segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Die for Mr. Jensen. John Cassavetes: Uma mulher sob influência.

Ele não toma por ponto de partida as figuras que se abraçam,
não há modelos que ele dispõe e agrupa.
Ele começa pelos recantos, onde o contato se dá mais estreitamente,
como se nos pontos culminantes da obra;
ali onde algo de novo se produz ele inicia seu trabalho
e consagra todo o saber de seu instrumento às misteriosas aparições
que acompanham o nascimento de uma coisa nova.

Rainer Maria Rilke: Auguste Rodin. ( 1903).


Certos atos extremamente simples, em Uma mulher sob influência, a princípio nos parecem incompreensíveis: este homem ( O. G.Drun) que Mabel encontra no bar, cuja nuca ela acaricia desde que se dá conta de sua presença, para em seguida lhe perguntar pelo nome, rindo, ela o conhecia ou não? Esta questão permanece indefinida ( trata-se de um amigo próximo? parente? amical porque ainda desconhecido, inteiramente sob a esfera do possível? amical por se assemelhar a qualquer outro homem?), e esta indefinição é o que leva Mabel a reconhecer no dia seguinte, neste personagem casual, a figura excessivamente íntima de seu marido Nick ( Peter Falk), e ao filme de colocar em seu frontispício a silhueta de Garson Cross como o emblema da seguinte questão: o que posso saber de um corpo? há algo a saber sobre um corpo, a reconhecer? Isto já não equivaleria a uma admissão de que, de antemão, ele nos escapa? Uma mulher sob influência é um filme concernido pelo princípio que talvez mobilize da melhor maneira as potências figurativas da cinematografia: a plasticidade das criaturas.

Por outro lado, alguns fenômenos muito complexos, delicados ou que se encontram entre os mais arcaicos na história da representação sofrem aqui um tratamento resolutamente claro, não mais sendo trabalhados por valores indefinidos, mas agora da definição: a loucura, a fraternidade, o que significa ser um ator. Encontram-se assim implicados, de forma surpreendente mas com grande rigor, certos procedimentos descritivos típicos do cinema. Cassavetes assinala um dentre eles, que identifica o trabalho de construção de seu filme à tradição de experimentações modernas sobre a estruturação de uma obra, por exemplo, a força que uma síntese temporal atribui a temporalidades frágeis ou da discrição que é conveniente na abordagem de fenômenos devastadores: “Quando vemos esta mulher sozinha ao telefone durante dois minutos, é preciso sentir que ela pode enlouquecer.Na vida, o orgasmo ou o tédio podem nos levar à loucura. Mas como descrever na tela que uma mulher pode enlouquecer por ter ficado sozinha por trinta segundos?” A obra de John Cassavetes pertence à tradição de Faulkner e Schoenberg , obras que trabalham as profundezas das formas, dinamizada por esta idéia inicial de que “as formas da arte registram a história da humanidade com mais exatidão que os documentos”, uma vez que, escrevia ainda Adorno, “ a arte se dirige ao sofrimento real”, e não a uma aparência das paixões.


Spaghettis?


A loucura, em Uma mulher sob influência, aparece como um dom: no sentido do dom de si e do talento que nos foi proporcionado. É o gênio da inventividade transbordante, de que Mabel não cessa de dar provas na primeira parte do filme, antes de sua internação, excitada por tudo o que ela encontra , inclusive a família, profundamente atenta para com todos com quem ela interage, mesmo que apenas por um instante.
Sua loucura é aquela da grande solicitude, cujos antecedentes encontraremos na gentilezza de São Francisco de Assis e de seus companheiros, e de imagens- sobretudo gestos- nos Onze Fioretti de Saint François d’Assise, construídos sobre uma alternância permanente entre o patético e o burlesco. Mas se o filme de Rossellini muda de registro emocional de uma seqüência à outra, o personagem de Mabel fulmina de uma réplica à outra: “Get back to your coffin!”, grita ela ao pobre dr. Zepp ( Eddie Shaw), provocando a hilaridade em pleno furacão de sua grande e dolorosa cena de histeria. Pois o dom de si provém desta faculdade de esposar todos os registros “pathiques” 1, de captar ao menor frêmito cada afeto, cada impulso emocional do outro, disposto a prolongá-lo por excesso, já que este ressoa intensamente em si. Ela preside à mesa do almoço com os spaghettis, ordena às cerimônias de alegria, é sempre o centro, ora triste ora ardente da reunião ( operários, crianças, amigos, parentes), suas aparições subitamente organizam um espaço até então amorfo: Mabel, tal como é construída pela mise en scéne, não é louca ao ponto de uma diferença irreparável para com os outros, ao contrário: ela se encontra no próprio princípio da comunidade humana, Mabel recolhe a sociabilidade de todos, até o ponto drástico de tornar-se seu único pretexto e meio de advento.

Se ela não constitui a diferente( différente), uma característica no entanto a distingue dos outros homens, uma vez que cada um se distingue de todos os outros: Mabel tem um projeto, uma linha de conduta; ela parece viver segundo impulsos irracionais, que nos dão a idéia de uma completa liberdade, uma vez que ela é a única fonte soberana de suas ações. Seu programa, que revela ao marido quando da grande crise, consiste em cinco argumentos, e é o programa do puro amor: “I have five arguments in my favor: Love- Friendship- Comfort- I’m a good mother- and I belong to you”. Neste sentido, na contracorrente das ações indecisas, hesitantes e coagidas pela instância social dos outros personagens, a conduta de Mabel é fruto de uma clareza e simplicidade radicais.

Nick, ao contrário, não cumpre o que promete ( firme decisão de não partir para uma noite de trabalho: logo o encontramos no canteiro de obras), não o conclui ( cena da celebração fracassada que ele organiza para o retorno de Mabel da clínica: “I can’t do it... Do you want me to do it?”) ou não sabe o que faz. Este último caso dá lugar à cena mais sutil de Uma mulher sob influência, a seqüência em travelling do acidente de um operário, “Eddie the Indian” ( Charles Horvath), ameaçado por Nick, quando no entanto este personagem era o único que não tinha zombado da internação de Mabel. Súbito o operário cai, desliza ao longo do imenso declive de pedra do monumental canteiro, que se assemelha à cratera de um vulcão, compreendemos mal a causa desta queda ocasional, entendemos apenas que Nick é o culpado, não vemos se o operário está morto ou ferido; o tratamento plástico, os faux-raccords magníficos tornam o evento ilegível, mas vemos perfeitamente que este concentra a angústia e o sofrimento de Nick, atualiza sua estupefação. A cena do canteiro, de clima realista, se encontra estruturada por um complexo: o da culpabilidade experimentada por Nick em relação a Mabel, encarnada na forma de uma queda de pesadelo, literalmente, uma catástrofe.

A figura de Mabel, construída sobre o princípio desta infinita solicitude segundo a qual a compreensão do Outro não implica na capacidade de compreender as coisas, leva o filme a renovar as modalidades da descrição: deste ser diante de mim, o que me foi dado a ver, o que permanece para sempre inassimilável: seu corpo, seu gesto, seu sopro? Estes elementos esposam de maneira exata a forma de sua presença no mundo? que traços seus eclipses ou sua desaparição deixariam? E por exemplo, a propósito da própria Mabel: quem a toma por uma louca? São, notadamente, os transeuntes aos quais, com seu vestidinho curtíssimo, que evoca irresistivelmente o de Barbara Lodan em Wanda ( o outro grande filme americano moderno sobre o desespero das mulheres) ela pergunta a hora com seu entusiasmo típico, salta e brinca diante deles, a feliz excitação de esperar pelo ônibus que trará suas crianças da escola. É Mister Jensen ( Mario Gallo), para quem as crianças deverão morrer, ao dançar O lago dos cisnes, e que não aprecia nada a ostentação da expressividade infantil. Parece-nos agora impossível subscrever à leitura deles: a decifração do comportamento de Mabel apenas pelo diagnóstico da loucura, a própria tarefa da interpretação mostram-se terrivelmente insuficientes.

É preciso retornar ao real da visão e da escuta, ao sensível e à sensação. Rilke sobre as “coisas” de Cézanne, ou seja, sobre os limites da representação figurativa: “incompreensível, como queiram, mas tangível”.

Minnie e Moskowitz, o filme precedente de Cassavetes, se organizava segundo uma dupla estrutura: podíamos assistir à tumultuada aliança entre Minnie e Moskowitz ora como o prolongado mal-entendido de duas criaturas desvairadas, fugindo da depressão a qualquer preço, ( e a extasiada seqüência final sobreviria como uma queda , uma surpresa contra toda expectativa precedente), ora como a difícil cura de duas consciências enérgicas ( e a seqüência final, cláusula lógica, só se encarregaria de implantar a confirmação). Era possível ver em Minnie tanto o filme da patologia cotidiana quanto das contingências de um amor inelutável. Ou antes: ao permitir estas duas apreensões antagônicas, o burlesco ou o dramático, o filme, no intervalo preenchido entre evidência e mau-entendido, encontrava seu sentido: do que me importa absolutamente ( o objeto amado), não compreendo absolutamente nada, pois- princípio de Mabel- eu lhe pertenço de corpo e alma.
Uma mulher sob influência se organiza também segundo uma dupla estrutura simultânea, esta mesma estrutura redobrada no “sucessivo”. É claro, tratam-se das relações entre uma mulher e seu marido mas, ao mesmo tempo e sem que haja a prevalência de uma dimensão sobre a outra, se expõe a parceria de uma atriz e de seu metteur-en-scéne. A casa, com suas fronteiras simbólicas, seu palco principal, suas coxias ( onde se desenrola a cena mais intensa, em sombrios closes estabelecendo maus raccords com os claros planos de conjunto de Mabel entrando, depois saindo deste lugar fechado, tépido e abstrato onde, entre lágrimas e tormento, ela reencontra suas crianças) e a faculdade que possui Mabel de transformar todo espaço em tripé ( inclusive uma mesa da sala de jantar) abriga antes de tudo um teatro e sua trupe. Os diálogos dos reencontros entre Mabel e Nick , diante da família espectadora , também esta mobilizada ( “Come on! Stop with the jokes! Conversation! Normal conversation! Family atmosphere!”) são a recitação dos conselhos rituais do diretor ao ator: « Just be yourself. Be yourself ! Do what you want ! » e as interpelações naturais do ator ao seu metteur en scéne: « How am I doing ? » E se Nick pede a Mabel para executar sua expressão favorita, « Give a beh-beh ! Better than that, a real beh-beh ! », é o próprio filme que pede a Nick, muito aplaudido também, - quando ele se recusa, ao telefone, a ir trabalhar, ou quando tira a roupa, na cobertura do caminhão - pede a Nick para que repita seu texto: a insignificante observação de Nick, a propósito da aparição súbita das crianças na rua após meses de ausência, quando da seqüência do almoço com espaguetes, nos é oferecida em duas versões, a primeira um pouco chã, como uma leitura à la palco italiano, a segunda super-expressiva. Enfim, sobre a mesma situação,a mesma trama narrativa, o filme nos dá sucessivamente a versão de Mabel, depois a de Nick, e seria preciso comparar aqui a festa infantil para Mr. Jensen, orquestrada por Mabel, e o piquenique marítimo organizado por Nick, completamente desastroso também, mas que nos oferece uma sublime descrição da afeição paterna.

No entanto, esta estrutura dupla, se afirma em si algo a respeito da função do ator: que seu trabalho não é uma metáfora, algo alheio à vida, um reflexo esvaziado de substância, mas o que anima a vida em seu princípio, como desejo de “mise en relation” 2 e troca- ,esta não se apresenta de uma forma reflexiva, como nos filmes de Bergman, por exemplo, onde a importância e a gravidade da questão colocada pelo ator ( a adesão a si mesmo, a necessidade do duplo, etc) constituem o seu próprio fim. O filme impede, interdita explicitamente semelhante fechamento, em favor de uma réplica de Mabel na última seqüência, no momento em que ela desce novamente as escadas, depois de ter enfim feito as crianças dormirem: Mabel se volta para Nick e subitamente, com uma voz nada histérica, perfeitamente natural, mas de um natural que produz uma terrível cisão, Gena Rowlands lança a seu marido ( Peter Falk/ John Cassavetes): « You know I'm really nuts ». A irrupção de um corpo real, do corpo de Gena Rowlands, a serviço desta “deformação” vocal , age no sentido de nos alienar definitivamente do referente: pois o atordoamento provocado pela súbita passagem de um corpo verdadeiro remete o conjunto da ficção ao registro da representação: nós não estávamos assistindo à aparição de uma presença, apenas ao magistral espetáculo da plenitude criativa. Estávamos vendo e entrevendo a totalidade do trabalho do ator, mas talvez não tenhamos visto nada do próprio ator, que sem dúvida é inteiramente investido pelo personagem.

Ver um corpo, realmente vê-lo, vê-lo igualmente onde ele não se encontra, em seu gesto e nos gestos que ele não executou, segundo a vibração de seu sopro e em suas intermitências. O que o filme nos descreve da experiência sensitiva de Mabel, de sua invenção permanente de eventos afetivos e ginásticos; estas matérias que às vezes invadem a imagem quando Nick, graças a quem as paisagens adentram o filme, vem ocupá-la (as torrentes de água, de areia, súbitas homogeneidades do plano excessivamente vazio ou cheio, evocação da imagem em sua textura); o que o filme nos descreve da apreensão e da inteligibilidade dos atos; tudo sempre nos conduz ao plano mais sensível dos fenômenos. E isto nos indica uma função do ator segundo Cassavetes: ele é aquele que se põe no limiar da inconsistência das coisas, onde a sensação não mais constitui lei, onde a experiência ainda não começou, onde tudo ainda está por ser inventado, neste lugar onde o primeiro, onde o mínimo gesto pode criar um mundo e o encontro com o desconhecido. Talvez seja isto o que suscita a loucura, ser a matéria de uma pura possibilidade, do aparecimento eventual e incondicionado de um movimento ou de um afeto extraordinários.

Which self?

O ator em Cassavetes vem efetuar uma improvável ciência da subjetividade, no modo de uma infinita e sem reservas abertura ao Outro, que passa também por um reconhecimento da relatividade de si. Mabel aceita, acolhe, busca o outro como se tivesse fome dele, e encontra, ao longo do filme, um número inacreditável de gestos para representar seu desejo. O que é um corpo, do qual sou soberano, como tocar a este homem? A atriz trabalha sob o império destas questões, que não admitem necessariamente respostas, que não visam igualmente o conhecimento, mas que a fazem advir, em cada uma de suas espetaculares entradas em cena, como a portadora do mistério da pessoa. E sua criação própria consiste em tornar este mistério inesquecível, em jamais o menosprezar ou recalcar, quando este é vivido na experiência comum.

Nisto, sua conduta se torna insuportável para quem prefere viver no esquecimento da “precariedade das coisas”, que enxerga a si mesmo como o guardião do Ser e dos outros ( aí temos a tirada assustadora e burlesca a respeito da mãe de Nick: « I don't like this woman in my house guarding the staircase. She's guarding the staircase from me. Up above are my children in my home and she is the kiss of death ») ou guardião de si mesmo: Mr. Jensen, que se recusa a dançar e brincar de morrer, recusa-se a assistir à morte do outro, recusa a evidência do descontínuo e da intermitência.

O problema da criatura em John Cassavetes não concerne à identidade, nem a adesão a si mesmo, e ainda menos a identificação do outro ( basta “dar uma cheirada nele”, como no encontro de Mabel com Garson Cross). Ele concerne à qualidade de fusão entre dois corpos, ou entre os elementos de um conglomerado de corpos- seqüência das crianças e da avó, convidados a juntar-se aos pais no leito: a que grau vai se operar a fusão e quais qualidades esta vai liberar? Modos de troca, densidade, intensidade, cintilações, vertigens.
Esta abertura ao encontro sob o modo da fusão, às vezes decepcionante é claro, engendra um repertório de paixões, de afecções e de signos resolutamente inédito, uma vez que o próprio ator já está ciente de muitas outras retóricas. O gestual de Mabel toma empréstimo ao repertório americano ( o « Stand up for me, Dad », tomado ao James Dean de Juventude transviada), napolitano ( os gestos de maldição, por exemplo) e remonta, com freqüência, às origens da arte do ator: a dança, a pantomima, e ainda mais remotamente, os saltos acrobáticos, que engendraram a ambos, como quando Mabel faz sua primeira aparição no filme, ao mesmo tempo verossímil e virtuose, equilibrando-se sobre o velocípede de seu filho.

Mabel: I don't know what you want. How do you want me to be?
Nick: Yourself.
Mabel: You mean funny or sad or happy or shy, or what? Which self?

O ator, na intuição de que sua criação possibilita ao humano a experiência, o experimentável, mostra-se aqui sabedor da origem e da diversidade do ato criativo.

Uma das invenções de Mabel, talvez a mais extraordinária, leva-a a se inclinar sobre um corpo: um dos convivas, Willie Johnson ( Hugh Hurd), um operário negro levado por Nick para o almoço, põe-se a cantar, ele canta Verdi, Celeste Aida, Mabel se aproxima, se inclina, muito próxima a seu rosto, muito próxima de sua boca, muito próxima de seu canto. Ela busca o segredo da voz, ela quer descobrir o segredo da beleza, ela se aproxima deste homem como se estivesse a redefinir o corpo do outro, e como se ela visse aquilo que só poderíamos ver a partir de sua intervenção: ela vê a sensação do canto, e dela nos oferece a intuição.

O Ser é aquilo que exige de nós criação para que dele tenhamos a experiência.
( Maurice Merleau Ponty).
Notas:

1. pático: Termo da devoção mística: refere-se àqueles que permanecem sujeitos às suas paixões.
2. Em francês no original: colocar em relação, relacionar.

Nicole Brenez, De la figure en general et du corps em particulier. L’invention figurative au cinéma.
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Jacques Tourneur, por Louis Skorecki

Por que acho que Tourneur é o maior dos cineastas? Tomemos como elementos de resposta os dois únicos filmes que tivemos a chance de ver dele ultimamente: Leopard man e Wichita. De Leopard man, pode-se dizer que é o melhor realizado, o mais perfeito e representativo da série dos três filmes produzidos por Val Lewton ( é o último. Os dois primeiros são Cat people e Walked with a zombie). Um cenário praticamente único, uma rua, uma rua principal. Figurinos estereotipados, atores que tem quase todos o mesmo talhe e os mesmos traços. (...). Enfim, quase todos. Uma exceção: um personagem- central, principal ele também, embora secundário nos créditos- que organiza o roteiro, que dá as cartas, que tem as cartas na mão.Desta mediocridade, desta pobreza de contrastes, Tourneur tira o máximo, o filme que mais perfeitamente dá medo da história do cinema: a estrutura da história ( uma rua, uma mulher que anuncia o que vai se passar, alguns personagens em miniatura, como bonecas feitas do mesmo molde) não é nada além disso ( nenhum a priori teatral ou linear, nenhuma ambiência onírica e poética convencional), isto que se sabe o tempo todo- confusamente- e ao longo do qual se avança, enquanto a monótona espera por alguma iluminação que viesse pôr um termo ao nosso medo nos mantém na angústia total, a angústia ordinária. Angústia causada, durante todas as etapas deste trágico e triste trajeto, por um galho de árvore que se quebra sob o peso de um leopardo assassino e invisível ou um rastro de sangue que escorre sob uma porta. Tudo sob uma transparente luz, trans-lúcida.

Passa-se de outra maneira, e de forma semelhante em Wichita.De outra forma porque se trata de um roteiro complicado, (roteiro que Biette errou ao tomar ao pé da letra, de forma tão sisuda, em primeiro lugar porque não é um roteiro muito bom, mas também porque Tourneur não se importa em nada com temas e tramas, só se trata para ele de filmar o entre-deux -o interstício: o espaço, o vazio, o ar, o intervalo entre os atores, com o cenário, e até mesmo o espaço entre os atores e seus personagens, seus figurinos, suas roupas), um roteiro complicado e um filme entre dois orçamentos: nem a superprodução, nem o filme B, um filme monstro, uma aberração. Semelhante porque Wichita é, devido à sua hibridez, livremente aceita por Tourneur- que nunca, com uma exceção ou outra, recusou um projeto de filme- do roteiro e de suas condições de filmagem, um filme sobre o tédio e um filme onde nos entediamos. Não como se deve( on doit) entediar- é algo habitual- com os grandes clássicos da pretensa história do cinema. Nenhuma relação. Com freqüência se disse- e com freqüência é falso dizê-lo- que todo grande filme é um documentário sobre sua própria filmagem. Neste filme isso é verdade: um homem de mais de quarenta anos ( Joel McCrea), sem dúvida um homem inteligente, sensível, orgulhoso, obrigado a se fantasiar de Wyatt Earp, o célebre justiceiro do Oeste, a fim de impor a lei e a ordem na pequena e próspera cidade de Wichita.

E tudo isto diante dos olhos do seu velho amigo Jacques Tourneur ( com quem ele rodou,seis anos antes, um pequeno filme intimista, Stars in my crown, uma série de vinhetas sobre a vida de uma pequena cidade americana, um filme que é para ambos a mais bela lembrança e o mais belo momento de suas vidas...), um velho amigo com olhar cético e divertido ( mas sempre correto) que devia estar se perguntando, porque (,...) “ ele adorava a idéia do filme: homens que conduzem rebanhos durante meses e esperam muito tempo pra tomar um trago. Quando o fazem, bebem muito e quebram tudo. É real. Isso se passou, na época”, um velho e divertido amigo que devia estar se perguntando, diante de Joel McCrea, incomodado em suas roupas de justiceiro em missão implacável, como ao mesmo tempo e de forma bem correta filmar as inépcias de um roteiro para crianças retardadas, e esta violência que explode mortalmente e que, para ele, constitui a força da fábula. Na verdade, Jacques Tourneur não está se perguntando por nada, porque ele escolheu: ele filma ao pé da letra e de encomenda os protagonistas entediados e fantasiados desta mascarada histórica que reconstitui as historiazinhas verdadeiras do Oeste folclórico ( e nos entediamos como eles ao vê-los ocupar da melhor forma que lhes é possível todo espaço impossível a preencher do Cinemascope, que no entanto Tourneur consegue ocupar inteiramente: mas nesse caso trata-se de um tédio formidável, de uma inteligência e precisão fotográficas como só nos podem mostrar dois mecanismos que possuem para nós, hoje em dia, status de pré-história, mais de cem dentre os mais belos- e dentre os piores- westerns. Tudo está no cadre. Nada de fora de campo. Nada existe- e isto é mais do que suficiente- senão a complexidade fiel e minuciosamente transcrita de um découpage impossível de se acreditar mas possível- e para Jacques Tourneur tudo é possível- de ilustrar,de filmar, tal qual); mas Tourneur filma também a morte, em pessoa: no cadre de uma janela, no cadre de uma porta, arrastados por duas balas perdidas e precisas, uma criança e uma mulher, ( culpados simplesmente por serem parentes dos atores do drama), passam, num piscar de olhos, na velocidade mais terrível e mais inexorável, do estado de vida ao estado de morte. O que ainda se movia há um instante é marcado definitivamente pelo selo da imobilidade, da rigidez. A morte é a parada( arrêt) brusca e irreversível de toda vida, de todo movimento. E não há nada mais a dizer. “Para Jacques Tourneur, os personagens de uma história são perfeitos desconhecidos, cujo mistério não deve ser esclarecido ou explicado” ( Jean Claude Biette). Acrescentemos: nada existe além da fidelidade a mais escrupulosa possível ao découpage ao qual Tourneur escolheu se submeter, nada existe além do que está na tela, no cadre. O cinema de Jacques Tourneur é sim o cinema do invisível, mas de um invisível que é capaz de se ler e se desenhar sobre a tela: os traços estão lá, as pegadas, e as sombras, e basta, em seu pequeno fora de campo apaixonado e pessoal, não velar os próprios olhos diante da persistência do real, destas manchas do real que são as efetivas marcas sobre a tela de uma experiência única do invisível; basta olhar o filme, isso dá medo, é assim, assim se vê.
Tourneur não existe. No momento de seu esplendor ( ou seja, para ele, quando filmava em Hollywood e, para nós, quando o descobrimos, deslumbrados, no começo dos anos 60, nos cinemas dos bairros podres, e sob forma de Versions françaises tão podres quanto), ele já estava além ( il était dejá ailleurs). Além: inconsciente de sua própria importância, arrasado de tanto cinema, mas muito intoxicado de admiração por um modelo por essência fora de alcance ( seu pai, Maurice, cineasta prestigioso que Jacques, toda sua vida, se persuadiu de jamais poder igualar),e sobretudo distanciado de seus colegas, os mais dotados artesões do filme B ( Ulmer, Dwan, Heisler, Ludwig), por uma espécie de orgulho de último minuto que sempre lhe permitiu saber que ao fim de contas o gênio era ele.

(...) Jacques Tourneur: “Reparei que , na maioria dos filmes, os atores tem tendência a gritar. O mesmo diálogo, dito bem mais baixo, é melhor apreendido, tem mais intensidade. Fora isso, o próprio som é muito importante, não gosto de misturar os sons. Sigo sempre de muito perto a sincronização e montagem sonora de meus filmes. Às vezes tomo grandes liberdades. Se alguém vai falar, se levanta ou vai caminhar, corto todo o som e não se ouve o ruído dos passos. Se um malfeitor entra numa casa e vai subir uma escada, sei que, depois eu ir embora, os técnicos vão manter todos os sons, a escada,a porta, os passos. É por isso que faço minha própria dublagem de som no estúdio. Assim que o ator terminou de falar ou de abrir a porta, corto o som e ocorre um grande silêncio, enquanto ele atravessa a sala ou sobe a escada. Assim,eu sei que quando o filme estiver terminado e eu não estiver mais lá, os técnicos não farão besteira na dublagem. Com freqüência, faço isso: deixo primeiro o ator interpretar a cena, como ele quiser. Depois, lhe digo: Muito bem. Refaça exatamente a mesma coisa, mas fale duas vezes menos forte. Me criticam dizendo que dessa forma minhas cenas ficam um pouco sem brilho ( ternes), inexpressivas. Talvez tenham razão, mas acredito que isso lhes acrescenta, de qualquer modo, um elemento de verdade”.
Tudo está dito. Que outro cineasta hollywoodiano ( salvo talvez John Ford, que desconfiava de tal maneira dos montadores que evitava filmar um metro de película a mais, que poderia servir para forjaram uma outra versão às suas costas), que outro cineasta desenvolveu um sistema holywoodiano bis, duplo- sempre preservando-o previamente das alterações que Holywood número 01 com certeza decidiria impor? Nenhum, não conheço outro.

O mais miraculoso é que a obra de Tourneur permanece exatamente igual ao que ele descreve. Revejam Appointment in Honduras ( se puderem arranjar uma cópia): efetivamente, vocês vão ouvir atores, Ann Sheridan em particular, que não gritam.Coisa rara: personagens que murmuram seu texto. E , claro, toda a mise en scéne que se segue: uma maneira única( e inimitável) de filmar os atores como dóceis fantasmas, sombras familiares. Esta ternura pelos atores- espectros ( revenants), aliada a uma insensata preciosidade do trabalho sobre as cores ( a robe amarela de Ann Sheridan, que literalmente desbota, eclipsando tudo ao redor dela), é isto o que ainda hoje constitui o gênio inacreditavelmente tímido do cinema de Tourneur.

Um cinema que, confessemos tudo, nos é a cada dia mais inútil, a nós, que esperamos tolamente dos filmes que não continuem a se atolar neste neo-classicismo amorfo, último sobressalto de cine-teleastas desesperados por terem perdido a receita ( estúdios+ grana+ engenhosidade dos artistas-artesões + inventividade de uma arte industrial em pleno boom) do velho verdadeiro cinema clássico. Um cinema cuja fase perversa mais consumada é representada por Jacques Tourneur.
Então, põe-se uma única questão: que fazer desses filmes tão perfeitos, destas essências de obras-primas, quando por acaso os encontramos? Esta questão se pôs no domingo passado ( exatamente, 28 de outubro de 1985) quando Brion exibiu no Cinéma de minuit, na FR3, um dos mais raros filmes de Tourneur, Canyon passage ( 1946). (...) este Tourneur trata-se de uma absoluta maravilha. Mas para realmente vê-lo, para apreciar sua inteligência clássica, que esforço é preciso fazer! Esquecer de forma ativa os filmes com que o cinema e a tv nos galvanizam há anos, desaprender os “frou-frous” de imagens e de sons que nos jogam na cara em golpes furiosos de zooms, mudar o ritmo da visão. É preciso lavar os olhos. Unicamente sob esta condição ( que é mais fácil de enunciar que de “preencher”) pode-se penetrar em Canyon passage: da abertura mizoguchiana ( em primeiro plano, a chuva respinga sobre o teto, um cavaleiro se aproxima,a câmera desce para se pôr à sua altura) a uma sucessão de preguiçosas vinhetas que desfilem no ritmo mais speed imaginável- o ritmo da elipse. Disputas de sombras sobre um muro, um ladrão visto de relance que foge por uma janela quebrada, paisagens de sonho atravessadas com a velocidade do technicolor: todo Wenders aqui desfila em trinta segundos! E ainda: peso opressivo dos corpos, sentimentos em suspensão. Como nesta inacreditável provocação de Bryan Donlevy a Dana Andrews: “Você faria melhor?”, ao acabar de beijar sua noiva, Susan Hayward. E Dana não perde tempo: tasca em Susan um guloso beijo na boca, Brian permanece imóvel, seu corpo atarracado teso. A moça em um instante é eclipsada. Passamos aí a uma outra coisa.

E ainda: uma casa que se constrói coletivamente, convivialmente – o sentimento da felicidade que perpassa ( talvez pela primeira vez) sobre a tela. Índios seminus que subitamente aparecem- como se jamais tivéssemos visto índios no cinema. E assim vai. Que outro cineasta saberia, no tempo de um único filme, inventar uma cena cega na qual um homem ( Ward Bond) despeja toda sua fúria sobre um poste; uma outra onde uma idéia nasce literalmente sobre um rosto ( Brian Donvely decide tornar-se assassino); uma outra cena, que capta o olhar terrificado de duas crianças ( com a velocidade da bala assassina- de criança também- de Wichita)?

Ninguém. Não há ninguém à sua altura.

Tourneur não existe, ele é o único. Não o último cineasta: o único. Canyon passage: ao mesmo tempo uma saga americana, um western documentário, uma história de paraíso perdido, uma epopéia doméstica, o afresco de mil desejos que se entrecruzam e o mais belo melodrama homossexual jamais encenado.
Ninguém filmou assim antes, ninguém filmará assim depois. É isso. Lumiére inventa as imagens. Tourneur se encarrega de destruí-las. Cinema, anti-cinema, depois chega. Bom dia, Madame Televisão.

Jacques Tourneur: Alguém disse outro dia uma coisa divertida: uma flor que colhe a si mesma comete um suicídio”. ( Câmera/stylo número 6, maio 1986).
Louis Skorecki.
Tradução: Luiz Soares Júnior.

O quarto verde, François Truffaut

Posto que, para quem tem dois olhos para ver e ouvidos para escutar ( o cinema também é som, não é?), trata-se do mais belo filme francês destes últimos anos-, falarei em primeiro lugar de Truffaut ator. E antes de tudo, de sua voz. Esta voz é um sintoma: o sintoma da preguiça e da imbecilidade de uma boa parte da crítica de cinema na França. A preguiça e a imbecilidade se notam quando se ouvem os epítetos “monocórdio, bressoniano”, quando nesta voz ressoa totalmente um outro som, uma emoção alheia às modulações expressivas habituais. Ora, a voz de Truffaut é, do começo ao fim do filme, a todo instante tensa, profunda, perturbadora. A inteligência de sua interpretação é marcante: “monocórdio, bressoniano”- estes enunciados sugerem, a quem não viu o filme, ( e estão aí para desencorajá-los a ver, é claro), alguma atonia e mortificação da voz em proveito do texto. Mas se o diálogo é constantemente admirável, a voz de Trufrfaut o leva à incandescência, com um acento violento, vigoroso, o próprio tônus da paixão. O que ouvimos ao longo de todo o filme na voz de Truffaut, de Julien Davenne, é esta violência da paixão- da idéia fixa e do coração inflamado- e também uma espécie de eco amplificado do grito mudo dos mortos, da muda solicitação, exigência infatigável, súplica dos mortos, em sua extrema debilidade diante do tempo e do esquecimento. Tal é o personagem e tal é o ator, perturbador e admirável. E seria preciso falar também do olhar de Truffaut, destes olhos realmente estranhos, sem nenhum reflexo, que sugerem uma indefectível angústia. Não se compreendeu que não é sem razão que Truffaut encarna seu personagem, e que neste, Julien Davenne, o ator e o personagem se entrelacem de forma tão estreita. Raramente um filme, enquanto enunciado cinematográfico, ou conjunto de enunciados, foi capaz de bombardear de tal forma as marcas do sujeito da enunciação como este aqui. Para dizer as coisas com mais simplicidade, raramente um cineasta “ se pôs” , se implicou a este ponto- implicando seu próprio corpo- em seu filme. E implicando seu corpo ( que se capte toda a ambigüidade da palavra,em relação a este filme fúnebre), até chegar aos seus mortos, mesclando os mortos de Julien Davenne aos mortos de François Truffaut, na capela ardente onde culmina o filme.
O filme também nos apaixona porque o sentido flui e reflui em uma dupla direção: do general ao mais particular ( o sentido que este filme tem para Truffaut, a paixão de Truffaut), do particular ao mais geral ( a ligação tão secreta quanto notória do cinema com a morte, a relação que nós, espectadores, interpelados um a um, temos com esta moderna capela ardente , onde o amor se nutre da morte, o cinema como arte necrófila).

Esta história tão singular, tão avessa em aparência às preocupações mundanas, tão semelhante ao seu herói solitário- mas sim, encontramos filmes que se assemelham aos personagens que figuram neles- é realmente um manifesto do cinema, e Truffaut não é apenas autor, ator e personagem, mas também crítico, tudo isto enredado, cerrado, inextricável. A câmara verde, a capela dos mortos, com a fotografia de Cocteau e até mesmo a de Oskar Werner ( curioso arrependimento do autor do “Diário” de Fahrenheit...): é claro que estas câmaras obscuras, onde brilha uma chama às vezes material, o fogo sutil de um delírio de eternidade, estas câmaras são o cinema. É claro que estes cadáveres captados no limiar de sua morte, sobre filmes de atualidades, em movimento ( créditos, com a superposição do rosto de Davenne-Truffaut en poilu1), ou fixados, não para sempre, mas fragilmente sobre placas de vidro ( quebradas pela criança muda em uma cena breve), é claro que eles nos transmitem a verdade do cinema. E é claro que é preciso aqui citarmos André Bazin, em sua dimensão mais metafísica, mais religiosa: “Só se conhecia, antes do cinema,a profanação dos cadáveres e a violação de sepulturas. Graças ao filme, pode-se hoje violar e dispor à nossa vontade o único de nossos bens temporalmente inalienável. Mortos sem requiem 2, eternos re-mortos do cinema!” ( “ Mortos todos depois do meio-dia, em O que é o cinema?)
Manifesto do cinema. Bazin em seu texto denunciava o que ele chamava uma “obscenidade ontológica”, esta pornografia da morte que dá o valor ignóbil de certos documentários, ao mostrar “ na dura” , de forma direta, homens realmente na beira da morte; e o escândalo desta morte violenta, vendida como documento sensacional; e o escândalo desta morte para sempre privada de paz, transformada em história de seu próprio calvário pelo cinismo das projeções permanentes. Em aparência, a história de Julien Davenne, inspirada no Altar dos mortos de Henry James ( também ele presente, através de uma fotografia e uma breve biografia, na capela de Truffaut), e de alguns outros textos do mesmo autor, diz-nos exatamente o contrário, já que trata da importância vital, se assim podemos dizer, de conservar a imagem dos desaparecidos. Ns realidade, o filme sustenta o mesmo discurso que Bazin, é a mesma preocupação que o anima.
Conservar a imagem dos desaparecidos, sem dúvida ( e qual filme não se mostra comovente ao mostrar como vivos os desaparecidos?). 3 Mas não a imagem de sua agonia ou de seu cadáver, pois aí começa o que devemos chamar ( e aliás o que Bazin, no mesmo texto, designa por) de perversão. Julien Davenne não é de forma alguma um perverso, um necrófilo, não possui nenhum “gosto vicioso por cadáveres”, como diz o narrador do Bleu du ciel; seu amor pelos defuntos é destituído de todo erotismo. Tal é o sentido, perfeitamente claro, da cena- aliás, uma das mais belas do filme- onde Julien Davenne, tendo encomendado uma imagem em cera da mulher desaparecida, reage com um horror violento diante da realidade desta fantasia ( realidade no entanto impossível de ser melhor “realizada” pois,se vi bem, esta figura de cera é de fato a atriz que encarna a morta, maquiada para a circunstância, como nos filmes de Cocteau, com olhos abertos pintados sobre as pálpebras fechadas) e exige que esta seja destruída pelo escultor.
Nenhuma explicação nos é dada sobre o horror, quase pânico, do personagem. No entanto, é evidente que esta “figura de cera”, este corpo duplamente inanimado, aparece como uma monstruosa paródia da morte, e que esta, de alguma forma, a leva a morrer uma segunda vez; daí a necessidade de destruí-la, de matar esta imagem sacrílega. Esta cena, pelo menos do meu conhecimento, não está em James, ela é muito cinematográfica para não ser reivindicada unicamente por Truffaut: como não ver que Davenne, na ocasião, se comporta exatamente de forma contrária ao personagem dos personagens de Buñuel( Archibaldo de la Cruz , por exemplo?) Esta cena faz Buñuel parecer superficial. Como não ler em filigrana um desgosto, um horror, um protesto diante de um certo impudor do cinema, desta facilidade suspeita e ignóbil em produzir os corpos,a imagem dos corpos, em lugar do que deveria ser interditado à representação? 4
Assim como James, Truffaut não crê na existência de relações sexuais ( se preferirem: não crê em sua capacidade de representação) se, como James, ele parece nos dizer que unicamente a arte, enquanto obra de amor, poderia preencher esta falha, esta inexistência...Poderia, mas ela fracassa, pois a arte é indefectivelmente lacerada pelo que a assombra, a famosa” imagem no carpete” , ou, no Altar dos mortos, no Quarto verde, este círio faltando necessariamente no edifício de fogo, já que ele pertence ao guardião, ao oficiante e à testemunha, ou seja, ao artista que não pode fruir de sua obra.

O passional projeto de Julien Davenne evoca um outro no cinema. Não me refiro ao Homem que amava as mulheres, que de um modo um pouco mais trivial e num tom menos altaneiro, descreve em efeito uma trajetória análoga, mas à aventura de James Stewart em Vertigo. É possível que Truffaut, escrevendo com Gruault a cena da figura de cera, tenha pensado em Buñuel, com a intenção de se opor a ele. É provável que tenha pensado em Hitchcock. Em todo caso, o espectador pensa em Hitchcock. E remetamos ao diálogo entre os dois cineastas:

Hitchcock: Há um outro aspecto que eu chamaria “sexo psicológico” e é aqui a vontade que anima esta homem de recriar uma imagem sexual impossível; para dizer as coisas às claras, este homem quer transar com uma morta; trata-se de necrofilia.

Truffaut: Justamente, as cenas que prefiro são aquelas em que James Stewart leva Juddy ao costureiro para lhe comprar um tailleur idêntico ao que vestia Madeleine, o cuidado com que ele escolhe os sapatos, como um maníaco... ( O cinema segundo Hitchcock).

A diferença é que não se trata, repito, no Quarto verde de “dormir com uma morta”, mas de lhe conservar o amor intacto. Mas o essencial é que a tentativa é igualmente impossível, igualmente desesperada ( na cena que se segue à do manequim de cera, no cemitério, é justamente este desespero que Davenne confessa sentir ao túmulo de sua esposa). O “maníaco”, ou seja, o homem refém do impossível, é uma exigente definição do artista.Que um filme, tanto quanto um livro, não possa realmente conservar vivo um morto ou um amor; que, como bem escrevia Proust ( presente também em efígie na capela do filme), “ nosso coração muda, e esta é a pior dor”, esta é a corda de que O quarto verde retira sua vibração essencial. Que a comunicação com o que perdemos seja impossível, o que sem dúvida é representado pela criança muda no filme ( irmão de Antoine Doinel e do menino selvagem, como bem nos lembra a cena do roubo) mas também que esta impossibilidade é a prova de uma fidelidade que é a única coisa que conta.

Pode-se amar os mortos tanto quanto aos vivos; pode-se-lhes consagrar todas as atenções; pode-se, incansável e unicamente a eles, falar-lhes a sós: são mudos e não nos respondem. Então, é preciso morrer. Diante do argumento do filme ( que é igualmente o da novela) , resumido assim, compreende-se os escárnios com que por ocasiões o público francês acolheu o filme. Mas quem não vê que “os mortos” aqui são apenas a imagem extrema destes a quem perseguimos com nosso amor, e que não podem dar, de maneira nenhuma, a resposta secreta que deles esperamos? Aí, estes escárnios adquirem um outro sentido. É arriscado no cinema, mais que em outras artes, tentar fazer escutar a linguagem nua do amor: Truffaut, com O quarto verde, correu ao máximo este risco. E é isto o que faz de O quarto verde obra tão bela e tão forte”.
Notas:

1. Em francês no original. Apelido dado aos soldados franceses da Primeira Guerra, referente à significação da palavra “poilu” ( peludo), que em argot se refere a alguém corajoso, viril, como se diz em português: alguém que tem pêlos nas ventas.

2. Requiem ( latim): Missa fúnebre.

3. Nota do autor: Ellie Faure: “Você vê reviver diante de si a mulher que amou vinte anos antes, e que vive ainda ao vosso lado, e que você deixou de amar, mas então, há vinte anos, quando o separaram bruscamente dela, vocês esteve prestes a morrer? Você vê reviver a criança morta?” ( Trata-se de Função do cinema, Gonthier). Se esta citação situa bem, a meu ver, o argumento do filme de Truffaut, parece-me claro que este toma seu ponto de partida em uma essencial insatisfação diante da emoção um pouco boba sugerida aqui por Elie Faure.

4. Nota do autor: A “facilidade” em questão se chama, em filmologia, impressão de realidade.


(Cahiers du cinéma , maio 1978)
Pascal Bonitzer
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Moonfleet e Rio Bravo

Moonfleet 1:
"O pai é aquele que não responde às questões que não lhe são colocadas. Isso muda o que? Tudo. O pequeno Mohune, criança apagada, criança efeminada, criança aventureira, sonha ser um cavaleiro branco, como um Ballantree de opereta. Tu achas que ele vai questionar seu querido Stewart Granger? Stewart Granger é um verdadeiro herói underground. Não estamos em Warhol ou Kenneth Anger. Não estamos nas bichas. Faça-se uma idéia das telas pintadas e das canções de Luis Mariano, que tramam em suas profundezas o universo de Moonfleet. Eu sei que o cinéfilo de Moonfleet tem os cabelos verdes, os cabelos de cor indefinida. Não estamos em Losey, 1948. Estamos em 1955, onde tudo começa ( Hitchcock apresenta), antes que tudo fosse acabar, meses mais tarde, com o desastre Presley, a gangsterização Sinatra, e em breve John Wayne como travecão pós-cinema em Rio Bravo. Em Moonfleet, o pequeno Mohune é oferecido em holocausto, sim ou não? Não. A Criança sacrificada é aquela de Bigger than life ( Nichjolas Ray, 1959). Ok, mas o pai de Moonfleet é um cafajeste, não? Stewart Granger? O que te leva crer que ele é o pai? A criança ama seu pai, não? Não. (...)... exatamente, foi Lang sim quem filmou os embates amorosos de um jovem rapaz com trejeitos de moça ( Jon Whitley) e de um pai substituto, charmoso demais para ser honesto ( Stewart Granger). Vão te dizer: mas não é verdade!, Mooonfleet é apenas um filme de aventuras à la Louis Stevenson, um Maitre de Balantree languiano. Não é falso, mas também não é o mais importante... "
Moonfleet 2: "Este filme não é apenas uma etapa no país da cinefilia. É mais que isso, muito mais. É de onde se parte para nunca mais voltar. Aquele que não retorna permanece em estado de exílio, em estado de infância, de maravilhamento. Aquele que retorna não é mais o mesmo. Ele viu demais para coincidir novamente com o que um dia foi. Ele descasca pouco a pouco de si mesmo, e os transeuntes casuais encontram pedaços dele dispersos pelo vento, fragmentos de pele do cinéfilo, que vem planar sobre a lua, como tantas juras de amor perdidas. Trata-se de dizer aqui, com as pobres palavras de que dispomos, do que o cinema é feito, e do que o cinema se desfaz. Ele se desfaz como pode, o coitado do cinema. Em 1955, já estava fodido. Explodido, quebrado, em estilhaços. Não é por acaso que neste mesmo ano Hitchcock vai para a tv, com suas indestrutíveis miniaturas em preto e branco. O minimalismo televisivo hitchcockiano carrega tudo à sua volta, até mesmo o suntuoso Cinemascope que Fritz Lang inventa para Moonfleet.O que ele dizia do Scope, Lang? Esqueceram, é, gracinhas? “O cinemascope é bom pra filmar serpentes e enterros.” Lang sabia que Moonfleet enterrava Moonfleet. Ele sabia que esta lição de cinema era uma lição perdida. Ele sabia que o exercício só era útil1 para aquele que o quisesse esquecer. Pois é, é isso. Esquecer a lição, a dor, esquecer o cinema. E basta. "
Moonfleet 3: "Moonfleet de novo? de novo. Sim, de novo. Em nome do cinema do presente? Sim, o cinema no presente. Sim. De novo. E de novo novamente. Rio Bravo também? Claro. E por que? Porque é Rio Bravo que estrutura Moonfleet. Mas como Rio Bravo, que saiu em 1959 pode estruturar Moonfleet, que vimos em 1955? Você não vai me dizer que se trata de pós-crítica, pós-cinema, vai? É pior ainda. O cinema começa pelo fim. O fim, que fim? O fim, é tudo. Devemos olhar para trás, não? Sim. É o travestismo terminal de Rio Bravo que nos ilumina o travestismo precoce de Moonfleet. Perucas e minstrel shows, é isso, né? É, é isso...

“Rio Bravo ajuda a entender que Moonfleet está no centro de Moonfleet. A iniciação, o terror, o sadismo. O sadismo está no centro de Moonfleet como um travesti emperucado e maquiado. Ah, é? Claro. Stewart Granger é Daney, né? Não, é o contrário; é Daney quem interpreta 2 Stewart Granger. E a criança? A criança é Louis. Louis? Sim, a criança é Louis, é sempre Louis. Sim. Ao fim da linha? Sob o rolo compressor? Sim. E Moonfleet? Moonfleet é o rolo compressor. Tem certeza disso? Ah, sim, claro... (...) Tanto em Rio Bravo quanto em Moonfleet, trata-se de iniciação. A iniciação, do que se trata? Aprender. Aprender o que? Aprender a aprender. Tá bom, então? Que esteja bem, nada a ver. E o que é que temos de ver, então? Que é a mesma coisa. Que mesma coisa é essa, então? Uma lição de cinefilia, uma lição de Rio Bravo. O que é uma lição de Rio Bravo? Moonfleet. Como Moonfleet ( 1955) pode ser uma lição de Rio Bravo ( 1959)? É assim, oras! Como “é assim, oras!”? Como o último Skorecki, Cinéphiles 3 ( Les ruses de Fréderic). É seu último filme? É. É uma lição de Rio Bravo? Sim. Só existem lições dadas por Rio Bravo. Não se trata de data ou de conteúdo. Ah, é? É, é a lição para a criança. O terror? É. O sadismo? É, pois é. (...)”
Rio Bravo 1:

“Falava-se outro dia do filme horroroso de George Cukor, Sylvia Scarlett. Falava-se também de Jane Bowles3 e de travestismo. O travestismo último, no cinema, está em Rio Bravo. Eu já disse isso cem vezes, direi mil mais, até que um ou dois leitores entendam. Que dois leitores entendam, já basta, estou no caminho certo, menos só. Se sentir menos solitário, para um homem do frio como eu, isso esquenta o coração. É de fora que eu vejo essa coisa. É de fora do cinema que eu vejo o fantasma do cinema. Por que “fantasma”? Porque sim. Porque em 1958, ( se estamos falando da filmagem), ou 1959 ( se estamos falando da data do lançamento), Rio Bravo já era o espectro do que tinha sido o espectro de uma arte usina defunta, um western travesti onde Jane Bowles, a queridinha de Tennesseee Wiliams e de Truman Capote, não teria do que se envergonhar.
Se o roteiro de Sylvia Scarlett tivesse sido escrito por Jane Bowles, o único travesti literário do século passado4, Sylvia Scarlett teria sido uma obra-prima. Teríamos visto Katherine Hepburn, adorável rapaz travestido, sucumbir ao sex appeal do crocante Cary Grant, e lhe passar a língua sobre a covinha do queixo. Ela o barbearia com a língua, destramente, assim como Angie Dickinson barbeia Dean Martin em uma bela cena cortada de Rio Bravo. Sylvia Scarlett é um dos piores filmes do mundo, e dos mais charmosos também. “Quando eu te vejo, diz o homem ao travesti Katherine Hepburn, eu me sinto um pouco estranho, um pouco queer”. O filme é belíssimo, mas Rio Bravo vale cem mil Sylvia Scarletts, mesmo se chega pelo menos vinte anos tarde demais. 1934-1959: meçam a distância vertiginosa entre estes dois filmes travestis. Mas o que chega muito cedo ( Sylvia Scarlett) está longe de dar tão certo quanto o que chega tarde demais , ou seja, aquele que vem em seu tempo certo, este Rio Bravo idealmente sincronizado com seu tempo, com o tempo do pós-cinema travesti.( Libération, 8 de maio 2006).”

Rio Bravo 2: “(...) Eu me chamo Fréderic, Rio Bravo é teu filme preferido, repita comigo. É a última fronteira, o western em frangalhos que se autoparodia, o filme de gênero que recapitula todos os outros, a linha vermelha além da qual o teu ingresso não vale mais nada. Depois de 59, depois de Rio Bravo, o cinema decide viver no dia a dia, à luz do dia. O cinema “ de dia”, caso não saibam, é a televisão. Muita água rolou desde então, o cinema hoje é a tele-realidade. Vocês não concordam comigo, tou pouco me lixando. Vocês pensam que as séries televisivas, 24 horas, Nick/tup, Oz, Les Soprano, tomaram o lugar do cinema. Vocês estão atrasados em pelo menos vinte anos, estes anos capitais do pós pós-cinema onde ocorreu justamente o contrário: foram os filmes de cinema que se puseram a pastichar à toda a televisão, as séries de televisão em todo caso. Rio Bravo só existe hoje como minstrel movie, um filme que se esgota no travestismo de seu roteiro e de seus atores. Os minstrel show do século 19 permitiam a um público branco ver os negros sem se assustar além da medida, precisamente na medida em que brancos maquiados de forma ultrajante os interpretavam, só conservando dos corpos negros os excessos, o grotesco e o patético, como mais tarde os travestis farão com os corpos das mulheres. Vocês vão me dizer: qual a ligação com John Wayne, Angie Dickinson, Ricky Nelson? Ora, não ver na peruca de John Wayne, em seu corpo volumoso, em seu ar de mocinha assustada com uma mulher grande demais, ou vestida com colantes cor-de-rosa demais ( ou seja: os atributos da drag queen); não ver que Angie Dickinson e Ricky Nelson são ainda mais explicitamente travestis e maquiados que ele, não ver isso é recusar o cinema, o cinema à luz do dia. Mas afinal de contas, por que não, não é? ( Fréderic Beigbeder em Les Cinéphiles: Les ruses de Fréderic, 2006).”

Notas:


1. Il savait que l'exercice n'était profitable: referência a um livro de Serge daney sobre tênis, L’exercise a eté profitable, Monsieur.

2. em francês no original: C'est le contraire, c'est Daney qui joue à Stewart Granger. Este verbo “jouer” é bem ambíguo, e tem a acepção tanto de interpretar um papel quanto de brincar, jogar ou encenar. Ambigüidade esta essencial à retórica de Skorecki, gênio do paradoxo e dos jogos semânticos de sentido.

3. Jane bowles ( 1917- 1973) escritora norte-americana bissexual, mulher de Paul Bowles. Autora de um único romance, Two serious ladies e de uma peça de teatro, In the summer house, era idolatrada por Tennessee Williams, John Ashbery e Capote como uma das grandes escritoras de seu tempo.

4. O século passado a que Skorecki se refere é, naturalmente, o século 20.

Louis Skorecki.

Tradução: Luiz Soares Júnior.