O personagem mais cativante de todos é Batala. Sua
existência, que poderia parecer paradoxal no roteiro, se afirma na tela por
meio de uma invenção de gestos e um virtuosismo no falar onde vemos Jules
Berry, impulsionado por Renoir, demonstrarmo-nos que a coerência de um
personagem que não exprime o que pensa é difícil de se manter, e sobretudo exige
um controle constante da tentação de brilhar por brilhar. Berry representa
diante de nós em escroque mestre com tamanha felicidade expressiva que não
podemos impedir-nos de pensar que Renoir, que lhe proporciona uma energia tão
contagiante, prefere- como pretexto estético- o personagem do vilão à
coletividade operária que os movimentos destes anos 30 levavam para diante de
sua câmera 1. É mais excitante para um cineasta mostrar personagens maus que reprovamos,
ou cujo comportamento nos é intolerável, que personagens que se comportam bem.
E é penoso- quer façamos filmes ou como espectadores- ver e escutar personagens
constantemente vítimas das circunstâncias e que nunca tiveram nada a “ver com o
pato”. É em parte por este motivo que a
maioria dos filmes com temática social nos dias de hoje não apenas são intrinsecamente
ruins, como acabam por nos tirar todo o prazer pela vida, pouco conhecedores
das engrenagens que regulam a máquina humana.2 A glória universal de Chaplin
nos permitiu rever e descobrir os sublimes Luzes da cidade e Um rei em Nova York , onde este
problema se encontra posto e resolvido-
ou antes: de antemão resolvido, como se o fato de necessitar colocá-lo enquanto
tal representasse uma incapacidade de detectar o que a rigor não existe.
O que assombra Renoir- sabemos desde Douchet e Rohmer, e
verificamos revendo seus filmes- é a mobilidade e a metamorfose. Ora, quanto
mais um personagem detém o poder- ou aprende a deter- de se transformar, menos
dificuldade ele sente em se mover, mais seus gestos se expandem, seu corpo cresce
mais livremente, e mais a câmera deve aprender- retomando aqui uma imagem
proposta por Renoir- a “se virar”3. Os personagens que o cativam ora são indivíduos
que se espraiam para fora da lei, que “impacientam” o quadro: patrões e
escroques, mendigos, predadores e marginais - Boudu,
Batala, Renoir na Regra do jogo, Opale...; ou pelo contrário, são indivíduos
aprisionados no espaço, impossibilitados de se mover: os prisioneiros da Grande
ilusão, os do Caporal épinglé, os imigrados da Marselhesa, os resistentes de
Vivre livre. E fazer um filme, para Renoir, é atar entre si múltiplos
movimentos contraditórios- o dos atores, os da cena, contando com a escanção,
sempre autônoma, da câmera- e mostrar, talvez por intermédio desta operação,
que o que se tomava pelo real e se cria duro como ferro se metamorfoseia
subitamente em uma representação, onde cada personagens, em graus diversos,
desempenha um papel e permite, cedo ou tarde, que se manifeste o aparato
teatral- as bonecas vivas da Pequena vendedora de fósforos, o personagem do
vice-rei na Carruagem de ouro, e tantos outros personagens até aqueles do
“Último réveillon” no Pequeno teatro de Jean Renoir.
É vão pensar os filmes de Renoir- assim como os de
Rossellini e de Godard- em termos de obra-prima. A perfeição jamais o
requisitou ou estacou. Vemos em obra o trabalho de duas direções
contraditórias, até mesmo incompatíveis. De um lado- e isto se verifica
sobretudo nos primeiros filmes- a afirmação quase experimental de um material bruto -cujos ápices me parecem ser La nuit du
carrefour, Madame Bovary e Toni; mas os outros que apresentam este aspecto acre
e nu permitem ver com uma bela indiferença resíduos de “costuras” do roteiro,
certas atitudes coquettes dos atores,
às vezes cacoetes um tanto fáceis de autor. Este material é um voluptuoso
“rompedor” de cadres e de regras; por outro- isto torna-se cada vez mais claro
em meados de 1940-, temos uma representação deliberadamente condensada da
realidade atravessada pelo sentimento moral e filosófico provisoriamente
experimentado por Renoir, pelo menos até o ceticismo cósmico do Rio sagrado,
onde os personagens às vezes exprimem muito claramente uma consciência aguda de
suas próprias vidas, consciência que nos filmes da primeira fase só lhes era
acordada em pequenas doses e à distância. Os ápices desta segunda fase seriam O
Diário de uma camareira, Vivre libre, O Rio sagrado, French-cancan, O
testamento do doutor Cordelier, Le caporal épinglé e O pequeno teatro de Jean
Renoir.
Para tornarmos ao Crime do senhor Lange, encontramos aqui
belos exemplos de “material bruto” interrompidos por alguns momentos de
esquematismo ou de complacência -o personagem interpretado por Brunius, a
seqüência do padre verdadeiro no trem- devidos a uma certa demagogia laica da
época, além de “cacoetes de autor” de Prévert que infelizmente não incomodaram
Renoir; mas a última meia hora- o desaparecimento e o retorno de Batala-, que
anuncia o desregramento social da Regra do jogo, retornando a seu favor a
imagem desprezível contida na expressão “fazer seu circo” ou “fazer seu
cineminha”, prepara uma síntese apaixonante de todos os tipos de teatro que os
filmes seguintes vão retomar e desenvolver.
Notas:
1. Renoir
está mais inspirado na Marselhesa; menos “esmagado” por seus atores, ele
busca aqui o realismo, a verdade histórica e seus personagens. E sua
simpatia por eles, mais equilibrada, mostra-se também mais forte. Como
também em Toni. Lange
é com efeito um rascunho de Cordelier.
Se Chaplin e Stroheim assombram o
imaginário cinematográfico de Renoir, Anderson e Stevenson são seus inspiradores
ficcionais mais profundos.
2. Eles apostam numa distribuição
unívoca das responsabilidades, ilustram uma visão ideológica da realidade,
pouco se importam com a verossimilhança dos personagens e só retém dos filmes
anteriores os efeitos anedóticos.
3. Faire
le bouchon: A se adaptar ao jogo móbil e
flexível dos atores, a mover-se e dançar com eles.
Jean-Claude Biette, Cahiers du cinéma, número 297, fevereiro
de 1979. Republicado em A poética dos autores.
Tradução: Luiz Soares Júnior.