quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Barry Lyndon, Jean Pierre Oudart

Há sempre uma profunda moralidade, ao mesmo tempo mercantil e humanista, do cinema hollywoodiano, segundo a qual a ficção não deve jamais incorrer em perda ( travailler à perte 1); que esta deve ser ,de qualquer maneira, edificante. Apercebemo-nos disso hoje, com o filme catástrofe, onde o gasto de dinheiro, cenários e talentos é compensado por um ganho inaudito, inestimável: face ao apocalipse desencadeado na tela, na obscuridade do desejo dos espectadores, pensa-se: “Somos todos um só”. Unanimismo do espetáculo hollywoodiano, exigência de um assentimento profundo, moral, sentimental, para com ideais coletivos cuja ficção deve ( é esta a sua regra, sua lei) assegurar ao espectador a felicidade do reconhecimento.
Em aparência, Barry Lyndon é fiel a esta grande norma hollywoodiana. Sua ficção, que se desdobra em um vasto afresco histórico, pode passar, com o fito de destilar uma moralidade- a ascenção e a queda de um arrivista- como suporte de uma meditação pessimista, distante e altiva, sobre os grandes valores do mundo. Aí vem o crédito de Kubrick de ser um grande autor crepuscular, e seu filme um testamento, uma coletânea de reflexões sobre o mundo: um belo presente para os espectadores e para os críticos, afinal de contas.
Mas oras, é um filme que se subtrai de todas as maneiras possíveis. Em primeiro lugar, visivelmente, por um excesso de heterogeneidade em sua forma, contrária ao realismo hollywoodiano: os quadros ( tableaux), os planos, não se enquadram uns com os outros, uns por excesso de pictórico, outros por excesso de verdade arqueológica. Estas distorções não são decorativas; em todo caso, não tem nada a ver com o decorativismo hollywoodiano, que é sempre utilizado ora no sentido de magnificar cenicamente os personagens, ora de enriquecer os panos de fundo de notações históricas, de personagens secundários, para vantagem desta figura feudal gloriosa que é o star.
Visivelmente, em Barry Lyndon, o luxo dos planos não serve aos personagens, não os enquadra em uma postura gloriosa. A riqueza aparente tende antes a acentuar o pouco(ou o mínimo) de glória que esta história contém, a marcar com um selo de derrisão os personagens e suas ações. Mas sobretudo o excesso de verdade arqueológica, o hiper-realismo das cenas de gênero ( o falar, a maquiagem, as maneiras da época), longe de lhes conferir a marca da caduquice e o charme do “imagismo” rétro ( o prazer dos senhores de outro tempo), afeta-as com um coeficiente de estranheza ( etnográfica): a das seqüências sociais, dos ritos, de códigos cujo sentido estaria perdido. Portanto, de valor nulo para o espectador, se compararmos com o poder do imagismo rétro em evocar o prazer, o gozo ( jouissance) dos senhores no passado, e constituir no presente o signo de sua glória, ou mesmo sua mensagem: na medida em que o imagismo rétro , enquanto valor social, possui hoje o sentido de ser uma promessa- a promessa da perpetuação de um plus-de-jouir 2, marcado simbolicamente por uma ressacralização dos valores de luxo da burguesia. Tornarmo-nos nós mesmos aristocratas, incorrendo em pura perda ( pure perte).
A estranheza da história reside menos nesta temática da carta truquée 3, da aliança espúria (mésalliance) 4 e da má sorte, que ao fato de que todo o filme se desenrola sob o signo do “trucagem”, do estranho, do semelhante, apenas para acabar sob a forma do não-reconhecimento, da mutilação, da loucura; e que sua escritura, o ângulo de ataque e a linha de fuga de cada seqüência, a inflexão da narrativa fazem surgir das situações uma carga suplementar de horror.
A irrupção das máscaras assustadoras e grotescas, da violência, da morte, o personagem tomado num circuito de máquinas sociais infernais e de procedimentos onde ele se perde sem saber, fazem-se também como operações de escritura “a fundo perdido”, de um secreto catastrofismo: a parada militar, o encontro com o cavaleiro, a morte da criança, a assinatura do dote, déroutent 4 pela indecibilidade de sentido do ríctus do oficial, a máscara empoada, o rosto marcial, e por fim através de um ato jurídico eivado de loucura. Não se tratam de operações registradas pelo espectador nos termos de um ganho de conotação, de recuo crítico em relação aos personagens, ou de derrisão para com o melodrama e à cena hollywoodiana, mas de sobressaltos de ironia que o tocam no cerne de sua convicção: que na falta de uma moralidade de situações ( comprometida pela vacuidade psicológica dos personagens), ele pode contar com uma moralidade da narrativa, com uma jurisdição de seu sentido, que também se encontra ausente aqui.

Cada vez que ocorrem reconhecimentos 5( du tuchè!), as máscaras se impõem como figuras da falta de sentido ( non-sens); cada vez que a narrativa está a ponto de proferir sua moralidade, o achatamento ( platitude) das imagens, do comentário em off, a subtraem de nós.

Jean-Pierre Oudart, Cahiers du Cinéma, 271, novembro 1976. Páginas 62-63.

Tradução: Luiz Soares Júnior.


Notas:



  1. travailler à perte: Fala-se da privação ( do privar-se) de algo inestimável, vantajoso. Quando estruturalistas ( e depois pós-estruturalistas) como Oudart e Daney falam em gain ( ganho), perte (perda), na verdade usam referências psicanalíticas, embora a analogia metafórica repouse na “economia”: trata-se de economia pulsional, no caso. A dificuldade da tradição literal reside justamente em que são termos que “não tem muito sentido” na linguagem corrente, muito menos na linguagem corrente cinematográfica; são específicos de disciplinas e doutrinas específicas, como Psicanálise e marxismo.

2. un plus de jouir: um mais, uma plenificação na potência de gozar, de usufruir
( Psicanálise de novo!)

3. No sentido de carta marcada, jogo falseado, pois já está dado/decidido de antemão.

4. Casamento com alguém julgado de condição inferior.

5. Dérouter: No sentido de decepcionar, distrair, desviar do caminho da narrativa, frustrar nossas espectativas em relação a estas.

Adolfo Arrieta, Por Jean Claude Biette

Quer ele avance sobre as “échasses” 1 de uma narrativa simulada, regida por roteiros com caráter feérico ( o Castelo de Pointilly, Tam-Tam, Flammes), quer ele persiga com uma intuição segura esta percurso em caracol de uma filmagem às cegas, que só conseguirá ser retomada nas últimas decisões da montagem ( Le Crime de la toupie, este extraordinário Imitação do anjo, Le jouet criminel, As Intrigas de Sylvia Kousky), a arte cinematográfica de Arrieta exprime antes de tudo nas questões humanas aquilo que desliza entre as malhas do real, o que se esfiapa entre os diálogos.

Poder-se-ia crer, vendo apenas um ou dois desses filmes, que Arrieta se empenha nos diálogos, no que se diz e no que se troca. Errado: ele os utiliza apenas como encantamentos que joga ao acaso. Os significados são piões, os diálogos simples lances de paciência ( carpette) 2, e os personagens as peças, com frequência vestidas de anjos, de um grande jogo misterioso que não é conduzido pelo destino, por Deus ou por uma ideologia, mas pelos componentes tangíveis de uma concepção enigmática do cinema de que Arrieta busca há anos, a cada filme, emitir novas provas. Ele flertam com um número incalculável de sombras que nos encantam, mas que escapam a quaisquer que tentam convertê-las em objetos.

Este jogo do cinema, que adquire às vezes em seus filmes a aparência do milagre, traduz uma poética dividida, contraditória, que se burila, não sem dificuldade, para derivar no sentido das duas direções indicadas na repartição feita acima. Esta divisão em duas tendências da obra- cinco longas-metragens e dois curtas são suficientes neste caso preciso para falar em obra- aparece na percepção simultânea da cor dramática, da forma técnica e da tonalidade de conjunto ( o resultado estético) de cada um de seus filmes. Os primeiros, claramente dialogados com seus textos gravados ao mesmo tempo que a ação filmada ( em som direto), submetem um pouco à sua lei os planos de ação que poderíamos, por economia e exigência de mobilidade, tornar mudos e acrescentar o ruído em seguida, “por cima” ( sim, “fazer ruído”, pois Arrieta não hesita, por exemplo, em emprestar sua voz à imagem de um cão que late). Estes filmes dão a impressão de uma maior hierarquia entre seus componentes que os segundos. Estes, pouco dialogados, com seus sons um pouco sufocados de conversações ou de julgamentos sem respostas, propõem uma narração fantasma que não inspira medo mas, de forma muito mais sutil, busca tranqüilizar.3

De que se trata então este jogo e em que ele é cinematográfico? Que são estes “trotes”

( pièges) vãos que no máximo nos enervam ( mas já se trata disso?) Neste dispositivo que imita a negligência (dos raccords, da luminosa continuidade, da percepção auditiva mediana, do jogo coerente e composto dos intérpretes)- e esta negligência exaspera-, ocorre a busca obstinada ( e pouco prestigiosa) por exprimir em estado de filme a grande desordem, raramente explorada, da vida , ou seja, de comunicar um sentimento tão forte quanto possível ( não”mimado” por efeitos formais nem imposto pela vontade ou aprisionado pelo roteiro, , mas ganho no espaço material do filme, em seus componentes os mais prosaicamente técnicos) de liberdade. Os filmes de Arrieta abrigam tesouros de olhares, de gestos e de frases sem sentido ( insensés): estes não exprimem nada, eles estão aí para estarem aí e afirmarem imediatamente a existência, aqui e não em outro lugar, de indivíduos atores ou não, que uma câmera que se diria “chargée à blanc” 4 interrompe alguns segundos, no meio de uma conversação ou no decorrer de um passeio. Nesta aptidão a combinar dispositivo obstinado e desordens, a partir de uma cultura, de um ponto de saber, de uma biografia que diferem, Arrieta não está muito distante de Jean Rouch ou de Jacques Rivette”.

Jean Claude Biette, Cahiers du Cinéma, número 290-291, julho-agosto 1978.


Tradução: Luiz Soares Júnior.


Notas:
1. pernas de pau.


2. Espécie de jogo de cartas ( paciência) que se joga entre dois jogadores.

3. Joue à rassurer. Jouer tem o sentido, no caso, tanto de jogar ( ou interpretar, dirigir, encenar) quanto de divertir, de brincar.

4.
Diz-se de uma arma carregada com um cartucho em branco, sem balas