terça-feira, 17 de novembro de 2009
Forever Amber, Otto Preminger
Um americano tranquilo, Mankiewicz
Mankiewicz explicou que seu interesse pelo romance de Graham Greene vinha sobretudo do personagem de Fowler: “Eu sempre quis fazer um filme sobre esses intelectuais glaciais cujo intelectualismo é apenas uma máscara que recobre reações totalmente irracionais” ( citado no livro de Kenneth Geist sobre Mankiewicz, “People Will talk”). A mensagem do filme consistiria assim em mostrar , em um ser aparentemente evoluído e senhor de si, o triunfo desconcertante do irracional e do emocional sobre a razão e a lucidez. Triunfo feito na medida para justificar esta cólera, esta amargura misantrópica que Mankiewicz ressente, de forma intermitente, em relação à humanidade, e sem dúvida, em primeiro lugar, em relação a si mesmo. Pois, em suas trevas e sua ambigüidade, Um americano bem tranqüilo permanece, no interior da carreira de Mankiewicz, uma obra extremamente pessoal e até mesmo íntima.
1. Em uma situação ou posição perigosa, instável, desequilibrada. Jacques Lourcelles. Tradução: Luiz Soares Júnior.
Pacto sinistro, Alfred Hitchock
Ivã, o terrível
Em 1940, Eisenstein pensa em fazer um filme sobre o tsar Ivan IV, cujo roteiro ele termina na primavera de 1941. A Mosfilm aceita o projeto um pouco antes da URSS entrar em guerra contra a Alemanha. A empresa vê aí um novo pretexto, depois do Alexander Névski, para exaltar o sentimento nacional. A filmagem começa em 1 de fevereiro de 1943 no estúdio de Alma- Ata, a guerra impedindo que se filmasse em Moscou. A segunda parte será filmada no estúdio Mosfilm entre setembro e dezembro de 1945; ela compreende partes em cor realizadas a partir de um estoque de película Agfa, tomado aos alemães no fim da guerra. A primeira parte é lançada em janeiro de 1945 com um grande sucesso,e obtém o Prêmio Stalin. Eisenstein termina a montagem da segunda parte em fevereiro de 1946. A doença e as críticas oficiais suscitadas por esta segunda parte o impedirão de rodar a terceira parte, apesar de esta ter sido minuciosamente escrita e preparada. Lembremos que nesta terceira parte ( intitulada Os combates de Ivan) Ivan, aliado à Inglaterra, deveria enfrentar vitoriosamente as tropas livonianas. Kourbsky morreria em um castelo cuja explosão teria sido voluntariamente provocada por um dos seus homens, a fim de evitar que este caísse nas mãos do inimigo. Maliouta morreria também nesta explosão. O filme deveria ter terminado com uma proclamação de Ivan, afirmando que de agora em diante a Rússia permaneceria no Báltico. Absolutamente falsa historicamente, esta terceira parte beneficiava Ivan com as vitórias conquistadas mais tarde por Pedro o Grande. Em setembro de 1946, o Comitê central do PC Soviético condenou Eisenstein nestes termos: " O metteur em scéne Sergei Eisenstein, na segunda parte do filme Ivan o terrível, revelou sua ignorância dos fatos históricos ao mostrar a progressista guarda de Ivan o Terrível como um bando de degenerados, do gênero Ku Klux Klan, e o próprio Ivan o Terrível, que possuía vontade e caráter, como frágil e indeciso, um pouco à maneira de Hamlet". No entanto, o Conselho artístico do ministério da cinematografia apreciou o filme, mas a última e definitiva condenação veio do Kremlin. A segunda parte só saiu na Rússia e no mundo em 1958. Viram neste Ivan, em seu amigo Maliouta e nos Opritchnicks uma metáfora mal velada de Stalin, de Beria e dos homens da KGB.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.
quarta-feira, 14 de outubro de 2009
Barry Lyndon, Jean Pierre Oudart
Em aparência, Barry Lyndon é fiel a esta grande norma hollywoodiana. Sua ficção, que se desdobra em um vasto afresco histórico, pode passar, com o fito de destilar uma moralidade- a ascenção e a queda de um arrivista- como suporte de uma meditação pessimista, distante e altiva, sobre os grandes valores do mundo. Aí vem o crédito de Kubrick de ser um grande autor crepuscular, e seu filme um testamento, uma coletânea de reflexões sobre o mundo: um belo presente para os espectadores e para os críticos, afinal de contas.
Jean-Pierre Oudart, Cahiers du Cinéma, 271, novembro 1976. Páginas 62-63.
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Notas:
- travailler à perte: Fala-se da privação ( do privar-se) de algo inestimável, vantajoso. Quando estruturalistas ( e depois pós-estruturalistas) como Oudart e Daney falam em gain ( ganho), perte (perda), na verdade usam referências psicanalíticas, embora a analogia metafórica repouse na “economia”: trata-se de economia pulsional, no caso. A dificuldade da tradição literal reside justamente em que são termos que “não tem muito sentido” na linguagem corrente, muito menos na linguagem corrente cinematográfica; são específicos de disciplinas e doutrinas específicas, como Psicanálise e marxismo.
2. un plus de jouir: um mais, uma plenificação na potência de gozar, de usufruir
( Psicanálise de novo!)3. No sentido de carta marcada, jogo falseado, pois já está dado/decidido de antemão.
4. Casamento com alguém julgado de condição inferior.
5. Dérouter: No sentido de decepcionar, distrair, desviar do caminho da narrativa, frustrar nossas espectativas em relação a estas.
Adolfo Arrieta, Por Jean Claude Biette
Quer ele avance sobre as “échasses” 1 de uma narrativa simulada, regida por roteiros com caráter feérico ( o Castelo de Pointilly, Tam-Tam, Flammes), quer ele persiga com uma intuição segura esta percurso em caracol de uma filmagem às cegas, que só conseguirá ser retomada nas últimas decisões da montagem ( Le Crime de la toupie, este extraordinário Imitação do anjo, Le jouet criminel, As Intrigas de Sylvia Kousky), a arte cinematográfica de Arrieta exprime antes de tudo nas questões humanas aquilo que desliza entre as malhas do real, o que se esfiapa entre os diálogos.
Poder-se-ia crer, vendo apenas um ou dois desses filmes, que Arrieta se empenha nos diálogos, no que se diz e no que se troca. Errado: ele os utiliza apenas como encantamentos que joga ao acaso. Os significados são piões, os diálogos simples lances de paciência ( carpette) 2, e os personagens as peças, com frequência vestidas de anjos, de um grande jogo misterioso que não é conduzido pelo destino, por Deus ou por uma ideologia, mas pelos componentes tangíveis de uma concepção enigmática do cinema de que Arrieta busca há anos, a cada filme, emitir novas provas. Ele flertam com um número incalculável de sombras que nos encantam, mas que escapam a quaisquer que tentam convertê-las em objetos.
Este jogo do cinema, que adquire às vezes em seus filmes a aparência do milagre, traduz uma poética dividida, contraditória, que se burila, não sem dificuldade, para derivar no sentido das duas direções indicadas na repartição feita acima. Esta divisão em duas tendências da obra- cinco longas-metragens e dois curtas são suficientes neste caso preciso para falar em obra- aparece na percepção simultânea da cor dramática, da forma técnica e da tonalidade de conjunto ( o resultado estético) de cada um de seus filmes. Os primeiros, claramente dialogados com seus textos gravados ao mesmo tempo que a ação filmada ( em som direto), submetem um pouco à sua lei os planos de ação que poderíamos, por economia e exigência de mobilidade, tornar mudos e acrescentar o ruído em seguida, “por cima” ( sim, “fazer ruído”, pois Arrieta não hesita, por exemplo, em emprestar sua voz à imagem de um cão que late). Estes filmes dão a impressão de uma maior hierarquia entre seus componentes que os segundos. Estes, pouco dialogados, com seus sons um pouco sufocados de conversações ou de julgamentos sem respostas, propõem uma narração fantasma que não inspira medo mas, de forma muito mais sutil, busca tranqüilizar.3
De que se trata então este jogo e em que ele é cinematográfico? Que são estes “trotes”
( pièges) vãos que no máximo nos enervam ( mas já se trata disso?) Neste dispositivo que imita a negligência (dos raccords, da luminosa continuidade, da percepção auditiva mediana, do jogo coerente e composto dos intérpretes)- e esta negligência exaspera-, ocorre a busca obstinada ( e pouco prestigiosa) por exprimir em estado de filme a grande desordem, raramente explorada, da vida , ou seja, de comunicar um sentimento tão forte quanto possível ( não”mimado” por efeitos formais nem imposto pela vontade ou aprisionado pelo roteiro, , mas ganho no espaço material do filme, em seus componentes os mais prosaicamente técnicos) de liberdade. Os filmes de Arrieta abrigam tesouros de olhares, de gestos e de frases sem sentido ( insensés): estes não exprimem nada, eles estão aí para estarem aí e afirmarem imediatamente a existência, aqui e não em outro lugar, de indivíduos atores ou não, que uma câmera que se diria “chargée à blanc” 4 interrompe alguns segundos, no meio de uma conversação ou no decorrer de um passeio. Nesta aptidão a combinar dispositivo obstinado e desordens, a partir de uma cultura, de um ponto de saber, de uma biografia que diferem, Arrieta não está muito distante de Jean Rouch ou de Jacques Rivette”.
Jean Claude Biette, Cahiers du Cinéma, número 290-291, julho-agosto 1978.
Tradução: Luiz Soares Júnior.
1. pernas de pau.Notas:
3. Joue à rassurer. Jouer tem o sentido, no caso, tanto de jogar ( ou interpretar, dirigir, encenar) quanto de divertir, de brincar.
4. Diz-se de uma arma carregada com um cartucho em branco, sem balas
terça-feira, 29 de setembro de 2009
Ponto de vista. Por Serge Daney
A força absoluta de Demy é relacionar tudo de um ponto de vista perfeito: o da mãe. A mãe que nunca cresceu, que é frívola, que esqueceu de parar de ser uma garotinha. O mundo é organizado a partir desse ofício cego.
segunda-feira, 28 de setembro de 2009
http://twitter.com/jlunior
O festim da aranha, Jean Narboni
No final de Prisão, um metteur-en-scéne se recusava a fazer um filme sobre o Inferno, pois o silêncio daquele a quem deveríamos colocar as questões implicariam- segundo ele- na inutilidade do projeto: ignorante de que toda questão encontra sua resposta- mesmo que esta consista num devorador silêncio-, e que deste silêncio Bergman iria fazer seu tema essencial. Se desde este filme o autor introduz o cinema no cinema, como fará mais tarde com a música e o teatro, não nos enganemos: é para se interrogar sobre a Arte em suas interferências para com a vida, sua função, seus efeitos ou suas figuras, mas não ainda sobre seu ser, que é a via na qual Bergman se coloca hoje.
“A criação artística sempre se manifestou para mim como uma fome(...). Agora, nestes últimos tempos, em que ela tendeu a se apaziguar e a se transformar em outra coisa, experimento a imperiosa necessidade de buscar a razão de minha atividade artística. “ Deveríamos aproximar esta declaração de Bergman ( Cahiers du Cinema, 188, A pele da serpente) de outra, muito próxima desta, de Jean Renoir: “ Acho que num filme não deve haver nada de passivo. Um único personagem deve ser passivo e sofrer tudo, deve ser uma boca engolindo tudo, um estômago ingerindo tudo, é o autor do filme. Mas todos os elementos que ele absorve devem ser ativos: o cenário, os personagens, tudo isso tem de ser vivo; ou seja, é preciso “nos fazermos de mortos”- não, não de mortos, de adormecidos: abre-se largamente a boca, e absorvemos tudo, não é?, e depois digerimos, o devolvemos de uma outra forma...” ( Cahiers 186).
Não se trata de estabelecer aqui uma comparação entre Bergman e Renoir, e muito menos de constituir numa oposição no modo através do qual, enquanto autores, eles se comportam em relação às suas opiniões sobre a criação como “ato de devorar”. Trata-se apenas de indicar que, numa frase na declaração do segundo, se vê precisada a opinião do primeiro: “é preciso nos fazermos de mortos- não de mortos, de adormecidos”. Proposição capital, pela qual se explica a démarche dos últimos filmes de Bergman. A trilogia, Toutes ses femmes e Persona constituem, com efeito, uma das interrogações mais radicais às quais um autor de filmes se submeteu e submeteu sua arte, e aqui ainda, como em outros pontos que não nos cabe evocar agora, o parentesco entre Bergman e Godard aparece-nos de forma marcante. A má consciência do artista se exprime em agir por “desapropriação”, escamoteamento do outro, roubo de sua substância e assimilação da mesma à do artista. Mas esta avidez não demanda nenhum esforço para ser satisfeita. O artista não é mostrado perseguindo suas presas, mas “se fazendo” de morto, de adormecido, ou mesmo em silêncio; camuflado, invisível ou desapercebido, falsamente ausente, para que suas criaturas venham até ele. Ele dispõe, em relação a elas, de um espaço de retração, uma zona de atração ou imantação; suas criaturas, quando ultrapassam a fronteira, estão aprisionadas, submetidas ao mecanismo e insensivelmente conduzidas até ele, reduzidas a não serem nada além da etapa última e central de sua construção.
A teia da aranha figura bem adequadamente o jogo e a configuração de semelhante armadilha. Desde esta etapa decisiva, segundo vimos, que constitui para ele Prisão, Bergman vai se referir a isso: dois personagens projetam num sótão um slapstick 1 de solavancos, onde vemos um esqueleto que pula de um cofre e um homem despertado por um ladrão, além de uma imensa aranha suspensa por um fio. Slapstick que vai ressurgir no início e no fim de Persona ( os planos não são exatamente os mesmos, mas semelhantes os personagens, como se tratasse de um “remake”, ou de rushes ulteriores, utilizadas do primeiro). A etapa intermediária desta metáfora aracnídea é constituída por Através de um espelho, com este Deus aranha vampiresco, com o qual Karen se assusta ( vemos aí se sucederem uma cadeia de substituições, onde figuram alternadamente ,e às vezes ao mesmo tempo, o pai, o artista e o nome da divindade). Quanto a Todas estas mulheres, longe de ser um filme aberrante ou marginal na obra de Bergman, inscreve-se abertamente na linha deste pequeno filme: aparentam-se com efeito seus movimentos dissonantes e sua coreografia cadenciada , certa jovialidade pessimista, o excesso e a estilização de suas figuras. Os conjuntos e os tableaux que as criaturas que evoluem retomam periodicamente em torno do caixão do professor evocam estes movimentos de auto-expiação aos quais finalmente consentem em obedecer, e que precipitam os sobressaltos falsamente libertadores das vítimas que participam da armadilha do professor.
É preciso retomarmos sempre uma mise en garde2 , no sentido de que se não tomemos o que ficou aqui descrito por um catálogo ou inventário de temas e obsessões no aprofundamento dos quais Bergman se empenharia hoje. Se fosse apenas assim- se a vertigem da queda, a ausência, a perda e a dissipação fossem os únicos temas a serem evocados a propósito de seus filmes- ,e se mesmo se, assim sendo considerados, eles não participassem intimamente da matéria da narrativa, tanto quanto da própria, correríamos o risco de fazer Bergman recair sob a reputação desagradável de “cineasta de idéias”. Ora, Bergman se coloca contra este clichê exatamente na medida em que as forças da “desapropriação autoral” afetam estruturalmente seus últimos filmes. Não que se manifeste neles uma abstração cada vez mais marcada, este ressecamente e gosto por agenciamentos matemáticos através dos quais uma convenção deseja que se reconheça um autor que chegou à maturidade. Não percebemos, do primeiro ao último filme, nenhum desperdício importante de conteúdo, nenhuma “desencarnação” em proveito de uma ordem estritamente relacional das figuras ou de uma acuidade gráfica: pensemos, neste sentido, na presença plena e opressora dos corpos, no calor e na umidade de O silêncio, ou na acumulação de incômodos e de entraves físicos que atormentam os personagens de Os comungantes ( Luz de inverno). Parece-me apenas que o espaço e a luz onde se dispõem os corpos sofreu uma mudança. Como se um universo esférico, denso e saturado, estreitado sobre sua plenitude e seu peso tivesse pouco a pouco sido submetido à forças de disjunção, eriçado de lacunas, esvaziado, penetrado por um poder de dissolução, disposto em uma espécie de concavidade voltada para nós, tomado em um movimento de arruinamento que teria conservado intacta uma única plataforma, sobre a qual as criaturas se disporiam como fantasmas. Fantasmas agitando-se no precipício da obra e designando como obra- como o tema e o próprio perigo da obra- esta zona branca onde os personagens não mais existem. Por longo tempo mantidos no limiar dos filmes, as forças silenciosas e o poder de gerar o vazio foram insidiosamente deslizando na própria textura da obra, dissipando os seus volumes, borrando seus contornos, tornando menos nítidos os seus relevos e menos precisas suas fronteiras.
Concebemos então que os filmes cuja proposta está em jogar com o risco destas ameaças escapam à certeza psicológica, , e que os próprios filmes sofrem esta “regressão” que ocupa em sua totalidade a obra de Bergman. O silêncio, o mutismo, não são mais acordados a algum personagem em particular. A cadeia metafórica onde se alternam as figuras do pai, de Deus e do artista não admite mais nenhum destes três termos como autoridade superior ( durante um longo tempo, acreditou-se que a figura divina, ou sua ausência, fossem a instância suprema da obra bergmaniana e sua transcendência). Nenhuma precedência é mais acordada a um dos termos sobre outro, cada termo aparecendo como um acidente passageiro ou a figuração momentânea de um poder mais profundo, neutro, impessoal, indiferenciado.
Se em O Rosto, o ilusionista Vogler ( nome que é o mesmo de Elizabeth em Persona) cultivava o silêncio, era, confessava ele ao fim do filme, por não estar seguro de seus poderes de mágico. Desde então, o silêncio em Bergman não é mais designado como um poder, um atributo do qual qualquer um disporia a seu bom grado; agora, ele excede a decisão e a escolha, torna-se este poder através do qual aquele que é por ele afetado sofreria o mesmo grau de soterramento espiritual e regressão que o silêncio provocara no Outro.A força de apelo e de retirada ( retrait) 3 submete à sua lei tanto aquele que padece da mudez quanto aquele que fala diante dele. A atitude da atriz em Persona não se motiva. As explicações , tanto do médico- que evita se identificar com as opiniões de um meio medíocre- quanto de Alma, ditada pelo orgulho, são do domínio da psicologismo. E esta não é a armadilha menor deste filme- simular o silêncio de Elizabeth como algo advindo por vontade própria dela, silêncio decidido e guardado, acontecido, palavra bloqueada-, depois reduzir a nada esta interpretação, revelando este silêncio como aquele que não se pode guardar( deter a guarda), que escapa e submerge, fusiona por todas as partes, silêncio em direção ao qual remontamos como à fonte culminante de toda linguagem, silêncio anterior à toda palavra.
Refiramo-nos aqui a um texto de Bergman onde ele conta o terror que lhe causava, quando era vítima de uma doença infantil, uma cortina que balançava. ( O que é fazer filmes?, Cahiers du cinéma, número 61, p.16): “ Era uma cortina preta, dessas mais comuns mesmo, que eu via no meu quarto de criança, na aurora ou ao crepúsculo, quando tudo adquire vida e se torna um pouco assustador... Era sobre a superfície que as coisas se encontravam: nem homens bons, nem animais, nem cabeças, nem rostos, mas coisas para as quais não existia nome!...Elas eram implacáveis, impassíveis e assustadoras...”
É na tentativa de reencontrar estas formas inomináveis, esta indistinção originária onde se reabsorvem todos as figuras que o autor se esforça hoje. Lugar aterrorizante, núcleo onde se desfazem as significações, zona de a-simbolização primária. O sem-figura, o sem-rosto, falando propriamente o inqualificável. Indiferenciação primitiva que não constitui o retorno à unidade- onde tudo viria a se resolver e se apascentar, na plenitude do Único-, mas o sem-coerência, sem-certeza. As horas que afetam Bergman, aurora e crepúsculo, são- além das propícias à formação e à dissolução dos vampiros-, as horas onde ainda não se efetuou a divisão das luzes, onde ao mesmo tempo o dia cai e a noite ascende.
Ao fim, restaria apenas, para a compleição do processo, tender à própria dissolução. Trabalho côncavo que se efetua em muitas regiões em Persona: inscrição do filme em uma projeção de filme,” invagination” 4 da narrativa em si mesma ( o campo-contracampo já célebre onde o mesmo texto se encontra escutado por aquela que fala e dito por aquela a quem este se dirige), ameaça de interrupção marcada pela “queimadura” da película no exato momento de seu desenrolar, a obra esboçando nesta inscrição o movimento de se abismar em sua própria fissura. Momentos onde se confirma a relação direta de Bergman a Murnau como cineasta do horror, mas cineasta onde a obra se destinaria a tornar-se o próprio horror.
Jean Narboni, Le festin de l’araignée, Cahiers du Cinéma, 193, setembro 1967
Notas do tradutor:
1. Slapstick: Tipo de comédia, muito comum no cinema mudo, envolvendo ações tresloucadas e intensa violência física. Mack Senett, Fatty Arbuckle e The Keystone Cops foram alguns de seus representantes mais famosos ( e mais esquecidos hoje).
2. Pôr-se em guarda contra, defender-se de.
3. Retrait: a palavra é usada aqui no sentido de uma metáfora que indica o poder movediço, de “retirada de cena” que a força superior exerce sobre o personagem, como se este tivesse sido “sugado” para o interior da cripta do vampiro, para fora do campo – o caráter sinistro da expressão e a analogia com filmes de terror não me parecem casuais- por uma força misteriosa, e sobretudo silenciosa, irrepresentável. Qualquer analogia igualmente com a pulsão de morte freudiana também não me parece mera coincidência.
4. Invagnation: Em português: intussuscepção. Termo médico que designa a incorporação de um segmento do intestino numa região mais profunda do mesmo. No caso, a narrativa incorpora ( ou deglute) a si mesma, em Persona.
As lixeiras verdes de Gilles Deleuze, Por Luc Moullet
A imagem-movimento e a imagem-tempo...Eu pensava que leria no primeiro volume estudos sobre Renoir ( o balé dos personagens na Regra do jogo ou em Carruagem de ouro), sobre Ophuls, Mizoguchi, Fuller ou Téchiné, e no segundo uma análise da arte de Stroheim, Ford, Duras, Pagnol, Rozier, Leone, os grandes mestres do tempo. Bem, nada disso. Ocorreu até mesmo o contrário do que eu esperava. Ophuls só é citado na Imagem-tempo, e Stroheim apenas na Imagem-movimento. Pagnol, Rozier, Leone são totalmente esquecidos.
É que, para Deleuze, o movimento não é o movimento, e o tempo- de forma menos agressiva, no entanto- não é exatamente o tempo. A imagem-movimento seria “um conjunto acentrado de elementos variáveis que agem e reagem uns sobre os outros ( p.291), o jogo que conduz uns aos outros. Sob esta perspectiva, poderíamos sustentar que Apotheosis, de Yoko Ono, feito de um único plano seqüência, um perpétuo travelling vertical, não é imagem-movimento, mas imagem-tempo ( voltarei mais tarde nisso aí). Ok. Esta definição talvez ficasse mais clara se Deleuze tivesse falado de movimento dialético.
Na página 291, Deleuze enumera várias categorias de imagem-movimento, , notadamente a imagem-percepção ( “conjunto de elementos que agem sobre um centro”) e a imagem-ação ( “reação do centro ao conjunto”). É no mínimo curioso que estas variedades da imagem-movimento se refiram a um centro, já que Deleuze define a imagem-movimento como um conjunto descentrado. Tenho dificuldade em entender isso...
Deleuze nos propõe um exemplo preciso de imagem-percepção: no Broken lullaby, Lubitsch mostra um grupo de homens, de pé, vistos à altura do chão, a câmera colocada “sob a perna que falta de um inválido”, igualmente de pé. Eis um enquadramento que parece totalmente gratuito. Mas o plano seguinte revela que se trata do ponto de vista de um cul-de-jatte 1. O que tomáramos por um simples maneirismo era na verdade a visão subjetiva de um indivíduo. Há aí um movimento na narração e na consciência do espectador que nos permite chegar a esta conclusão.
A imagem-afecção, segunda variedade da imagem-movimento, “é o que ocupa o intervalo entre uma ação e uma reação, o que absorve uma ação exterior e reage internamente”. Primeiro exemplo: o close de um rosto, reflexivo ( em que você está pensando?) ou intensivo ( o que você está sentindo?). É verdade que, com frequência, o close mostra uma reação do rosto ao que se passara no plano precedente, geralmente mais amplo, mas esta constitui uma técnica vulgar, primária mesmo ( que pode dar resultados magníficos, mas que foi super explorada por todos os cineastas tarefeiros). Portanto, não se pode escrever que o close constitui um intervalo entre uma ação e uma reação, já que ele próprio é a reação, contém em si mesmo a reação, que se situa aliás quase sempre no início do plano.
E limitar o close a este valor de resposta para uma ação ( o que é estudado por Deleuze ao longo e ao largo de vinte e cinco páginas) leva a mascarar de forma muito redutora os outros usos, mais inovadores e criativos, do close, aqui omitidos: se um filme começa pelo close, ou constitui-se em uma série de closes, como no húngaro Princesa ou na Jonana D’arc do Dreyer, não se trata forçosamente de uma “seqüência” à ação, ou da absorção de uma ação exterior. Mais de cem fotogramas de Gérard Courant ( únicos closes-sequências de rostos) são sem referência a uma ação prévia ou exterior. Tampouco quando uma personagem em close come, escova os dentes, morde seu vizinho ou faz um gesto zombeteiro pra platéia. Neste último caso, é inclusive a ação que provoca a reação, o exato inverso do que afirma Deleuze, contradito também pelo close pillow-shot ou plano de corte, ou a sequência lírica de closes breves, mais ou menos idênticos, ou mesmo o plano de um homem que recebe uma bofetada no campo: neste caso, o intervalo entre a ação e a reação é imperceptível, da ordem de vigésimos de segundos. E aqui a ação não é de forma alguma exterior.
Estes dois modos de dialética presumida, que Deleuze completa pelo estudo do par sombra-luz, se fundam sobre uma certa especificidade do cinema, ligada à sua gramática, à sua técnica ( découpage, close, flou, iluminação). Ora, é bem evidente que as linhas dialéticas, no cinema, ultrapassam estas especificidades. É justamente por isso que Deleuze inclui uma terceira forma de imagem-movimento, dita imagem-ação que, ao que me parece, não tem nada a ver com a definição popular de ação no cinema. Trata-se de uma dialética entre o indivíduo e a sociedade, o detalhe e a totalidade, a ação particular e a situação geral. Quando o cineasta parte do indivíduo para atingir a sociedade, chama-se “pequena forma” ( Lubitsch seria o mestre nisso), e quando dá-se o contrário, a “grande forma”: assim, as superproduções de Cecil B. DeMille. A distinção é às vezes meio ociosa: se Male and female ( DeMille, 1919) começa por planos bem gerais ( o céu, o mar, o canyon do Colorado, uma citação da Gênese), chegamos em trinta segundos à vassoura, ao balaio e ao balde d’água,e permanecemos mais ou menos nesse nível durante o resto do filme, salvo- no meio- quando do episódio babilônico. Teoricamente, trata-se da grande forma, mas este começo fanfarrão é tão breve...é o mesmo problema no caso de vários filmes americanos, que começam por apresentar de forma breve uma cidade ( Beyond the forest, Pride of the marines, The seven year itch) antes de se ligarem definitivamente a um itinerário individual. As idas e vindas do particular ao geral se emaranham, se invertem freqüentemente, e desemaranhar a pequena da grande forma muitas vezes equivale a recair na velha questão da prioridade do ovo sobre a galinha.
Neste catálogo de movimentos dialéticos, vamos constatar um número de notáveis esquecimentos, quer sejam as dialéticas fundadas sobre técnicas do trabalho, overplay e underplay ( Kazan), visível-invisível ( Tourneur), gênero e não-gênero ( Monte Hellman), sobre noções mais vastas, como natureza e cultura ( Boudu), cidade e campo ( Vidor), lentidão e velocidade ( Rising of the moon, Ford), risos e lágrimas ( Chaplin), trivialidade e sublime ( Godard), lógica e absurdo( Hawks, Buñuel), amor e ação ( o cinema hollywoodiano), ou sobre valores ideológicos, nacionalidades e classes sociais ( A grande ilusão), racismo e tolerância ( La derniére chasse), eficácia e justiça ( Marca da maldade), isso sem falar das dialéticas medíocres ( os bons e os maus, a fuga pro México ou a prisão) que atravancam a maior parte das telas. Algumas destas categorias ao menos poderiam ter sido objeto de menção neste díptico de vastidão enciclopédia.
Ao invés disso, espremida entre a imagem-afecção e a imagem-ação, Deleuze introduz uma nova categoria, a imagem-pulsão, que cai aí como um cabelo na sopa. A pulsão, segundo Deleuze, seria ligada ao naturalismo, onde o movimento se criaria na passagem do homem ao animal ( o que nos prova bem que Deleuze não dispensa sistematicamente as dialéticas com fundamento extra-fílmico, e que se livra delas quando bem quer, aliás).
A história toda é um pouco dura de engolir, sobretudo pelo fato de que o “animal” ( no naturalismo) é com frequência colocado desde o começo do filme ( Foolish wives, Manèges de Allégret), e não é portanto o resultado de um movimento visível. De fato, pulsão e naturalismo seriam antes dois pólos antagônicos, pois a pulsão, frequentemente pulsão de um personagem que reflete a do realizador, está muito distante do princípio do naturalismo ( a realidade deve ser descrita sem alguma interpretação, devida ao espírito do autor). Calor da pulsão, frieza do naturalismo.
Os exemplos dados por Deleuze deixam o leitor estupefato. Poderíamos crer que Deleuze, a propósito do naturalismo, citaria os filmes do Kammerspiel, o Rail, a Noite de São Silvestre, a Última gargalhada, a Rua sem alegria, Um homem anda pela cidade de Pagliero ou Manéges, ou os Renoir como On purge bébé, A cadela ou Boudu, Umberto D., Honeymoon killers de Kastle. Bem, nada disso. O naturalismo seriam Vidor, Ray, Losey, Fuller. Todos, é verdade, muito dependentes de suas pulsões. Mas que autor se distancia mais do naturalismo que Vidor? Apenas The crowd e, em certa medida, Cenas da rua poderiam ser classificados como filmes, digamos, realistas. Podemos dizer de Vidor que ele é romântico, lírico, delirante, expressivo, idealista, assim como Gance e Dovjenko, a quem o comparam sempre. Mas o mundo de Ruby Gentry, de Fountainhead, de Hallelujah, da Grande parada é totalmente irrealista, surrealista mesmo. O cúmulo é que Deleuze qualifica seu Duelo ao sol de “western naturalista”, quando se trata do sumo do artifício hollywoodiano , da loucura romântica wagner-nietzscheana. No Jornada tétrica de Ray, que Deleuze descreve como uma “obra-prima do naturalismo”, a paisagem tem uma grande importância ( assim como no Duelo ao sol), então nos damos ao direito de achar que Deleuze cometeu um erro crasso, digno de um colegial, algo que julgávamos inadmissível de sua parte. Ele confundiu o naturalismo à la Zola, onde a arte deve reproduzir a natureza em todos os seus aspectos, mesmo os mais feios e repulsivos, com o trabalho do naturalista, que estuda plantas, minerais e animais. Devido à pobreza da língua francesa, um convite a isso, ele pôs no mesmo saco Emile Zola e Bernardin de Saint-Pierre, Huysmans e Buffon: era de se esperar...Não há outra explicação: o barroco do bordel no Jornada tétrica, a truculência de Gueule-de-Cotton que, agonizante, chama os urubus: “Vinde a mim, sou gordo e roliço”, se junta ao hénaurme 2 de Jarry, Hugo, Rabelais ou Céline, e não tem nada a ver com o escalpelo de Zola. Ray testemunha um lirismo que exprime conivência até mesmo com seus personagens mais negativos. Outros supostos nomes do naturalismo, Fuller ( que não recua diante de nenhuma inverossimilhança, e realizou o filme mais louco de todos, Shock corridor, com um negro que milita pela Ku Klux Kan) e Joseph Losey...
“Não há poucas diferenças entre o naturalismo de Stroheim e de Buñuel”, avança Deleuze ( página 183),que precisa que a diferença entre Stroheim e Buñuel seria concebida não tanto como entropia acelerada, mas sim como repetição precipitante, eterno retorno”. O problema é que, em Buñuel, há naturalismo e repetição, ok, mas os dois jamais estão ligados: o naturalismo pertence à primeira parte da obra ( Las Hurdes, Los olvidados, El bruto, mesmo Suzana e o Diário de uma camareira), em uma época em que Buñuel não possuía muitos meios, e poderia dificilmente filmar algo que não fosse a realidade. Este naturalismo recusa frontalmente a repetição, que vai dominar em sua obra nos anos finais, melhor dotados financeiramente ( O anjo exterminador, Belle de jour, O discreto charme da burguesia, Este obscuro objeto de desejo), e que expulsará de sua órbita todo naturalismo. Há, claro, aqui e ali, evocações breves de perversões sexuais, a presença dos W.-C, vestígios do naturalismo, mas que ora são tratados como elementos oníricos ou irônicos, ora possuem um status incerto e indefinível, uma terra de ninguém que permanece também totalmente alheia ao naturalismo.
Portanto, não vou me demorar mais tempo nesta imagem-pulsão, de longe o pior capítulo do díptico deleuziano; partirei para a imagem-tempo...
Até aqui Deleuze tinha se esforçado para dar definições de seus neologismos, mas ele não consegue precisar em que consiste a imagem-tempo. Ele define o tempo ( páginas 49 e 50 do tomo 1) em ocasiões “como intervalo” - mas Deleuze não se demora nesse intervalo no cadre da imagem-tempo. Antes assim!, pois este intervalo parece-se muito com o intervalo da imagem-movimento, e sobretudo da imagem-afecção. Ou então define o tempo “como tudo”, ou seja, os dois extremos, o dia e a noite. A imagem tempo me lembra essas lixeiras verdes onde, no meio dos compartimentos azuis para os jornais velhos, compartimentos amarelos para as embalagens e brancos para garrafas, enfiamos todo o entulho que nos vem à cabeça na hora. Podemos dar da imagem-tempo uma definição negativa: é tudo o que não é imagem movimento, ou mais exatamente tudo o que não está subordinado a ela ( como está indicado na página de abertura da Imagem-tempo), o que constitui um centro, enquanto a imagem-movimento é um princípio sem centro. Da noção de centro ( intervalo), que pressupõe a existência de extremos, passa-se à noção de conjunto, de todo, que pressupõe a inexistência de elementos exteriores. E o todo seria o resultado da montagem, e constituiria também o tempo, pois é também a montagem que cria o tempo do filme. E o todo estaria em relação direta com o tempo. O todo e o tempo, aliás, combinam muito bem entre si, pois tanto um quanto o outro- ao contrário do movimento- tendem a nos escapar, e permanecem indecomponíveis e misteriosos. Sabemos quase tudo do movimento- se ligarmos este termo ( seguindo a definição clássica, e não a deleuziana) à noção de espaço-, sobretudo desde Magellan3 e Neil Armstrong4, enquanto que o tempo passado é cheio de obscuridades, e sempre permaneceremos ignorantes em relação ao tempo futuro, o tempo – é certo!- que nos matará.
Curioso amálgama esta aliança centro-todo-montagem-tempo... Deleuze se vira por meio de astúcias. “Eisenstein não cessa de nos lembrar que a montagem é o Todo do filme, sua Idéia”. Mas é Eisenstein quem o diz. Ok, é um cara genial, mas em que isto implica que ele tem necessariamente razão? Podemos sustentar que a montagem talvez fosse “tudo” para ele ( como também para Godard, Resnais e talvez Welles); mas não seria forçosamente “tudo” para os outros, para seus detratores, nem mesmo para ele, Eisenstein: seu último filme, Ivã, o Terrível, é uma obra-prima onde há um mínimo trabalho de montagem. Talvez esta idéia da Montagem identificada ao Todo fosse uma idéia de juventude de Eisenstein, que ele teria abandonado ao fim da vida, e que teria nascido do fato fortuito de que, no começo de sua carreira, com os racionamentos na Rússia da época, ele só dispusesse de pequenos pedaços de película.
Ok, quase sempre é a montagem que cria o tempo do filme ( quando não se trata do plano seqüência ou do fluxo do plano curto), mas este tempo criado é o tempo no sentido de tempo, de ritmo, de duração, de respiração, mas quase nunca – ao contrário do que pretende Deleuze- o tempo no sentido de uma oposição presente-passado, flashback ou flash-forward. Jogando 5 com as palavras, como é seu hábito, Deleuze coloca esta tempo sob as sub-categorias da imagem-tempo.A relação presente-passado, quase sempre prevista no roteiro ( DeMille, Godard, Intolerância, As três luzes de Lang, François Ier) participa quase sempre de uma dialética: trata-se da imagem-movimento( com exceção de certos filmes de Resnais).
Apercebemo-nos que a imagem-tempo, tal como concebida por Deleuze, só existe muito raramente, e com freqüência não onde ele a situa. Hegel nos dizia que tudo era dialética, e portanto movimento. Às vezes, quando não percebemos o movimento dialético, é que ele se mostra de forma muito sutil, muito sub-repticiamente dissimulada. É o caso quando o diretor é genial. Filmes como La choette aveugle ( Ruiz, 1987) Puissance de la parole ( Godard, 1988) parecem à primeira vista magmas ( termo mais conveniente que o de imagem-tempo), mas um esforço de análise acaba por precisamente esclarecer as linhas desta dialética. Exagerando um pouco, eu diria que a existência da imagem-tempo não passa de um atestado das insuficiências do espectador, da minha portanto. Não há imagem-tempo na equação espaço-tempo ( com a exceção de Resnais) ou no neo-realismo, que Deleuze descreve erradamente como o preâmbulo da imagem-tempo. Segundo ele, o neo-realismo seria a “irrupção de imagens puramente óticas e sonoras ( tomo 2, pg. 9), como para um documentário bruto. Ora, na verdade, se o neo-realismo, evocando o magma bruto da realidade, oferece certas características do documentário, ele as perverte pela existência de um roteiro, pela música, pela intrusão de personagens principais, pelo sentido social, pelo pathos. O primeiro tema do neo-realismo é a relação do indivíduo com o mundo, do homem com a sociedade, é portanto a imagem-ação no sentido deleuziano, assim como o filme americano clássico. Com exceção do raro caso em que não haja um personagem principal, a identificação é soberana ( nos identificamos com o ladrão de bicicleta e com a criança). E o mesmo Ladrão, pela composição de uma luminosa atmosfera, que reflete o mood dos personagens, não está tão longe assim do expressionismo estudado na imagem-afecção. O indivíduo ( ou o casal) que se sente estrangeiro ao mundo mostrado, que luta contra ele, esquema típico do cinema-ação, nós o reencontramos em Viagem a Itália,Europa 51, Stromboli ( Deleuze tinha previsto esta objeção, mas se sai dessa enrascada por meio de uma pirueta: com os Bergman-Rossellinis, trata-se de um “cinema de clarividente”, e não mais de ação. Nova categoria a inserir na imagem-tempo, o cinema do clarividente... Mas Mr. Smith e Mr. Deeds são também clarividentes, e eles estão no meio do cinema da imagem-ação...), Alemanha ano zero, Roma, cidade aberta, Ladrão de bicicletas. O neo-realismo descrito por Deleuze é um neo-realismo idealizado, tal como deveria ser, tal como jamais existiu. Talvez haja exceções, o Umberto D... em minha opinião, a única verdadeira exceção se situa em 1968, no período posterior ao neo-realismo, com Fuoco de Baldi, magma fundado sobre a pulsão e aparentemente desprovido de dialética.
Deleuze- o delusivo 6 Deleuze- dá às palavras significações que não tem nada a ver com as significações correntes. Ok. Mas o hic é que, no calor do discurso, ele re-introduz estas palavras com seu sentido corrente e assim conforta suas teses, assegurado da aprovação do leitor, que vai coincidir plenamente com as reaparições “aliviantes” da palavra em seu sentido banal. Se seguirmos a lógica deleuziana, seríamos levados a reconhecer que Ladrão de bicicleta e Viagem a Itália permanecem perfeitos exemplos de imagem-ação. Mas como há pouca ação nestes fIlmes, podemos aceitar mais facilmente a exclusão dos mesmos desta categoria. Da mesma forma, seríamos tentados a incluir os Dez mandamentos de 1956 na grande forma do cinema-ação, por ser um filme caríssimo e espetacular. Mas a grande forma, isto é, a passagem do geral ao individual, inexiste neste filme, pois Moisés não possui um comportamento que o individualize e permanece o perfeito autômato a serviço do Deus cristão. Como o filme se lambuza no geral, sem jamais dele sair, poderíamos sustentar que não se trata de imagem-ação, mas de imagem-tempo, com este magma típico das altas esferas do dogma religioso convencional e da estilística sulpiciana 7. Não vou aliás tão longe, pois este querido filme se funda sobre uma linha dialética muito pobre: o Deus cristão contra o Deus egípcio. Mas eu sustento vigorosamente que um filme recheado de ação como A guerra do fogo, precisamente por não ser nada além de ação, não pertence à imagem-ação ( pela falta de uma dialética entre a ação particular e a situação geral),e ainda menos trata-se de um filme da grande forma; trata-se de um filme da imagem-tempo, pois eu o sinto como um magma puro.E finalmente, um dos melhores exemplos do cinema-ação da grande forma é, não uma superprodução, mas um filme relativamente pobre, Jeux interdits, com quinze minutos de guerra violentíssima em seu começo, e em seguida o itinerário íntimo de duas crianças.
Outra vez Deleuze troca as bolas com suas definições contraditórias. Vimos isto com a dialética passado-presente, classificada de forma abusiva na imagem-tempo ( quando esta dialética é frequentemente da ordem do movimento); e o duo naturalismo-naturalista, Paul, Emile ( Zola) e Virginie. Ou ainda, quando ele fala da crise da imagem-ação, refere-se unicamente ao cinema americano, por ser um cinema fundado sobre a ação. Ao invés de falar em imagem-movimento e imagem-tempo, seria melhor falarmos, por exemplo, de nelbugoz e de dagmalouak, isto teria lhe poupado muitas contradições...
Ele retoma aí os jogos de palavras godardianos ( sem o humor), abusivamente transferidos da esfera artística para a filosófica, que deveria ser a de Deleuze. Da mesma forma, ele coloca a pulsão na imagem-movimento, antes de se contradizer, feliz e inconscientemente, afirmando no cadre do estudo da imagem-tempo ( tomo 2, pág. 207): “ O Todo não é mais o Logos que unifica as partes, mas a embriaguês,o pathos que as banha e se espalha por elas”. Me sinto no direito de aproximar a noção de pulsão daquela de embriaguês e pathos, e portanto de deduzir que a pulsão seria, não da imagem-movimento, mas uma forma do todo, e imagem-tempo.
Ao fim das contas, se fizéssemos um inventário das situações da imagem-tempo, poderíamos definir cinco sub-grupos:
- O todo definido pela montagem, que repousa ( o próprio Deleuze o reconhece) sobre movimentos dialéticos prévios, e que, em geral, apenas os “re-copia” de forma servil;
- o todo definido pela montagem, que se exprime pela criação de um tempo resultante de linhas dialéticas temporais ( adágio-allegro), que Deleuze estuda de forma muito apressada, também elas avalizadas pela montagem;
- o todo definido pela montagem, que se exprime pela criação de um tempo sem dialética; trata-se talvez do caso de Pagnol, Rozier, Leone, esquecidos por Deleuze, de Duras ( que ele evoca na Imagem-tempo, mas sobretudo para assinalar seus movimentos dialéticos entre som e imagem, entre voz off e voz on, sem estudar seu trabalho sobre a respiração do filme), e enfim de Stroheim ( que ele limita, por um contra-senso flagrante, ao naturalismo, sem analisar o status da duração em sua obra);
- a montagem totalizante que destrói- caso raríssimo- as veleidades dialéticas do roteiro ( Wild river);
- o todo definido pela montagem, e que exclui a dialética; entraria aqui o cinema experimental, Michael Snow, Serge Bard, Carmelo Bene, a Cicatriz interior de Garrel, a Femme du Ganges ( Duras), a Vingança de Kriemhilde ( Lang), Honeymoon killers ( Kastle), a Idade da terra ( Rocha), Jeanne au bûcher ( Rossellini) e também alguns nabos espetaculares do tipo Guerra do fogo ou superproduções americanas ( o espantoso Evil dead) que são apenas seqüências de atos violentos.
De fato, estes três últimos setores são os únicos que correspondem à imagem-tempo deleuziana, e são apenas parcialmente analisados por Deleuze, que se contenta com observações muito pertinentes sobre Snow e Bene. É preciso dizer, em sua defesa, que é difícil escrever sobre esses filmes, que oferecem uma superfície muito escorregadia, pouco propícia à glosa.
A imagem-tempo compreende, portanto, filmes ambiciosos e de qualidade- que merecem amplamente que nos debrucemos sobre eles-, mas que constituem apenas uma parte ínfima da produção de filmes interessante e uma parte ainda mais ínfima do conjunto da produção. Separar a imagem-tempo da imagem-movimento, o magma da dialética, é portanto um exercício um pouco vão ( até porque às vezes os dois se encontram no mesmo filme). Ainda mais vão me parece opô-los: é David e Golias, o pote de barro e o de ferro, o 2D e o 3D. Quer se trate do tempo ou do movimento, com centro ou sem centro, isso não vai nos levar muito longe.
Podemos nos espantar então que a Imagem-tempo contenha cem páginas a mais que a Imagem-movimento. Deleuze deve ter tido medo que seu Imagem-tempo fosse muito curto, recheou o quanto pôde o seu livro de coisas aqui e ali, em ordem aleatória, ao que parece. Os três últimos capítulos da Imagem-tempo ( pensamento, corpo e cérebro, componentes), que ultrapassam constantemente suas barreiras entre si, são os melhores ( ainda que o fio de Ariadne seja bem artificial, com classificações arbitrárias: Doillon unicamente colocado sob a rubrica corpos): aqui, Deleuze não desperdiça tinta, tentando inserir suas matérias em uma das duas grandes malhas conceituais.
Na verdade, me parece que os dois títulos estão lá porque “soam bem”, para ajudar Deleuze a vender seu peixe- um intrusivo ( e inconsciente) MacGuffin, um pouco como o título Pierrot le fou atraiu dinheiro e multidão para o filme de Godard, sem que o filme mostre uma única vez o célebre bandido homônimo. O trágico em Deleuze é que ele entulha seus capítulos injetando filmes e teses sem ligação com o assunto, mas tem uma hora que lhe dá a vontade de foder com tudo ( a repetição buñueliana no interior do naturalismo, o naturalismo no interior da pulsão...). Encher lingüiça,- vc tem de encher, se quiser cobrir a totalidade do cinema em 700 páginas-, então se cola uma única etiqueta, forçosamente equivocada, em cada um: Mizoguchi pequena forma, Ford grande forma, Vidor naturalista ( assim como há o mestre do suspense, o plano no nível tatami de Ozu, as vacas gorduchas fellinianas). Ainda a mania patológica da classificação! A razão disso também é que Deleuze quer conferir ao cinema um prestígio de que este não tem a mínima necessidade, referindo-o a seus conceitos bergsonianos. Seria antes Bergson, filósofo sem público ( e cinófobo) quem ganharia com o cinema! Mas os pensadores extra-fílmicos adoram este gênero de equação que os valoriza: há pouco tempo, um cara bizarro consagrou todo um livro para provar que Virgílio era pré-cinema, porque a escritura da Eneida evocava a de um découpage...
Em primeiro lugar, é talvez o primeiro historiador do cinema que se apóia exclusivamente sobre bons filmes ou filmes ambiciosos, no presente imediato ( Syberberg, Straub, Jacquot, Eustache, Garrel) e no passado. Enquanto que Metz, Cohen-Séat, Marcel Martin e Rijon se comprazem com as nulidades. Com Deleuze, estamos sempre em boa companhia, em família. Deleuze é cinéfilo, e ama o bom cinema.
Por outro lado, ele sabe degustar, sobretudo em revistas um pouco esquecidas como a Cinématographe e Études Cinematographiques, as mais interessantes fórmulas concernentes a um filme, fazer uma síntese das melhores citações, vindas de fontes bem variadas, sobre um autor. E sobretudo, o próprio Deleuze exprime seus pontos de vista originais sobre obras, em geral bem oblíquas. Quase sempre são opiniões jogadas às cegas, em impromptus 8, mal colocadas, mal expressas e mal desenvolvidas em poucos parágrafos ( o sumário final é mais útil para seguir o pensamento de Deleuze que o próprio texto...); mas que importa...
Por exemplo, há observações que oferecem um primeiro esforço de síntese, que abrem horizontes, sobre a crise da imagem-ação na América, ligada a cinco fatores: a “situação dispersiva” (multiplicação dos personagens), “ as ligações deliberadamente frágeis”, a “forma-balada”, “ a tomada de consciência dos clichês” e “a denunciação do complot”( p.283).
Ou ainda sobre Sternberg: “A luz não tem mais nada a ver com as trevas, mas com a transparência, ou translúcido ou o branco. Portanto, os cortinados e os véus de Sternberg se distinguem profundamente dos cortinados e dos véus do expressionismo, e seus flous do chiaroescuro deste. Não mais a luta das luzes contra as trevas, mas a aventura da luz com o branco: é o anti-expressionismo de Sternberg.” ( p. 133)
Ou ainda sobre Duras versus Straub: “A primeira diferença seria que, para Duras, o ato da palavra a atingir é o amor total ou o desejo absoluto. (...). A segunda diferença consiste em uma liquidez que marca cada vez mais a imagem visual em Duras. (...). A imagem visual, à diferença dos Straub, tende a ultrapassar seus valores estratigráficos ou arqueológicos em direção a uma calma potência fluvial e marítima que representa o Eterno”.( tomo 2, p.337).
Deleuze é homem da observação pontual, da comparação ( bem godardiana) , não da teoria totalizante. A bem dizer, esta nunca deu grande coisa no domínio do cinema, com exceção da fabricada pelos cineastas em sua obra pessoal. Difícil imaginar uma teoria global da literatura. Acreditaram que poderia haver uma para o cinema por este, quando de seu nascimento, existir em um espaço muito restrito, ainda mais limitado pelas contingências econômicas. Os anos, o desenvolvimento internacional e a popularização do exercício fílmico destruíram esta ilusão totalizadora. O geral é um engodo. Apenas existe o local, o pontual. As grande teorias do cinema se limitam a ser um “Abre-te Sésamo”, uma fórmula para tudo e para nada, uma chave: a montagem interdita baziniana, a câmera-caneta de Astruc, o travelling como questão de moral
( Godard), a dialética Ageliana do cinema como oferta( oblatif) 9 ou como captura ( capitatif), o cinema de prosa e o cinema de poesia pasoliniano, o olhar à altura do olho hawksiano, o cinema-emoção fulleriano- ou como dizia Auriol, “o cinema é a arte de fazer belas coisas a belas mulheres”.
Entrevista Jacques Rancière
R. Ao distinguir regime estético e regime representativo, eu quis me opor à visão tradicional, que separa uma era representativa e uma era não representativa, sob o modelo da passagem da figuração à abstração na pintura. Isto se torna uma espécie de standard da história da arte: assim, o cinema legitimaria a si mesmo, ao legitimar sua passagem de uma arte representativa para uma arte não representativa. Mas de fato é muito difícil fazer esse esquema funcionar. Se tomarmos por exemplo o argumento de Bazin, vemos que ele coloca uma oposição um pouco tortuosa: haveria antes uma primeira era do cinema, a era da montagem, a era das imagens consideradas como linguagem. Bazin constrói um modelo onde esta primeira era seria aristotélica, acreditando em uma certa linguagem das imagens, de ordenamento, através do découpage e da montagem, de uma história coerente. A isto se opõe o mundo da profundidade de campo e do plano seqüência. Mas podemos colocar o modelo inverso, onde o que vem primeiro é a anti-representação. Em Delluc, Epstein, Gance, assim como em Vertov e Eisenstein, temos a proposição de uma língua das imagens, ou da sensação, típica da era estética, e oposta à velha tradição narrativa e psicológica. E, inversamente, a segunda era do cinema aparece então como a de um cinema novamente tornado narrativo. A complexidade em fazer este esquema funcionar consiste no fato de que o cinema é uma arte ambígua, uma arte da narrativa em imagens, que funciona segundo uma dupla lógica: ele pertence à era estética, nasce do olho duplo da máquina e do operador, da idéia de uma linguagem do sensível. E ao mesmo tempo, nasce da racionalização otimizada da lógica aristotélica do encadeamento das ações. Esta dupla lógica, segundo penso, torna toda divisão ilusória: a de Bazin, que oporia uma era naïf a uma crítica, assim como a de Deleuze, que em minha opinião constitui uma dicotomia espúria. A oposição entre imagem-tempo e imagem-movimento é propriamente uma oposição filosófica: o que Deleuze opõe não são duas eras distintas do cinema. mas dois pontos de vista diferentes. Podemos pegar qualquer filme e lê-lo em termos de imagem-tempo ou imagem-movimento. A imagem-movimento é a imagem considerada do ponto de vista de sua materialidade, como uma certa modalidade do “aparecer”. A imagem-tempo é a imagem considerada como coisa do pensamento, do ponto de vista de sua idealidade. Poderíamos dizer, em termos spinozistas, o ponto de vista do pensamento, posterior ao da extensão ( étendue), ou ainda o ponto de vista da arte posterior ao dos materiais.
Esta oposição é em si mesma perfeitamente a-histórica. Deleuze tenta fazê-la coincidir com uma dimensão histórica que retoma a teoria baziniana , e faz esta teoria corresponder a uma espécie de grande drama histórico, fazendo coincidir a super problemática ruptura das “ligações sensório-motoras” com o traumatismo da Segunda Guerra Mundial. Creio que esta construção é muito artificial.
Para voltarmos a Godard “transformando” as imagens de Hitchcock, podemos dizer duas coisas. Em primeiro lugar, as imagens em Hitchcock parecem essencialmente funcionais. Hitchcock diz que nunca olha pela câmera. A imagem pode ser assimilada ora a uma palavra ora a uma espécie de estímulo que deve fazer um efeito sobre o espectador, o contrário do iconismo. Pode-se, então, ver no cinema de Hitchcock a lógica aristotélica do agenciamento de imagens visando a produzir um efeito máximo sobre a sensibilidade. Godard tentou transformar estas imagens, com o propósito de lhes tirar pequenos ícones: o copo de leite, as rodas do moinho, a chave, os óculos, etc. De uma lado, trata-se de uma “desnaturação” das imagens de Hitchcock. Mas ao mesmo tempo, esta transformação só é possível pelo fato de que as próprias imagens de Hitchcock pertencem a uma dupla lógica. O fato de que a angústia seja simbolizada pelo copo de leite e que o copo de leite seja acompanhado por esta espécie de pantomima da impassibilidade que é típica de Cary Grant, o fato de que a angústia passe por aí, e não pelo rosto de Joan Fontaine, remete a toda uma lógica propriamente estética, onde o elemento que se encarrega de traduzir e provocar sentimentos não é mais um certo gestual, nem uma certa posição dos corpos, mas objetos mudos. Se compararmos este modo de expressão à lógica representativa, por exemplo, a dos quadros de Greuze analisados por Diderot,- onde todos os sentimentos se pintam sobre os rostos, nas atitudes ou nas relações de um corpo com outros- , veremos que o cinema de Hitchcock já é bem diferente, uma vez que a lógica dos afetos em seu cinema é conduzida por objetos, que são as imagens dos objetos que simbolizam os afetos e os transmitem. Portanto, as imagens são inteiramente implicadas na lógica da ação, mas ao mesmo tempo esta lógica da ação é uma lógica pática, que é diferente da lógica patética tradicional da expressão. São os objetos que carregam os traços expressivos, são eles que atraem nossa atenção. Então, há em Hitchcock um uso duplo dos objetos, funcional e contra-funcional. Pois, atraindo nossa atenção para eles, o copo de leite, as rodas do moinho e os óculos fazem recuar a lógica pática. No regime estético das artes, mesmo o esquema mimético tradicional é “redobrado” ( doublé) em seu interior por um esquema contra-mimético. É isto que permite a Godard tomar imagens que são essencialmente “porta-afetos” para transformá-las em ícones puros da presença.
B. Ao invés de opor a imagem e a ficção no regime estético, não podemos pensar que elas permanecem solidárias, mas num modo diverso do implicado no regime representativo?
B. Mas mesmo em Flaubert a imagem é uma ruptura...
B. Mas o objeto possui um status privilegiado? Porque, de qualquer maneira, podemos pensar no cinema de Sternberg, que funciona muito em cima do close sobre o rosto. É aliás muito difícil falar aí em “detalhe”. No entanto, estamos plenamente colocados no regime estético.
R. Certamente, isso passa também pelos rostos, pelos gestos, pelas paisagens. Não confiro um privilégio particular ao objeto. Mas na lógica de Godard, é o objeto que se presta ao icônico. Os ícones hitchcockianos de Godard não são rostos, e mesmo quando se trata de Vera Miles no Homem errado, um dos ícones retidos por Godard, o importante para ele não é este rosto na iminência de naufragar na rigidez da psicose-e que Deleuze, por este motivo, toma como exemplo da passagem de um regime de cinema ao outro-, o importante é a escova de cabelos que ela agita.Ora, a função estética do close é precisamente uma função de aproximação entre a humanidade dos rostos e a inumanidade das coisas. É o que Deleuze resumiu na idéia de devir-inumano: esta lógica passa pelo devir-paisagem do rosto, ou o devir-expressivo do objeto, e assim destrói as hierarquias tradicionais, onde você tem o sujeito e o acessório. É sempre por um procedimento de heterogeneidade que uma coisa gera imagem, quer seja uma heterogeneidade de objetos, ou de registros expressivos- quando um acessório não “fala” mais como acessório, mas como paisagem- quando uma descrição se encontra como paralisada, etc Poderíamos dizer, em termos deleuzianos, que o esquema sensório-motor não funciona mais, embora eu não goste muito desta oposição, mas eu diria que, efetivamente, há um sistema de apropriação que é quebrado.
B. Temos a sensação, nos exemplos citados, que a imagem toma sempre como “motivo” um objeto imóvel, “parado”, ou imobilizado por um gesto da descrição e reificado.
R. Não necessariamente reificado, mas numa relação suspensa com a significação.
Podemos pensar no animal. O animal pode funcionar como portador de índices, de direções: é o cão que sente, que indica alguma coisa, que late e em seguida se lança na direção da coisa pressentida. Mas o animal pode ser também a figura onde o código expressivo não é visível, a figura onde o sentido vem “entrar em impasse”. É a história do personagem que tenta entrar no pensamento do veado que vai morrer, contada por Karl Philip Moritz e comentada por Deleuze. O animal é uma figura de transição entre o humano e o não-humano, entre o sentido e o não-sentido. Em resumo, é uma figura que preenche as três funções da imagem. Ele se presta ao índice, ao símbolo, mas também à pura cristalização do sentido. Mas a mesma função-imagem se efetua diversamente, no cinema e em literatura. Eu comentei isso no exemplo das lebres do Jornal de um padre. Em Bernanos, o importante é a indistinção dos coelhos mortos, que agora não passam de detritos. O cinema não pode retomar tal e qual a lógica romanesca, porque no cinema vemos os coelhos, vemos que eles vem do criadouro e que é preciso deixar de lado este traço de indistinção entre o humano e o inumano. Então, vemos a representação das linhas do jornal e a neutralidade da voz off, que vão assegurar o equivalente da “imagem” literária das lebres. Todas as figuras privilegiadas no regime estético das artes são figuras de transição entre o humano e o inumano, o vivo e o inerte, o significante e o insignificante. Por exemplo, quando Flaubert fala do boné de Charles Bovary,e diz que ele possui os traços do rosto de um imbecil, é uma espécie de curto-circuito, de circuito complicado, onde Charles é qualificado por seu boné e onde o boné é qualificado por sua semelhança ao rosto de um imbecil. Ele fala como fala um rosto que não fala. Há toda uma lógica de objetos com potencial variável que é extremamente forte, eles representam tudo o que pode ser, seja o acessório sobre o qual o olhar desliza, seja o índice que induz um movimento, seja o puro indecifrável, em relação ao tanto que este possa ter de indiferente, repulsivo ou inquietante. A imagem não tem necessariamente esta relação extrema ao sentido no regime estético, mas ela é fortemente caracterizada por esta polaridade: falar enquanto signo, hieróglifo, portador de sentido oculto, ou então falar enquanto coisa muda, destituída de sentido.
B. O modelo de imagem que você propõe, tanto em literatura quanto em cinema, parece sempre um modelo de “imagem simples”. Mas a imagem não seria também plural, ou seja, com a capacidade de engendrar outras imagens, como em Proust por exemplo, onde uma imagem chega sempre numa série ou um circuito (réseau) de outras imagens- o que implicaria levar em conta uma virtualidade de imagens com as quais elas podem comportar posições em séries, índices de memória, etc
R. Tomei exemplos de imagens que podemos chamar de simples precisamente para criticar a ilusão icônica da simplicidade da imagem, para mostrar que a imagem era sempre uma relação, um intervalo ( écart): um intervalo entre uma função de significação e uma função de “mostração”, mas também um intervalo entre imagens, entre a imagem mostrada e outras imagens que seriam possíveis. Seria preciso pôr radicalmente em questão a identificação entre a idéia da imagem e a idéia do dado visual. Mesmo quando falamos, como Deleuze, em imagem áudio-visual, temos sempre dificuldades em considerar o som como um elemento, e não um complemento da imagem. Mas também há que toda imagem está “no lugar” de outras imagens, ela atrai ou repele outras, ela toma o lugar de imagens que poderiam ter sido feitas e não o foram. É neste sentido também que a podemos chamar de plural , ou antes: pluralizada. Ao mesmo tempo, temos a tendência a identificar sempre a imagem ao plano, embora a própria noção de plano não seja estável: trabalhamos sobre o modelo do quadro, mesmo pretendendo o contrário. Não podemos jamais estritamente delimitar cinematograficamente a unidade imagem. A imagem é sempre constituída por coisas que escapam à unidade visual. Dizer que “vemos”, então, é uma expressão ambígua. Os entusiasmos “naturalistas” na descrição literária já não colocavam nada de particular diante de nossos olhos. Ao contrário, eles desconectavam as palavras das representações visuais às quais estavam ligados pelo regime da descrição funcional. E mesmo no cinema, a imagem-intensidade não é uma intensificação visual, é uma intensidade diferencial que coloca uma história num quadro ( tableau) ou um quadro em história, que os encadeia a outras imagens e outras histórias, outros sons e outras palavras. Um rosto torna-se paisagem, um traço de expressão torna-se uma história. Ocorre uma imagem, esteticamente falando, quando há um salto intensivo de um registro a outro. Uma imagem vem como um operador de desestabilização de um certo regime do sensível, por exemplo um regime descritivo, ou o que Deleuze chama de regime sensório-motor. Ela é um operador de diferença e, efetivamente neste sentido, ela funciona em série. Em Proust, é marcante constatar que as imagens constituem uma espécie de “torneio” ( tour) sobre elas mesmas, como regimes da natureza: as imagens vegetais se transformam em animais, em marinhas, aéreas, é a roda das imagens, a roda das metáforas, que constitui a verdade da imagem singular. A imagem exprime sempre a transformação, ela é portanto o operador de um regime de metamorfose, e penso que isto também caracteriza propriamente a imagem no regime estético das artes. No exemplo flaubertiano, as imagens transformam uma conversação em paisagem ou uma sala de recepção em um deserto. O melhor equivalente cinematográfico encontraríamos talvez na forma com que, em Chantal Akerman, o gesto se metamorfoseia em cantarolar e faz, em um único modo, penetrar o mundo num quarto e uma infinidade de histórias num face a face intimista. A imagem escapa sempre à especificidade visual para induzir um regime de metamorfose que é um meio de desestabilização das formas fixas. É preciso distinguir a função imagem da idéia de unidade visual, assim como da de unidade técnica. Assim como não podemos mesurar a imagem pela forma visual instantânea, não podemos limitá-la ao começo de movimentação e de fixidez da câmera, ou a qualquer outra referência técnica. Uma imagem é sempre um intervalo e uma expansão. Além do mais, a isso se acrescenta no cinema a impossibilidade de “parar” o encadeamento temporal. Há empiricamente uma sub-percepção constante da unidade visual, que nos remete fortemente a este fato teórico de que a imagem é sempre uma relação. A imagem, esteticamente falando, somos sempre nós quem a “decupamos”; assim, podemos dizer da imagem: é um plano no sentido tradicional mas também um evento singular que se passa nesta imagem, ou o processo que liga três planos num conjunto, etc. É importante ter consciência que a unidade não é constitutiva. Ela pertence a uma estratégia artística e também a uma estratégia de leitura.
B. O senhor falaria então na idéia de imagem mental?
R. É uma idéia complicada. Claro que há a imagem mental no sentido em que foi pensada para ser na imagem visual, assim como em nossa “cabeça”. Mas a imagem mental é também a infinidade de processos de associações que faz com que reconheçamos diversas coisas sobre uma tela ( écran), uma página, uma tela ( pintura), e que iremos associar de maneiras infinitamente diversas. Deleuze brinca com a idéia de que o universo inteiro pode ser associado a um plano, por exemplo. Quando ele fala de um filme, é-lhe no fundo indiferente argumentar sobre um plano, um elemento do roteiro, ou uma palavra pronunciada por um personagem, assim como sobre elementos de leitura crítica. Ele fala de um filme enquanto ele pertence a todo um universo de imagens mentais que o constitui. Há também a imagem mental no sentido de Schefer, onde o que vemos sobre a tela se encontra acondicionado num universo imaginário que lhe ultrapassa completamente. Mas acho ruim raciocinar em termos de imaginário, em todo caso tento sempre não fazê-lo. Nos encontramos numa démarche contraditória: sabemos muito bem que o que vemos não se encontra nem um décimo sobre a película ou sobre a tela, mas ao mesmo tempo, por disciplina, é preciso tentar se fixar sobre o que nos é dado pelo filme e sua objetividade. É um jogo complicado. O discurso sobre a imagem móvel é sempre duplo, funciona sobre um esforço de objetivação que remete constantemente a um processo de subjetivação, de associação, de derivações múltiplas, correspondentes à captação de dois elementos essenciais da imagem estética: esta constitui um intervalo e é uma expansão. O discurso sobre a imagem cinematográfica é em suma sempre um discurso ilegítimo ( bâtard), sem nuance pejorativa.
B. Ao mesmo tempo, a imagem não produz apenas efeitos subjetivos, mas também efeitos de imagens. Assim, o cinema não remeteria em questão a idéia de imagem, ou lhe imporia uma outra forma de apreensão?
R. Por subjetividade não compreendo apenas associações singulares, ou delírios particulares. Penso também neste trabalho de interpretação necessária que Gombrich descreve no domínio pictórico e que se produz a uma escala infinitamente superior com a imagem cinematográfica que, em seu desfilar, nega sua própria autonomia. A noção usual de imagem remete a uma fixidez que é totalmente ilusória, mas isto não concerne apenas ao cinema. Se pensarmos na imagem literária, nada é propriamente mostrado, pode-se ingerir páginas de descrições sem ver o que quer que seja. Já a imagem cinematográfica mostra tudo, mas inserindo este todo em um fluxo que impede a fixação do que aparece na tela e que obriga a reconstruir o filme de outra forma. Esta reconstrução é para mim diferente de uma espécie de imaginário, o que me parece ser, penso eu,a tese de Schefer. Há de um lado uma consistência própria das imagens, mesmo se, por um lado, o “desenrolar” fílmico a absorve e, de outro, nós as reinserimos em sistemas de associações e derivações infinitas. A expansão das imagens não é um imaginário.
B. A imagem não seria então produzida numa espécie de contra-fluxo, de contra-efetuação, para retomarmos uma expressão de Deleuze, que seria assumida pelo espectador?
R. Não sei se podemos empregar aqui o termo com o rigor com que é empregado por Deleuze. Mas certamente as imagens fílmicas vivem das contra-efetuações que nós operamos. Vão se constituir quatro ou cinco imagens que são “as imagens” de um filme. Podemos retomar a fita cassete, parar o filme, estas imagens se tornaram inteiramente autônomas da unidade que supomos pertencer ao filme. A vida das imagens se faz com outras imagens. Uma imagem está morta se ela está dada e se interrompe. É por isso que é tão importante falar sobre os filmes. Há um universo das imagens do cinema que talvez só seja constituído pela palavra. Para que as imagens se projetem, constituam uma espécie de memória do filme, é preciso que escrevamos, evocar outras imagens que são “falsas”, deslocadas em relação ao filme. Eu durante muito tempo vi o cinema de Nicholas Ray através do plano da aparição de Cathy O’Donell de macacão na garagem de They live by night. Esta aparição instantânea de fato não existe: pelo contrário, o personagem é introduzido progressivamente por esboços ( esquisses) paralelos. E no entanto esta imagem resume tão bem o poder de efração das imagens do filme e de um cineasta que recentemente encontrei o mesmo “erro” compartilhado por outro “espectador”. Fui impactado de forma inversa, relendo os textos da grande época mac-mahoniana, em constatar até que ponto a sua celebração enfática da presença não permitia que se visse nada, só se referia a ela mesma. Algo permanece quando se cria indefinidamente outras imagens com outras palavras, outras imagens. É por isso também que o estudo narratológico “plano a plano” é geralmente tão decepcionante. A idéia de evidência visual se evapora de forma absolutamente vertiginosa, a partir do momento em que a utilizamos.
B. Que obras do cinema contemporâneo lhe ajudam a pensar a noção de imagem? E em qual (s) direção (s)?
R. Digamos em primeiro lugar que minha cultura cinematográfica é muito descontínua e seletiva para abarcar uma unidade recuperável sob o rótulo “cinema contemporâneo”. A isto se junta que a contemporaneidade se define tanto pelas novidades quanto pelos filmes de diferentes épocas que nos é possível ver em um dado momento, o que, para nós, fez de Ozu mais um contemporâneo do “après-Nouvelle vague” que Renoir. Disto isto, podemos distinguir três grandes momentos na idéia da imagem cinematográfica: houve o tempo em que a imagem visual foi pensada como elemento de uma língua específica e onde a originalidade do cinema foi assimilada a uma espécie de nova língua universal das imagens, teorização que aliás não cessava de desmentir as formas concretas da narrativa cinematográfica. Houve a época de Bresson, Bergman e da Nouvelle Vague, que fixou o status artístico da imagem cinematográfica, marcando a distância entre imagem estética e unidade visual. É o momento onde cessou de se opor uma ilusória “pureza” da imagem visual à mescla cinematográfica do visível e da palavra, da narrativa e do plano, onde apareceu que a imagem era em primeiro lugar uma diferença de potencial, um prolongamento ou uma aceleração do tempo, um intervalo entre regimes de “imagismo” (imageité). Esta clarificação, ao mesmo tempo, oscilava entre uma idéia crítica de cinema, assimilando a dissociação dos componentes da imagem a uma função de crítica positiva, e um outro pensamento da pureza cinematográfica. As formas de cinema contemporâneo que me interessam são aquelas que permitem sair de deste dilema, ao explorar de diversas maneiras as formas de composição e decomposição que forjam a imagem cinematográfica, e confrontando-as a formas de heterogeneidade próprias à imagem pictórica ou literária. Penso por exemplo em alguns filmes de Kitano que jogam em cima das transformações, instantâneas ou progressivas, do narrativo, em sua velocidade devoradora das imagens, no puro pictórico. Este jogo é ao mesmo tempo uma maneira de repassar as eras do cinema , ao utilizar as formas do cinema mudo e a gesticulação do clown, para transformar o movimento em imobilidade e a ilustração funcional em fogo de artifício gratuito. Penso também em certos filmes de Hou Hsiao Hsien, que deslocam a oposição do clássico e do moderno ao isolar um plano não sob a forma do “corte irracional” mas sob a forma de uma saturação e de uma complexidade internas que no entanto não obedecem ao paradigma baziniano da profundidade de campo. Complexidade do mesmo gênero, em relação aos cortes da história do cinema, se encontra nos procedimentos de Wong Kar Wai, que, a princípio, parecem ornamentos ( fioritures) pictóricas ( planos aproximados absorvendo o corpo, à maneira de Bonnard, em uma espécie de papel pintado multicolorido, véus e espelhos embaralhando as fronteiras do real e da aparência, do objetivo e do subjetivo), mas que estabelecem sobretudo uma indecisão entre os traços pictóricos e os traços narrativos ( assim, estes brancos e estes negros que desempenham um duplo papel de componentes do plano e de separação entre os planos, de elementos plásticos e de figuras discursivas). Em alguns cineastas, o enriquecimento ( surenchère) plástico que desejaria isolar o visível em sua pureza acaba por reencontrar de outra forma a heterogeneidade da imagem cinematográfica. Penso aqui na tentativa de Sokurov, que me parece significativa até em suas contradições. Pretendendo liberar o cinema da ilusão perspectivista e assim aproximando-o de uma inencontrável pintura, ele nos faz sobretudo sentir até que ponto o som funciona como “terceira dimensão” da imagem cinematográfica, e a sonoridade dostoievskiana arcaica de Sokurov é bem próxima da sonoridade “neo-realista” suburbana que encerra os personagens contemporâneos do Ossos de Pedro Costa. E ele permite repensar este caráter paradoxal do “ruído”, que torna a imagem visível cinematográfica, com seus micro-eventos, parente da “quase-imagem” do livro. Penso enfim nas obras de Kiarostami, que jogam sistematicamente sobre a transformação das formas, fazendo do filme o desenvolvimento de um poema ou de um quadro, com as rupturas de escalas visuais e os conflitos de imagens que isto pressupõe, desde o plano da criança-micróbio percorrendo o terreno em ziguezague geometricamente traçado sobre a colina de Onde fica a casa do meu amigo?, até a janela fechada de O vento nos levará. São exemplos, não um ranking. Eles se situam fora da linha dominante americana- pela qual meu interesse é bem fraco, ou simplesmente minha preguiça forte- e da sub-dominante francesa, ou antes francófona, onde são ainda os “clássicos da modernidade”, Godard , os Straub ou Chantal Akerman, que encarnam a potência disjuntiva das imagens e continuam o diálogo com a imagem literária ( penso no crescendo da declaração da mãe em Sicília!, ou ao decrescendo dos últimos planos marinhos de A cativa). A importância dos cinemas extra-europeus hoje vem sem dúvida do leve interstício que desloca as filiações e organiza encontros do cinema “moderno” com diferentes tradições. Assim, em Kitano, vemos os códigos do filme de yakusa trabalhados pelos códigos do Nô e os “desvios do código” típicos da tradição burlesca. Em Wong Kar-Wai ou Hou Hsiao Hsien, podemos encontrar a reatualização de uma tradição pictórica e caligráfica que torna equivalentes traços pictóricos e escriturais; em Sokurov, um encontro entre os princípios da modernidade cinematográfica e da tradição do ícone. Ou ainda, em Kiarostami, o encontro entre a forma de “imagética” dominante do poema, mas também com todas as outras formas- historicamente não contemporâneas umas das outras- do desejo da imagem, da necessidade da imagem ou do interdito da imagem.
Entrevista realizada em junho de 2000 por Sophie Carlin, Stéphane Delorme e Mathias Levin para a revista Balthazar.
Tradução: Luiz Soares Júnior.