sexta-feira, 3 de outubro de 2014

O príncipe





Entre as estrelas e seus cães, seu sentido do familiar e seu gosto do sublime, vivia o Príncipe de Salina, aquele de Lampedusa. Por que efeito de pérfida metamorfose Visconti fará seu um romance ( aliás sobrevalorizado)? Em Cannes,  em meio à monotonia de obras sem arrogância, foi um  deslumbramento, uma satisfação quase física; em todo caso, um espetáculo mais sofrido que vivido. Perante a reflexão, questões numerosas se precipitam;  a acolhida geralmente reservada ao filme parece-se em demasia com um mal-entendido, quer tenhamos sido fascinados por sua suntuosidade um tanto afetada, ou irritados pela atitude do autor, confortável em seu virtuosismo altaneiro, mais interessado em criar uma existência e uma beleza a prioris que presentear os seus personagens com esta parte secreta de acaso de que depende a liberdade reivindicada com força pela arte moderna, fonte necessária da dupla vida de uma obra...Compreende-se que um viscontiano ortodoxo, como Aristarco, interrogue-se com precaução, e não esconda seu embaraço. Pois passada a primeira visão, parecem simples, simples demais, as posições tomadas, tanto de admiração como de exasperação. A aparente e superficial fidelidade ao romance concerne pouco o essencial: suspeita-se rapidamente, para além da cumplicidade louvada aqui e ali, de uma querela de aristocratas, o conde de Modrone contra o Príncipe de Lampedusa- uma luta surda de palácio por detrás do cerimonial que é o filme acabado. No entanto, os detratores asseveram, não sem razão, que isto não nos traz nada de novo sobre Visconti, príncipe das contradições. Talvez Il gattopardo intensifique, para além dos limites habituais, certas complacências do autor. O paradoxo escrutina: mais longe, ou nem tanto assim. Talvez seja conveniente tomar a obra pelo que ela não é, a fim de melhor saber do que se trata. 

A dualidade viscontiana por excelência ( La terra trema e Noites brancas, o combate e o refúgio) exterioriza-se por meio destes filmes no tempo. Mas estes pólos habitualmente coexistem, poderosas virtudes contraditórias cuja luta dota a obra inteira de sua ambiguidade e força. Visconti é, assim, o homem dos discursos paralelos, da “segunda visão”.  Se Rocco dissimula os faustos da ópera, a ópera pode a seu turno ser uma forma da tragédia social. Assim, Il gattopardo esconde Noites brancas, e a análise o sonho?
Para além da verdade da situação histórica descrita e das inumeráveis precisões de detalhe- que poderiam levar a crer em uma particularização extrema dos propósitos políticos e descritivos de Visconti-, o filme não seria nada além da crônica minuciosa, melancólica e narcisista de uma solidão das mais intemporais? Seríamos tentados a dizer que a situação da Itália em 1860, a decadência e as desilusões da aristocracia, o sufocamento da chama garibbaldina, a ascenção ao poder da ávida burguesia aparecem como elementos mais anedóticos que necessários em relação ao itinerário do príncipe. E que a idéia afetiva de crise, de dilaceramento, à visão da obra, parece tomar a dianteira sobre a importância histórica particular da dita crise. Vemos já aí o ponto que pode ter chocado Aristarco. Se ele prefere Senso a Il gattopardo, não é porque neste a direção de atores lhe parece menos inspirada, nem menos admirável a reconstituição, ou menos seguro o gosto do autor. Não. Simplesmente, ele prefere o marquês Ussoni ao príncipe de Salina; em outros termos: um herói positivo a um negativo.

Esperava-se a obra de combate,  e  eis aqui uma de refúgio. Se não se trata aqui de Visconti guerreiro, mas do Visconti sonhador, como não seria “negativa” esta reflexão nostálgica sobre a juventude e a felicidade, ainda mais quando ancorada sobre uma forma de fraqueza que se orna com lantejoulas esplêndidas? Pensamos aqui no que escreve Marker sobre Montherlant, em seu ensaio sobre Giraudoux: “... o drama da fraqueza. Defendemo-nos dele, desconfiamos, acusamo-lo de espírito de contradição, de paradoxo fácil- e, no entanto, a evidência permanece”.
Esta fraqueza, esta privação que se mingua sob a vertigem da suntuosidade, é a complacência de que falamos mais acima. É o sonho, que consiste na forma mais íntima da complacência, “um esgoto de água clara, mas um esgoto”, dizia Reverdy. O instante perigoso onde o criador fecha-se sobre si mesmo ; não se trata de denunciar, mas de constatá-lo. Quem saberia dizer se ao fazê-lo ele se distancia de nós ou se aproxima? 

Formalmente, isto se traduz por um inevitável auto-pastiche: depois de Senso, Il gattopardo beira o academicismo. E também é verdade que as referências pictóricas se inclinam às vezes mais para o lado de Winterhalter que de Manet. No entanto, olhando melhor, esta sensação de academicismo, esta plástica “decadente” encontra, por meio das graças da tela larga, as concepções de espaço mais modernas, mais inesperadas: podemos pensar em um Tobey nos planos gerais, nestas telas onde o olho erra livremente, sem ser capturado à primeira vista por um detalhe em particular. O rigor da composição não impede a observação detida ( regardeur); retomando uma palavra célebre de Duchamp: de fazer o quadro. É uma das maneiras que o filme possui de ser aberto.
Mais longe, ou nem tanto assim? O “nem tanto assim” porque Visconti não ousou nos falar em primeira pessoa ( Mas poderia?).

Pois estávamos no direito de esperar, depois da perversidade suprema de Il lavoro ( talvez sua obra-prima), um príncipe mais maquiavélico, uma obra mais eficazmente crítica, enquanto que a crueldade natural do autor, que deveria esmerar-se em tomar Don Fabrizio como objeto,  com exceção de alguns arranhões sem grande alcance, poupa-o quase que totalmente,  e se esgrime pelo contrário com prazer sobre os personagens secundários. É que Visconti não soube ou pôde optar nem pelo distanciamento nem pela confissão: entre estes dois termos, a obra se desdobra, pendente ora para um ora para outro. Nesta alternância ( e nos revemos novamente do lado de Montherlant), lemos o dilaceramento do autor e aquilo que sem dúvida constitui sua sinceridade.
A esta altura, aquilo que é baixo ou mesquinho, as notações exageradas até a caricatura, não são agressivas, mas defensivas. A psicologia cede o lugar à parábola. Permanecem a tristeza e a solidão. A partida de Tancredi no início do filme não é um início, mas um fim, uma primeira morte ( na própria mise en scène), menos uma esperança que um rompimento. A ternura persistente do Príncipe por seu sobrinho, portador de uma infâmia cada vez menos posta em dúvida, é a ternura para com um sonho que nos recusamos a ver estilhaçado; Il gattopardo, assim, descreve-nos a história  de uma cegueira sob a aparência terrível de uma lucidez resignada.
A partir daí, não é mais uma história o que Visconti conta; é um estado de alma que ele pinta. Daí a importância, pelo fausto como pela duração, da cena do baile, uma verdadeira audácia de construção onde a narrativa se interrompe  para dar lugar à descrição nostálgica das relações do Príncipe e de seu meio, à tomada de consciência de sua morte e à sua solidão. Na hora da sopa, os malvas e os verdes ensombreiam-se até o limiar do luto, e as lágrimas do leopardo, na manhã que surge, são o signo físico da lassitude que até então conseguia se ocultar sob a magnificência um pouco lúgubre destes rituais de uma classe condenada.
Vemos o que a fúria meticulosa de Visconti “desvela”: se é preciso encher os frascos com perfume verdadeiro, ou se são aristocratas autênticos que figuram na cena do baile, isto só serve para fugir ao essencial, em um delírio da verdade louca demais para não dissimular a mentira.  Em virtude disto, nesta busca desesperada do artista, é sua mentira que é preciso amar, sob pena de não mais ouvirmos sua voz, e de só vermos os reflexos. 

Jean-André Fieschi, Cahiers du cinéma, 146

Tradução: Luiz Soares Júnior.


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