Haveria um “em si” do cinema, do qual decorreriam regras e
exceções? Quanto mais se dissemina isto, mais dificuldade tenho em crê-lo; o
cinema, ao final das contas, não é nada além senão aquilo que fazem os
cineastas, e a exceção- se ela possui
o nome de Eisenstein, ou Buñuel, ou Chaplin- é uma exceção talvez, mas que
consiste na conquista, e que não precisa se preocupar com a especificidade do
cinema, já que a funda, assim como Bach ou Schoenberg preocupam-se menos em
instituir uma escritura universal que em explorar sua própria linguagem, ou
Michelangelo em servir mais à pintura ( ou o cinema) que em se servir dela; a
arte prefere ser capturada que cortejada. E estamos todos à vontade para
admirar o aço cromado ou a pátina com que um Walsh, Dwan, Tourneur, Minnelli polem suas engrenagens; quais ouropéis idiossincráticos suspendem-se sob o dorso de
suas obras, a elegância e a desenvoltura com que as transportam.; cada vez mais
me é difícil não pensar, antes de tudo,
no peso destas obras.
Quem é Chaplin? Um homem livre. Verdoux, quinze anos depois,
é primeiramente isto: o filme de um homem livre ( para retomarmos a fórmula de
Rossellini, falando de Um rei em Nova York). Exceção esta espécie de homem;
regra, pois o Chaplin do Pelegrino ou de Verdoux, o Buñuel de Nazarin e do Anjo
exterminador, o Renoir da Regra do jogo e de Elena, mesmo o Brooks de Elmer
Gantry, o Rossellini de Vanina, o Mizoguchi das Irmãs de Gion: eis alguns
cineastas que possuem o fato em comum,
deixando de lado os seus dissensos, de não serem simplesmente “metteurs em scène”;
antes aqui se nota uma prontidão do toque que pode passar- e com frequência
passa – por secura ou pobreza, um perfeito pudor das intenções que toma o
esquematismo por máscara, e dissimula sob a rapidez do traço a riqueza das
contradições profundas- um jogo infinito de trocas entre as significações e os meios.
Verdoux é Carlitos; que o seja, mas também é Verdoux.
Mais adiante: qual o fito do cinema? Que o mundo real, tal
como se oferece na tela, seja também uma idéia do mundo. É preciso ver o mundo
como uma idéia, é preciso pensá-lo como concreto; dois caminhos, ambos com seus
riscos. Quem parte do mundo e nele se instala arrisca-se fortemente a não
atingir a idéia: estes são os perigos da atitude do “puro olhar”, que os leva a
se submeter ao presente, a aceitá-lo tal e qual, a contemplá-lo, como se diz;
mas tenho medo de que esta contemplação seja semelhante à exercida pelas vacas
que olham os trens que passam, fascinadas pelo movimento ou pela cor e com
pouca chance de um dia compreender a significação destes objetos de fascinação,
e assim fazê-las se encaminhar antes para a direita que para a esquerda. Partir
da idéia, risco inverso: restam neste território nove entre dez, e o campo da
História ( do cinema) é semeado pelos cadáveres destes filmes que todos os
exercícios de respiração artificial só conseguiram animar no tempo de seu
lançamento.
Mas estes cineastas ( para voltarmos a eles), partindo
também ( parece-me) da idéia, ou do esquema ( e o arranque é freqüentemente
ingrato, árido, sem brilho) recuperam pouco a pouco o real; é porque este
esquema não é um esqueleto, mas figura dinâmica, e a justeza de seu movimento,
de sua dialética interna, recria paulatinamente,
sob nossos olhos, um mundo concreto: outro e explicado, mas ainda mais ambíguo,
por ser desta vez idéia encarnada, e logo depois real trespassado de sentido. É
também pelo fato de que a idéia já é
idéia do mundo, visão conceitual ( espetáculo
ou metáfora): uma imagem-idéia- seja um grupo de convidados bloqueados num
salão, ou o caçador estrebuchando como um coelho, ou o cadafalso diante do
convento- ou seja mesmo um “personagem”, tão pleno de contradições que o filme
não consista em nada senão no desvelamento metódico destas. Verdoux confia uma
multiplicidade de significações não tanto ao jogo de cena quanto à agilidade do
ator em inventar, dir-se-ia, diante de nós: mise en scène em torno do jogo do ator principal, e confundindo-se
com este jogo. Pois a ação do ator é criação contínua, um motor e um olhar ao
mesmo tempo: Chaplin age e faz agir, mas se contempla agir e contempla seu ato
através dos outros; ele organiza no espaço da tela uma deflagração do sentido,
experimenta um agir julgado por suas conseqüências, de que ele pesa diante de
nós, à medida em que o filme se desenrola, as fases e os objetivos: processo de
homem de ciência.
Chaplin, Buñuel, Renoir, “filhos deste século científico”;
sua démarche é a do físico ou do entomologista: o homem é para eles objeto de
estudo e de experiência, mas este homem é antes de tudo eles mesmos. Dialética
implícita em Renoir e Buñuel, que o gênio de Chaplin consiste em manifestar em
plena luz- ao integrar o seu mito a sua pessoa, sua “lenda” ao seu mito, a
História a esta lenda, e por um sistema
de reações em cadeia, obter um corpo novo, irradiado por sua atividade, assim
como a História, capturada pela armadilha do mito, revela suas mitologias.
Reconstituição de um objeto “de forma a manifestar nesta
reconstituição as funções deste objeto”: definição, segundo Barthes, da
atividade estruturalista, que comanda toda a arte moderna. Assim, Verdoux é Landru desmontado e reconstruído por
Chaplin-Carlitos; simulacro,
rigorosamente não-simbólico e sem profundidade, mas formal: “nem o real, nem o
racional, mas o funcional”.
A vontade de infligir significação, afirmada pelo próprio
recuo que Chaplin assume bruscamente em relação ao papel que interpreta; este
recuo consiste no ato de um homem, e é equivalente ao de Brecht diante de Mutter Courage, de Fautrier diante de
seus Otages, de Boulez para com suas Estruturas: o sentido passou por ali, ele foi inscrito; a
obra guarda o movimento desta passagem. Esta passagem é o seu movimento- a
constatar e retomar.
Jacques Rivette, Cahiers Du cinema, número 146, agosto de
1963
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Jacques Rivette, Cahiers Du cinema, número 146, agosto de
1963