terça-feira, 30 de junho de 2015

O mal cadente



Esta espécie de raiva razoável, esta cólera refletida e metódica que define, desde os primeiros planos, um espaço radicalmente original onde, no entanto, cada um pode imediatamente reconhecer e identificar os demônios de sua própria adolescência- apesar do caráter deliberadamente excepcional da afabulação utilizada- impõe os acentos de uma contestação que sua violência e alcance inscrevem nos rastros de L’âge d’or e de Zéro de conduite: como Buñuel e Vigo, Bellocchio sabe fundir os argumentos de seu terrível acerto de contas no movimento de um poema dramático, e preservar por meio de uma constante ironia o que a tese poderia oferecer de excesso e desmesura. Mas ainda assim seria inutilmente restritivo limitar ‘I pugni in tasca’ a suas virtudes de denúncia como a suas qualidades poéticas. Assistimos à construção precisa de um mundo ao mesmo tempo em que são clinicamente desmembrados os sintomas de decomposição, doenças do corpo e do espírito. A constatação de ruína e de decadência que, através da família visada, tem como objeto a toda uma classe social, se interdita todo recurso a um simbólico romântico, negligencia toda sombra de nostalgia passadista, rejeita toda complacência em relação ao fracasso ou infelicidade; é unicamente pela análise dos comportamentos que Bellocchio organiza e reparte as significações gerais induzidas pelo discurso aparentemente muito particularizado que escolheu seguir. Assim, o caráter passional de sua reivindicação, ultrapassando o obstáculo individualista, cristaliza-se a partir de uma exigência de lucidez crítica pouco comum. E se escolheu abandonar seus personagens ao cárcere desta epilepsia ( haut mal) a que os antigos atribuíam virtudes divinas, é sem dúvida porque a epilepsia- de todas as doenças mentais com certeza a mais espetacular, a mais “teatral”- lhe permitiria unicamente tornar visíveis as crispações e opressões de um mal mais definitivo e secreto de que ela só constitui o traço evidente, a chifra poética: ou antes, a alternância características das crises e calmarias contribui para fazer de Sandro esta testemunha privilegiada de uma decadência de que ele é ora o objeto, ora o instrumento; ele, dentre todos, o ser eleito pelos símbolos contrários que o conduzirão ao abismo, o impossível ponto de encontro de uma extrema lucidez e uma extrema aberração. E jamais a dialética do carrasco e da vítima não foi mais imediatamente sensível senão neste possesso, que porta em si os estigmas de um segredo incomunicável e universal: o segredo de uma infância que é preciso queimar para tornar-se adulto e que, não podendo queimar, ele permite consumi-lo até o êxtase final, onde o surpreende a morte.

Mas o que faz a grandeza sem precedente desta obra de jovem é menos o domínio que lhe permite abraçar, como se jogasse, a totalidade dos mitos retransmitidos pela tragédia grega à toda dramaturgia ocidental, em nossos dias ainda viva; e mais a autoridade insolente com que leva seus personagens a realizar as transgressões mais inconfessáveis: aqui, o fascínio pelas condutas mórbidas não seria suficiente para justificar esta forma de vertigem que ressente o espectador diante da visão, meio horrífica, meio cúmplice do matricídio e do fratricídio cometidos por Sandro. O sentimento que se instaura então só pode ser comparado àquele que nos proporcionam certas páginas de Bataille ( O abade C., e sobretudo História do olho). Este sentimento, nos pareceria que o cinema ( de acordo com sua natureza), e apesar da força de certas transgressões buñuelianas, estava obrigado, se não a negligenciar ou ignorar, pelo menos a transpô-lo com maior ou menos grau de felicidade e de prudência. Ora, Bellocchio, com o chicote na mão, instala-o no coração de seu filme. Não nos enganemos: trata-se de uma agressão cujo alcance não se poderia diminuir ao reduzi-la a qualquer exibicionismo do atroz ou à exposição em uma monstruosa complacência. Muito pelo contrário: aqui, o cinema atinge uma dimensão de contestação até então insuspeitada; o que o filme fere profundamente não é apenas- o que o deixaria no nível do anedótico ou do pitoresco- a concepção burguesa da família ou a calamidade obscurantista de um cristianismo tarado. Não; o que Bellocchio coloca em causa é, de forma mais geral e radical, a duplicidade e a hipocrisia de um humanismo degenerado que preside ainda hoje, apesar de Sade, Freud e Marx, às ações dos indivíduos como aos destinos das nações. ( Michel Foucault dizia, numa recente entrevista: “O humanismo foi uma maneira de resolver em termos de moral, de valores, de reconciliação, problemas que não podiam ser resolvidos. Você conhece a palavra de Marx? A humanidade só se coloca problemas que ela pode resolver. Eu acho que a coisa deve se pôr nos seguintes termos: a humanidade finge resolver problemas que ela não pode se colocar! Nossa tarefa atualmente consiste em nos libertar definitivamente do humanismo, e neste sentido nosso trabalho é um trabalho político”).

É neste sentido também, e isto está implícito, que a obra de Bellocchio pode ser qualificada de política: devemos medir bem, sob esta ótica, a ruptura decisiva que I pugni in tasca marca com as opções fundamentais do neo-realismo. Desta vez, é o homem inteiro, e não apenas o homem social, que está no centro do debate, e é o tema do discurso. Eis a razão pela qual não poderíamos seriamente sustentar que os termos excepcionais através dos quais Bellocchio define o meio que analisa ( epilepsia, matricídio, incesto) poderiam ser completamente outros. “ O homem normal, diz aproximadamente Edgar Poe, possui todas as loucuras, enquanto o louco só possui uma”. E não se constitui no mérito menor do microcosmo descrito no filme apresentar uma inquietante antologia de condutas onde mesmo a “normalidade”mais assegurada não pode deixar de reconhecer alguns de seus traços constitutivos: o narcisismo, a crueldade, a inconsciência só são hipertrofiados para serem melhor identificáveis.

O entrelaçamento de temas e de motivos conjugados em I pugni in tasca é tão rico que é difícil, ao tentar dar conta destes, não soçobrarmos em um fastidioso catálogo de significações: mais aproveitável seria sem dúvida a recensão sistemática das formas utilizadas para levar a termo a convergência dos temas e das imagens. Seria preciso mostrar como Bellocchio faz ressoar menos a inquietude dos tempos fortes ou das cenas espetaculares que das cenas mais “cotidianas”, onde confronta a solidão de Sandro à de uma criança triste ( e um tinteiro versado sobre um caderno de notas é suficiente para indicar o sentido do drama por vir;) como a inacreditável inventividade gestual que sabe obter dos atores enriquece as relações de Sandro, seus dois irmãos, sua irmã e sua mãe até apagar a idéia teórica subjacente;  como os transes do bel canto anunciam e preparam o espasmo final, onde a imobilidade terrível da morte sucede à simulação lírica; como, enfim, a idéia de sacrilégio e de profanação encontra sua formulação exata nas imagens “escandalosas”, desembaraçadas de toda provocação pueril ( o enterro da mãe, destruição dos objetos da família, etc).

Por ter sustentado o rigor de uma ideologia revolucionária por uma forma digna desta, Bellocchio não fez apenas obra de inovador: ele realizou o sonho de todo jovem cineasta, que é o de oferecer à sua geração o espelho onde esta pode ler sua condição. Mas ele não é profeta, nem terapeuta, e sabe que cada qual permanece solitário com seu mal cadente ( haut mal). Uma vez os demônios exorcizados, os outros filmes mostrarão talvez a possibilidade prática de uma libertação. Serão ainda filmes políticos.


Jean André Fieschi, Cahiers du cinéma, 179, junho de 1966

Tradução: Luiz Soares Júnior

terça-feira, 16 de junho de 2015

O caçador inspirado




São várias as relações que Otto Preminger entretém com seus personagens: eis o caso de alguém que desafia a invenção de um roteirista, e a maioria seria irrisória, fosse este o melhor. A questão não é em primeiro lugar a do moralista, mas também seria injusto dizê-la inspirada unicamente por pretextos à mise en scène; é antes a noção de personagem que nos esforçaremos de captar esta ocasião. Comparando entre si os diversos filmes de Preminger, apercebemo-nos menos de certos temas dramáticos que de certos tipos de situações apropriadas para estudar certas reações, a observar certos gestos: a virtude dramática da droga em O homem com o braço de ouro; assim como, em Angel face, da obsessão criminal ou, em Whirpool, do domínio hipnótico consiste em suscitar certas manifestações psicológicas. A independência que estabelecem os filmes de Preminger entre o elemento dramático ( a intriga, a narrativa) e o elemento psicológico ( os gestos, os movimentos, as reações) nos convidam a aprofundar a análise. Se o romancista, se o roteirista aplicado se empenha em mesclar uns aos outros estes elementos, e de apoiá-los uns sobre os outros, justificando por um elemento psicológico desenvolvimentos dramáticos que por sua vez vão propiciar o advento de outras notações psicológicas, tudo se passa aqui pelo contrário- como se Preminger desdenhasse estes jogos de construção e só observasse na intriga a ocasião para provocar gestos que serão aqueles sobre os quais nossa atenção vai se concentrar. Assim, falei há pouco em manifestações psicológicas, e não em psicologia: trata-se de instantâneos, não de estudar a evolução dos personagens. Daí este aspecto particular dos filmes de Preminger: ligações rápidas, modificações de espaço que demarcam muitas arestas no desenrolar da narrativa, a progressão finalmente substituída por uma sequência de cenas fechadas sobre si mesmas e dotadas de sua própria progressão interna, tensão, paroxismo, queda e repouso. Vejamos bem por aí como Preminger ultrapassa o naturalismo, de que possui, aliás, esta fria paixão da precisão, esta recusa em construir os personagens, este gosto em acumular as observações, como o faria um entomologista. Mas enfim, estes grandes insetos são decepcionantes, e eis que ele os enerva e espia seus sobressaltos. O distanciamento que parece impor não passa de uma liberdade que ele se permite de forma suplementar, uma simulação que deixa à presa a ilusão da liberdade: a lonjura da linha ao longo da qual ele capturou sua presa. Não há experiência nem observação objetiva neste domínio: nenhum plano, nenhuma cena de Preminger busca nos persuadir que ele conseguiu.

É sem dúvida devido à consciência aguda deste fato que Preminger busca imprimir a suas obras um equilíbrio, em certa medida inconcebível, entre as exigências contrárias do real e do artifício.
O que mais marca na visão deste homem é a sua inteligência. Por que razão permanece ambíguo? É que esta lucidez não pretende aplicar-se apenas ao exercício mais eficaz de sua arte: ela se impõe refletir sobre os próprios meios desta arte. Parece-me que o gesto criador procede ao mesmo tempo de uma intenção e da esperança que uma nova intenção apareça no gesto, à medida em quer ele se acaba: a imagem nascente no traço, e não apenas pelo traço de uma imagem inteiramente pré-concebida. É esta ultrapassagem do projeto pela criação que Preminger parece mais intensamente buscar na criação.A arte é mais múltipla que impura; o seu modo de ser é a ambigüidade, o mal-entendido- mas aqui a idéia do mal-entendido acompanha-se sem cessar pela noção de que a arte se exprime naturalmente através do mal-entendido-, como se a ferramenta se incorporasse à matéria que forja. É ocioso perguntarmo-nos se é mais questão de estratagema ou de sinceridade; pois se toda criação é engodo, este engodo muda de natureza desde o momento em que se assume e se põe como a regra essencial da criação. Então, o artista só ilude em aparência; é com as aparências que ele ilude para exprimir uma verdade poética e moral. Assim, a ambição de Preminger não me parece fundamentalmente diferente da de Rossellini, seu virtuosismo não sendo mais que uma rede com os fios mais cerrados, jogada sobre acasos concertantes. Mais que ao seu virtuosismo ou a seu gosto do jogo, sou sensível ao que, na sua obra, oculta-se de inquietude e vontade de provocar o invisível, de levar a produzir-se algum encontro fortuito entre a atenção e a desatenção.
Preminger conhece demasiado as fontes de sua arte para se poupar a baixeza do dizer. Ele, portanto, não vai ornar a imagem com uma ambigüidade que a imagem jamais reclamaria, já que esta lhe pertence de pleno e primeiro direito. É uma ambigüidade completamente outra prometida pela presença, distinta e simultânea, do ator e do personagem; a arte do metteur em scène consiste em sublinhar esta distância ( décalage) para levá-lo em seguida a se apagar em alguns instantes privilegiados. Uma cena não é suficiente para obter a inflexão de um olhar, para surpreender o esboço de um gesto retomado ou contrariado, pelo qual o ator ( ou o personagem?) vai se abandonar, se trair. Assim, muitas cenas ( e das mais excitantes) permanecem à margem da ação dramática- ou antes: desenham uma nova ação, mais intensa que a outra. Tudo é adequado nesta perseguição tenaz das manifestações mais frágeis que a câmera captura sobre o ator ausente de seu gesto, como se ultrapassado pela força que o move: sem dúvida Jean Simmons não sabia que interpretava em Angel face, e eu não admiraria tanto Whirlpool se não achasse que a sujeição hipnótica de Gene Tirney é também aquela que Preminger impõe a seus atores. Procedimento extremo, e atores mais nuançados demandam mais sutileza; nenhum hipnotismo para Jean Seberg, mas adivinhamos bem a forma como nosso homem a dirige, manifesta esta mesma intenção de conduzir o ator para além daquilo que tem consciência de exprimir.

Por muito tempo, o objeto desempenhou um papel nestes momentos em que o ator ultrapassava os contornos do personagem. Folha de papel amassado, telefone, disco. Preminger se empenhava em semear objetos sob os passos de seus personagens, com o fito de despertá-los com o choque, e na medida em que um impedimento da matéria corresponde ao abstrato de seus itinerários. Mas unicamente o ator importa, e desde alguns anos vemos este grande metteur en scène dissipar tudo aquilo que poderia tirar a atenção destes, só ensejando enfim exprimir a realidade menos premeditada pelos sortilégios da forma, e de exprimir unicamente pelo ator o real pelo artifício, a tensão pelo repouso, a duração pelos equilíbrios mais transitórios. Ele emprega tanto lucidez quanto retidão. E Cocteau me oferece a mais sagaz das conclusões: “Não é preciso confundir a inteligência astuciosa, pronta para enganar seu homem, e este órgão cuja sede não existe em lugar nenhum, e que nos ensina sem piedade sobre nossos limites. Ninguém pode transcendê-los. O esforço feito o denunciaria. E sublinharia ainda o frágil espaço em torno de nós. É a esta faculdade de nos mover neste espaço que o talento se prova”.

Philippe Demonsablon

Présence Du cinema,11. Fevereiro de 1962

Tradução: Luiz Soares Júnior