Esta espécie de raiva razoável, esta cólera refletida e
metódica que define, desde os primeiros planos, um espaço radicalmente original
onde, no entanto, cada um pode imediatamente reconhecer e identificar os
demônios de sua própria adolescência- apesar do caráter deliberadamente
excepcional da afabulação utilizada- impõe os acentos de uma contestação que
sua violência e alcance inscrevem nos rastros de L’âge d’or e de Zéro de
conduite: como Buñuel e Vigo, Bellocchio sabe fundir os argumentos de seu
terrível acerto de contas no movimento de um poema dramático, e preservar por meio
de uma constante ironia o que a tese poderia oferecer de excesso e desmesura. Mas
ainda assim seria inutilmente restritivo limitar ‘I pugni in tasca’ a suas
virtudes de denúncia como a suas qualidades poéticas. Assistimos à construção
precisa de um mundo ao mesmo tempo em que são clinicamente desmembrados os
sintomas de decomposição, doenças do corpo e do espírito. A constatação de
ruína e de decadência que, através da família visada, tem como objeto a toda
uma classe social, se interdita todo recurso a um simbólico romântico,
negligencia toda sombra de nostalgia passadista, rejeita toda complacência em
relação ao fracasso ou infelicidade; é unicamente pela análise dos
comportamentos que Bellocchio organiza e reparte as significações gerais
induzidas pelo discurso aparentemente muito particularizado que escolheu
seguir. Assim, o caráter passional de sua reivindicação, ultrapassando o
obstáculo individualista, cristaliza-se a partir de uma exigência de lucidez
crítica pouco comum. E se escolheu abandonar seus personagens ao cárcere desta
epilepsia ( haut mal) a que os antigos
atribuíam virtudes divinas, é sem dúvida porque a epilepsia- de todas as
doenças mentais com certeza a mais espetacular, a mais “teatral”- lhe permitiria
unicamente tornar visíveis as crispações e opressões de um mal mais definitivo
e secreto de que ela só constitui o traço evidente, a chifra poética: ou antes,
a alternância características das crises e calmarias contribui para fazer de
Sandro esta testemunha privilegiada de uma decadência de que ele é ora o
objeto, ora o instrumento; ele, dentre todos, o ser eleito pelos símbolos
contrários que o conduzirão ao abismo, o impossível ponto de encontro de uma
extrema lucidez e uma extrema aberração. E jamais a dialética do carrasco e da
vítima não foi mais imediatamente sensível senão neste possesso, que porta em
si os estigmas de um segredo incomunicável e universal: o segredo de uma
infância que é preciso queimar para tornar-se adulto e que, não podendo
queimar, ele permite consumi-lo até o êxtase final, onde o surpreende a morte.
Mas o que faz a grandeza sem precedente desta obra de jovem
é menos o domínio que lhe permite abraçar, como se jogasse, a totalidade dos mitos
retransmitidos pela tragédia grega à toda dramaturgia ocidental, em nossos dias
ainda viva; e mais a autoridade insolente com que leva seus personagens a
realizar as transgressões mais inconfessáveis: aqui, o fascínio pelas condutas
mórbidas não seria suficiente para justificar esta forma de vertigem que
ressente o espectador diante da visão, meio horrífica, meio cúmplice do
matricídio e do fratricídio cometidos por Sandro. O sentimento que se instaura
então só pode ser comparado àquele que nos proporcionam certas páginas de
Bataille ( O abade C., e sobretudo História do olho). Este sentimento, nos
pareceria que o cinema ( de acordo com sua natureza), e apesar da força de
certas transgressões buñuelianas, estava obrigado, se não a negligenciar ou
ignorar, pelo menos a transpô-lo com maior ou menos grau de felicidade e de
prudência. Ora, Bellocchio, com o chicote na mão, instala-o no coração de seu
filme. Não nos enganemos: trata-se de uma agressão cujo alcance não se poderia
diminuir ao reduzi-la a qualquer exibicionismo do atroz ou à exposição em uma
monstruosa complacência. Muito pelo contrário: aqui, o cinema atinge uma
dimensão de contestação até então insuspeitada; o que o filme fere
profundamente não é apenas- o que o deixaria no nível do anedótico ou do
pitoresco- a concepção burguesa da família ou a calamidade obscurantista de um
cristianismo tarado. Não; o que Bellocchio coloca em causa é, de forma mais
geral e radical, a duplicidade e a hipocrisia de um humanismo degenerado que
preside ainda hoje, apesar de Sade, Freud e Marx, às ações dos indivíduos como
aos destinos das nações. ( Michel Foucault dizia, numa recente entrevista: “O
humanismo foi uma maneira de resolver em termos de moral, de valores, de
reconciliação, problemas que não podiam ser resolvidos. Você conhece a palavra
de Marx? A humanidade só se coloca problemas que ela pode resolver. Eu acho que
a coisa deve se pôr nos seguintes termos: a humanidade finge resolver problemas
que ela não pode se colocar! Nossa tarefa atualmente consiste em nos libertar
definitivamente do humanismo, e neste sentido nosso trabalho é um trabalho
político”).
É neste sentido também, e isto está implícito, que a obra de
Bellocchio pode ser qualificada de política: devemos medir bem, sob esta ótica,
a ruptura decisiva que I pugni in tasca marca com as opções fundamentais do
neo-realismo. Desta vez, é o homem inteiro, e não apenas o homem social, que
está no centro do debate, e é o tema do discurso. Eis a razão pela qual não
poderíamos seriamente sustentar que os termos excepcionais através dos quais
Bellocchio define o meio que analisa ( epilepsia, matricídio, incesto) poderiam
ser completamente outros. “ O homem normal, diz aproximadamente Edgar Poe,
possui todas as loucuras, enquanto o louco só possui uma”. E não se constitui
no mérito menor do microcosmo descrito no filme apresentar uma inquietante
antologia de condutas onde mesmo a “normalidade”mais assegurada não pode deixar
de reconhecer alguns de seus traços constitutivos: o narcisismo, a crueldade, a
inconsciência só são hipertrofiados para serem melhor identificáveis.
O entrelaçamento de temas e de motivos conjugados em I pugni
in tasca é tão rico que é difícil, ao tentar dar conta destes, não soçobrarmos
em um fastidioso catálogo de significações: mais aproveitável seria sem dúvida
a recensão sistemática das formas utilizadas para levar a termo a convergência
dos temas e das imagens. Seria preciso mostrar como Bellocchio faz ressoar
menos a inquietude dos tempos fortes ou das cenas espetaculares que das cenas
mais “cotidianas”, onde confronta a solidão de Sandro à de uma criança triste (
e um tinteiro versado sobre um caderno de notas é suficiente para indicar o
sentido do drama por vir;) como a inacreditável inventividade gestual que sabe
obter dos atores enriquece as relações de Sandro, seus dois irmãos, sua irmã e
sua mãe até apagar a idéia teórica subjacente;
como os transes do bel canto anunciam e preparam o espasmo final, onde a
imobilidade terrível da morte sucede à simulação lírica; como, enfim, a idéia
de sacrilégio e de profanação encontra sua formulação exata nas imagens “escandalosas”,
desembaraçadas de toda provocação pueril ( o enterro da mãe, destruição dos
objetos da família, etc).
Por ter sustentado o rigor de uma ideologia revolucionária
por uma forma digna desta, Bellocchio não fez apenas obra de inovador: ele
realizou o sonho de todo jovem cineasta, que é o de oferecer à sua geração o
espelho onde esta pode ler sua condição. Mas ele não é profeta, nem terapeuta,
e sabe que cada qual permanece solitário com seu mal cadente ( haut mal). Uma
vez os demônios exorcizados, os outros filmes mostrarão talvez a possibilidade
prática de uma libertação. Serão ainda filmes políticos.
Jean André Fieschi, Cahiers du cinéma, 179, junho de 1966
Tradução: Luiz Soares Júnior
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