quarta-feira, 10 de setembro de 2014

De uma Índia a outra




Elle, défunte nue dans le miroir, encor


Que, dans l’oubli fermé par le cadre...



( Mallarmé).




Anne-Marie Stretter...Michael Richardson...A mendiga de Savannakhet...o vice-cônsul da França em Lahore...os leprosos de Shalimar...Impossível não ceder ao charme, à volúpia, à música das palavras e do espaço imaginário construído com esta fantástica economia de meios na qual Marguerite Duras é especialista. A música, o perfume, o sonho de que estes nomes estão prenhes, e a data, 1937. Vejamos: mas em que consiste este charme? A Índia branca, 1937. Acrescentem à música, à poesia dos nomes a imagem admirável de Bruno Nuytten, os figurinos ( Cerruti 1881) de Claude Mann, Mathieu Carrière, etc, estas magras silhuetas brancas, estes fantasmas vestidos de linho, em smoking de verão, em roupa de festa, cuja imobilidade ou as lentas evoluções fixam com dificuldade uma história vaporosa como o incenso, incerta como o crepúsculo sobre o delta do Ganges, vibrante como o ar no calor tropical. Mas sim, é claro, isto salta aos olhos: a moda rétro!

Demoremo-nos um pouco sobre a moda rétro.  Rétro quer dizer nostálgico; portanto, pouco ou o bastante, reacionário. O filme de Marguerite Duras seria portanto reacionário, seu efeito principal seria o de dar um corpo a este tipo de nostalgia que adquirimos o hábito de designar com o termo ‘rétro’? Mas de fato, nostalgia do que na moda rétro?
De um gozo ( jouissance); do gozo dos senhores ( maîtres), ou seja, de um excesso de gozo ( plus de jouir) absoluto. Eles eram belos, eram racistas, etc- mas sabiam viver. O que significa este discurso, senão isto: nós que não o somos- que não somos racistas, belos-, ou que o somos com má-consciência (portanto, com um déficit no gozar), nós perdemos desde então uma certa inocência, uma certa voluptuosidade, uma certa “arte de viver”- arte de que nos cabe o despojo: “aquilo que nos resta deles”, este ersatz provisório, Gold Tea. Em sua cor ambarina, seu gosto defumado , sua frescura, vocês vão reencontrar alguma coisa deste objeto perdido.

India Song mimetiza inegavelmente este discurso, esta sedução de um excesso do gozo anterior à descolonização, de que Jean-Pierre Oudart nos indica aliás a referência histórica: feudal.
Acresçamos de nossa parte uma conotação hegeliana:  belos e racistas, eles ( os Sulistas, os SS, etc) deveriam desaparecer , historicamente falando. A moda rétro designa neste sentido seu público como servil ( diremos mais simplesmente: pequeno-burguês), na medida em que esta não representa jamais o gozar do mestre, o gozo do senhor, sem mostrar ao mesmo tempo a sua morte : Lacombe Lucien, Porteiro da noite ou ( com algumas variantes), Chinatown. Eles estão mortos, vocês estão vivos, e entre eles e você só resta- não resta nada além ( ó sedução, deusa do marketing!) desta imagem de paraíso terrestre, estas bijouterias sujas de sangue, ou de forma mais diretamente intercambiável uma pequena garrafa cheia de gasosa com chá: se os filmes rétro são sempre trágicos, eles possuem também sempre- e  o mérito do pub Gold Tea consiste em mostrá-lo- uma competência cômica secreta.

Em certos sentidos, India Song obedece bem a este esquema; obedece até um pouco bem demais, até a caricatura e a paródia. Este lado “forçado” vem evidentemente da técnica de mise en scène- ou seja, estes planos longos, esta interpretação hierática e sobretudo na disjunção entre imagem e som, do campo e do fora de campo.
Sublinhei em outro texto o efeito de estranheza da voz off no sistema de uma ficção. Ele é, em um certo sentido, pelo menos duplo: por um lado, estas vozes múltiplas que povoam o espaço off e o animam ( descrevendo, sugerindo por intermédio de pequenos toques eficazes, o odor de morte do incenso, a bruma violeta do delta do Ganges..), estas vozes que nenhum rosto sobre a tela fixa jamais, e que ora pertencem às figuras que assistimos evoluir, ora a personagens invisíveis e não-identificáveis, ora a ninguém ( “vozes intemporais”); estas vozes mescladas compõem uma trama frouxa e rasgada de palavras e de frases, uma fuga de palavras e de frases, sitiando como fumaça ou vapor de incenso  as lentas silhuetas que o cadre fixa. A sensação de lentidão, de torpor tropical, de ociosidade colonial se encontra intensificada. Por outro lado- ou antes: de forma complementar-, esta imagem privada de voz, de son, estes sons, esta música, estas vozes que erram na indeterminação do fora de campo, marcam a narrativa com uma espécie de fissura, introduzindo entre ela e os espectadores um tipo de tela suplementar- a tela do passado, já que estes corpos, estes rostos jamais se exprimem de viva voz. ( No cinema, a voz viva é necessariamente in, jamais off). Muito mais que em Céline et Julie, penso aqui em Invenção de Morel: são os mortos, os fantasmas, os traços, sem outra consistência que não a de fosforescências, deslizantes diante de nós.

Portanto, teríamos aí o dispositivo de um drama hegeliano-rétro: gozo e morte dos senhores ( no caso: de uma casta da grande burguesia colonial). Falta, no entanto, uma dimensão essencial:  a seriedade histórica, este espírito de sisudez histórica que se reflete nos filmes rétro a través do realismo da mise en scène. Há sobretudo na narrativa aqui alguma coisa a mais, que modifica completamente o quadro. Esta coisa suplementar pertence à ordem do dejeto, mas não do dejeto de um “excesso de gozo”, conversível em valor de troca e representável, do tipo “aquilo que nos resta deles, Gold Tea”.

É justamente o dejeto da representação, o irrepresentável. É também a isto que serve o espaço off em India Song: para inscrever a assombração de alguma coisa que não se deixa reduzir pela representação, pelo discurso histórico, pelo trágico. Há, portanto, em India Song, alguma coisa que, parece-nos, não tem nada a fazer narrativamente na quase ou pseudo-narração dos amores e do suicídio de Anne Marie Stretter, mas que vem transversalmente fantasmagorizar e secretamente modificar a narrativa. Esta ‘alguma coisa’ é por exemplo o canto da mendiga de Savannakhet, ou a evocação dos leprosos de Shalimar pelo vice cônsul de Lahore, e talvez seja também o grito, o amor, a loucura do homem de Lahore.

A mendiga, os leprosos, não são de forma alguma os servidores, os trabalhadores que esperam pela morte dos mestres. Sem dúvida, evocam o Outro, mas não o Outro dialético, ligado de forma contraditória ao Uno e destinado pela História a ocupar o lugar deste ( Senhor). Completamente fora de campo, eles são completamente estrangeiros, completamente estranhos. A mendiga, os leprosos não trabalham. Parasitas e dejetos sociais no mundo real, eles são aqui literalmente os parasitas e dejetos da narrativa.
Eles não trabalham, não possuem o status legal de dominados: senão não estaríamos distantes de uma clássica ficção política e de uma clássica mise en scène das contradições de classe. Mas o que fazer dos leprosos de Shalimar e da mendiga de Savannakhet? ( É claro, o enquadramento marxista-leninista funciona também para eles: os lumpen. Mas cada um sabe o que são as categorias nevrálgicas do marxismo leninismo). O que fazer do canto ininteligível do Outro? Em Nathalie Granger, o livro, Marguerite Duras opõe, em uma pequena nota no rodapé da página, à clássica noção de violência de classe aquela, impensável, impossível, de uma classe da violência.

A violência de classe pertence ao domínio do possível e do pensável, na medida em que ela constitui-se no meio por intermédio do qual a História avança: esta violência é feita, historicamente, hegelianamente, para ser enquadrada, canalizada, subordinada e “ultrapassada” ( pelo Partido, pelo Estado “do povo inteiro”). Ela consiste em uma figura ardilosa ( rusé) da Razão. Mas em se tratando de uma classe de violência, de que espécie de classe pode se tratar e a que classificação apelar? A violência, neste sentido, é precisamente aquilo que estilhaça toda noção de classe e todo espírito de classificação, toda paciência do conceito.  Uma “classe de violência” só pode ser uma classe parodicamente. “Classe” de intensidade pura, onde comunicam-se transversalmente, musicalmente, seguindo as amplidões de onda do canto e do grito, do grito cantado, do fora de campo, a mendicante e o vice-cônsul, e os leprosos nos quais ele atira ( e o silêncio de Anne Marie Stretter: há sempre um lugar para o silêncio nas ficções de Marguerite Duras). Não deixaremos de rir destas coligações ( as pessoas sérias, é claro). E, com efeito, esta é uma classe feita para rir, a dos leprosos, dos mendigos e dos vice-cônsuls.


Do ponto de vista do espírito sério, do trágico, da ciência e da História, deveríamos estacar aí e denunciar em Duras uma Vicki Baum ao mesmo tempo rétro e modernista. Eu prefiro ver outra coisa senão charme exótico na evocação dos mendigos de Shalimar. A questão dos leprosos e dos leprosários é com efeito a mais incendiária e recalcada do espaço ocidental desde a idade clássica ( Michel Foucault o nota o início de História da loucura: “Aquilo que vai permanecer por muito tempo além da lepra, que vai se manter numa época onde há anos os leprosários  estarão vazios, serão os valores e as imagens ligadas ao personagem do leproso. (...) Com frequência nos mesmos lugares, os jogos de exclusão vão se repetir, estranhamente semelhantes dois ou três séculos mais tarde. Pobres, vagabundos,  objetos de correção, alienados tomarão o lugar abandonado pelo leproso...”). O leprosário é o modelo arquitetural de nosso mundo. A ficção de India Song: um leprosário nômade, com fronteiras móveis, com limites flutuantes, que traça a comunidade no gesto de exclusão com que se constitui.


Pascal Bonitzer, Cahiers Du Cinéma, 258-259


Tradução: Luiz Soares Júnior.




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