, é um vidro que se deve preencher- herança expressionista, enquanto que, para nós”veristas”, ele se preenche muito bem sozinho: se este aparente anacronismo confessa desde logo um pertencimento a um cinema dos tempos fortes e da exuberância imagética, é porque o tema assim o exigia. Que importa então ( ou antes: tanto melhor!) que Chaning Pollock seja um ator “inexpressivo”?, já que é à sua capa negra de justiceiro, à sua destreza ou imobilidade no cadre que são confiadas a função de exprimir o que sua máscara impassível recusa. Mas se as silhuetas que assombram o filme participam de um mundo de sentimentos imediatamente inteligíveis, as motivações convencionais dos personagens se prolongam numa espécie de “profundidade de campo”sugerida que é a matéria de seus próprios sonhos: seria injusto que o imaginário permanecesse unicamente reservado ao autor e não fosse, vez ou outra, corromper a docilidade de suas criaturas. É paradoxalmente por este estratagema ( ruse) que Franju, em um segundo estágio, recupera sua criação e restitui a Judex, depois de tê-lo reconciliado com o cinema de seus pares- de onde este veio-, um lugar no horizonte de suas obras. Eu quero falar aqui de Edith Scob, cujo papel consiste justamente em relacionar a sucessão casual das partes a uma coerência lateral, a um totalmente outro. Tão necessária quanto o fora Marlene para Sternberg ( embora mais discretamente), ela tem por missão, desde sua entrada furtiva na igreja em La téte contre les murs, criar unicamente por sua presença um frisson que não tem nada de cênico, e estabelecer uma continuidade irreal que nenhuma anedota conseguiria perturbar: a própria essência da poética de Franju ( seu emblema), reconduzida de ressurreição em ressurreição, morta improvável, vivente incerta, móvel ideal a diferir os enigmas sempre até a próxima vez.
A nudez final do plano da praia absorve o barroquismo dos décors anteriores em uma nova expectativa: a última pomba se desgarra da mão do mágico, sem dúvida em direção a uma outra noite, onde ela encontrará sua confidente favorita, prometida aos ultrajes dos próximos malefícios.
Jean-André Fieschi.
Tradução: Luiz Soares Júnior.