terça-feira, 4 de dezembro de 2012

O crime do senhor Lange de Jean Renoir




O personagem mais cativante de todos é Batala. Sua existência, que poderia parecer paradoxal no roteiro, se afirma na tela por meio de uma invenção de gestos e um virtuosismo no falar onde vemos Jules Berry, impulsionado por Renoir, demonstrarmo-nos que a coerência de um personagem que não exprime o que pensa é difícil de se manter, e sobretudo exige um controle constante da tentação de brilhar por brilhar. Berry representa diante de nós em escroque mestre com tamanha felicidade expressiva que não podemos impedir-nos de pensar que Renoir, que lhe proporciona uma energia tão contagiante, prefere- como pretexto estético- o personagem do vilão à coletividade operária que os movimentos destes anos 30 levavam para diante de sua câmera 1. É mais excitante para um cineasta mostrar personagens maus que reprovamos, ou cujo comportamento nos é intolerável, que personagens que se comportam bem. E é penoso- quer façamos filmes ou como espectadores- ver e escutar personagens constantemente vítimas das circunstâncias e que nunca tiveram nada a “ver com o pato”. É em parte por este motivo que  a maioria dos filmes com temática social nos dias de hoje não apenas são intrinsecamente ruins, como acabam por nos tirar todo o prazer pela vida, pouco conhecedores das engrenagens que regulam a máquina humana.2 A glória universal de Chaplin nos permitiu rever e descobrir os sublimes Luzes da cidade e Um rei em Nova York, onde este problema se encontra posto e  resolvido- ou antes: de antemão resolvido, como se o fato de necessitar colocá-lo enquanto tal representasse uma incapacidade de detectar o que a rigor não existe.

O que assombra Renoir- sabemos desde Douchet e Rohmer, e verificamos revendo seus filmes- é a mobilidade e a metamorfose. Ora, quanto mais um personagem detém o poder- ou aprende a deter- de se transformar, menos dificuldade ele sente em se mover, mais seus gestos se expandem, seu corpo cresce mais livremente, e mais a câmera deve aprender- retomando aqui uma imagem proposta por Renoir- a “se virar”3. Os personagens que o cativam ora são indivíduos que se espraiam para fora da lei, que “impacientam” o quadro: patrões e escroques, mendigos, predadores e marginais - Boudu, Batala, Renoir na Regra do jogo, Opale...; ou pelo contrário, são indivíduos aprisionados no espaço, impossibilitados de se mover: os prisioneiros da Grande ilusão, os do Caporal épinglé, os imigrados da Marselhesa, os resistentes de Vivre livre. E fazer um filme, para Renoir, é atar entre si múltiplos movimentos contraditórios- o dos atores, os da cena, contando com a escanção, sempre autônoma, da câmera- e mostrar, talvez por intermédio desta operação, que o que se tomava pelo real e se cria duro como ferro se metamorfoseia subitamente em uma representação, onde cada personagens, em graus diversos, desempenha um papel e permite, cedo ou tarde, que se manifeste o aparato teatral- as bonecas vivas da Pequena vendedora de fósforos, o personagem do vice-rei na Carruagem de ouro, e tantos outros personagens até aqueles do “Último réveillon” no Pequeno teatro de Jean Renoir.

É vão pensar os filmes de Renoir- assim como os de Rossellini e de Godard- em termos de obra-prima. A perfeição jamais o requisitou ou estacou. Vemos em obra o trabalho de duas direções contraditórias, até mesmo incompatíveis. De um lado- e isto se verifica sobretudo nos primeiros filmes- a afirmação quase experimental de um material bruto  -cujos ápices me parecem ser La nuit du carrefour, Madame Bovary e Toni; mas os outros que apresentam este aspecto acre e nu permitem ver com uma bela indiferença resíduos de “costuras” do roteiro, certas atitudes coquettes dos atores, às vezes cacoetes um tanto fáceis de autor. Este material é um voluptuoso “rompedor” de cadres e de regras; por outro- isto torna-se cada vez mais claro em meados de 1940-, temos uma representação deliberadamente condensada da realidade atravessada pelo sentimento moral e filosófico provisoriamente experimentado por Renoir, pelo menos até o ceticismo cósmico do Rio sagrado, onde os personagens às vezes exprimem muito claramente uma consciência aguda de suas próprias vidas, consciência que nos filmes da primeira fase só lhes era acordada em pequenas doses e à distância. Os ápices desta segunda fase seriam O Diário de uma camareira, Vivre libre, O Rio sagrado, French-cancan, O testamento do doutor Cordelier, Le caporal épinglé e O pequeno teatro de Jean Renoir.

Para tornarmos ao Crime do senhor Lange, encontramos aqui belos exemplos de “material bruto” interrompidos por alguns momentos de esquematismo ou de complacência -o personagem interpretado por Brunius, a seqüência do padre verdadeiro no trem- devidos a uma certa demagogia laica da época, além de “cacoetes de autor” de Prévert que infelizmente não incomodaram Renoir; mas a última meia hora- o desaparecimento e o retorno de Batala-, que anuncia o desregramento social da Regra do jogo, retornando a seu favor a imagem desprezível contida na expressão “fazer seu circo” ou “fazer seu cineminha”, prepara uma síntese apaixonante de todos os tipos de teatro que os filmes seguintes vão retomar e desenvolver.



Notas:

1. Renoir está mais inspirado na Marselhesa; menos “esmagado” por seus atores, ele busca aqui o realismo, a verdade histórica e seus personagens. E sua simpatia por eles, mais equilibrada, mostra-se também mais forte. Como também em Toni. Lange é com efeito um rascunho de Cordelier.

Se Chaplin e Stroheim assombram o imaginário cinematográfico de Renoir, Anderson e Stevenson são seus inspiradores ficcionais mais profundos. 

2. Eles apostam numa distribuição unívoca das responsabilidades, ilustram uma visão ideológica da realidade, pouco se importam com a verossimilhança dos personagens e só retém dos filmes anteriores os efeitos anedóticos.


3. Faire le bouchon: A se adaptar ao jogo móbil e  flexível dos atores, a mover-se e dançar com eles. 



Jean-Claude Biette, Cahiers du cinéma, número 297, fevereiro de 1979. Republicado em A poética dos autores.

Tradução: Luiz Soares Júnior.