quarta-feira, 11 de abril de 2012

O pai, o filho e o cinema




Há em Paul Vecchiali um lado “velha França”. Este politécnico sempre geriu suas produtoras ( Les Films de Gion, Unité Trois, Diagonale) como um bom pai de família, com amor, rigor e minúcia, como Truffaut, Rohmer, Tavernier, Varda ou mim mesmo; e na contracorrente da maioria, pois não teme as apostas aventurescas ou os riscos de falência. Este tradicionalismo a toda prova é contraditado por um olhar humano e generoso sobre o mundo dos homossexuais.
O lado reacionário, direitista traduz-se particularmente numa grande atenção dedicada à família, aos pais. Neste sentido, só vejo Tavernier com quem se lhe possa comparar ( Daddy nostalgia, L’horloger de Saint-Paul), com esta diferença significativa que Tavernier se situa em um horizonte político absolutamente oposto.
Vecchiali, creio, é o único cineasta do mundo que consagrou um filme à sua mãe (E haut des marches) e outro a seu pai ( Doença). Tratamento desigual em aparência, já que o primeiro é um longa-metragem de ficção e o segundo um curta metragem documentário, mas este último possui a vantagem de um maior rigor, um poder emocional e artístico mais afirmativo. Eis aí uma orientação artística insólita em relação ao contexto cultural nacional ( o “Família, eu te odeio”! de Gide) e a nosso cinema, que possui a tendência ou a mostrar a fratura geracional ( Truffaut, Chabrol, Becker, Pialat), ou a omitir a geração anterior ( Rohmer, Godard, Rivette, Resnais).
Paul Vecchiali, 18 anos depois da morte de seu pai Charles, reencontrou seu diário, que relata a evolução de sua doença de 1952 até seu desaparecimento, em 1959. Paul filmou este diário, escrito num caderno. As indicações que contém são sucintas, precisas. Possuem um rigor quase militar. (1). Aliás, o defunto era capitão. E a emoção surge deste contraste entre a secura do texto filmado, acentuada pelo tom neutro do recitante, e tudo o que este contém de dramático. Temos realmente a impressão de um mal inexpugnável ( fomos prevenidos desde o início do destino fatal), que progride sem cessar, interrompido por curtas calmarias. Tudo começa por crises de asma, que parecem ter levado a afecções bem mais graves, já que o capitão Vecchiali morreria de um câncer. Ao menos que tenha havido uma concomitância fortuita.

O texto é lido, com alguns retoques, por Paul Vecchiali de uma maneira bem bressoniana. Pensamos aliás no desdobramento voz/escrito no Diário de um padre. O espectador lê mais rapidamente o escrito que o recitante. Isto leva a que com freqüência Vecchiali, para manter a não-sincronização, comece a ler a quarta ou quinta linha do texto. O espectador deve então fazer um esforço para tentar encontrar no caderno o texto que acabou de ouvir. O que aumenta sua participação no filme.
Perto do fim, a escritura, até então bem inteligível, torna-se desajeitada, quebradiça. Afetados por alguns efeitos de metamorfose facial devidos à doença, revelados por um montage cut perturbador, nos apercebemos que Charles aproxima-se de seu fim, e ele dá-se conta conosco. Paul Vecchiali acrescenta que seu pai relata seu diálogo com Deus ( ele pensa tê-lo ouvido), que identificava a vida a uma passagem, e que a eternidade seria a verdadeira vida. Reencontramos aqui os itinerários de todos os finais de vida. Charles Vecchiali erra de Tulon a Roquebrussanne, em Luc e Montpellier: as pessoas muito doentes estão com frequência na vã busca- contraditória sempre- de um lugar ou de um hospital onde poderiam estar melhores...
O mimetismo entre Charles e Paul torna-se impressionante. O bigode em comum conta muito. As fotos de família são em preto e branco, assim como uma imagem de Paul, uma foto dir-se-ia. Mas subitamente esta se anima(2). Ele quisera por um momento situar-se no mesmo plano que seu pai. Cremos por um instante ver os dedos de Charles, mas são os de Paul. E além do mais Paul fala na primeira pessoa, no pronome e no lugar do pai, como se quisesse prolongar-lhe a existência. Isto é algo surpreendente na obra de Vecchiali, onde os protagonistas são geralmente femininos, maternais ( apenas mulheres em Femmes femmes, Danielle Darrieux em En haut des marches).(3).
Encontramos, portanto, basicamente planos em cores de Vecchiali que fala, planos sobre fotos de família em preto e branco e planos sobre o caderno do pai, com certas fotos às vezes sobrepostas. Mas estas fotos provavelmente não são superimpressões: custaria muito caro na economia do filme. São jogos de espelho que projetam as imagens da foto, um tanto evanescentes, sobre as páginas do caderno.
Maladie é de fato um filme sem nenhum orçamento ( no budget film). Vecchiali julga que o rodou em duas horas. O que me envergonha: levei mais tempo que isso a redigir este texto. Temos aqui a prova de que são possíveis obras-primas tocantes, comoventes como Maladie com nada. Foi Maladie que me incitou novamente a filmar curtas-metragens, sempre que tinha vontade. Em 1978, os realizadores de longas se sentiam desvalorizados se voltassem ao curta.
Eis aqui a primeira vez em que um cineasta consagra todo ou parte de seu filme à sua doença ( Charles sendo aqui o alter ego de Paul). Desde então, houve Nick’s movie ( Nicholas Ray, Wim Wenders, 1979), Diário íntimo ( Nanni Moretti, 1983),Lês derniers mots ( Van der Keuken, 1998), Le fil de ma vie ( Lionel Legros, 2002), , L’insaisissable image ( Marcel Hanoun, 2007). A origem deste lamento da doença talvez se encontre em Violência e paixão de Visconti ( 1975) e através da obra de Dwoskin. O cineasta busca não morrer para terminar seu filme.
Vocês podem me dizer que tudo já estava no diário de Charles. Paul não teve grande coisa a fazer. Talvez. Mas é o resultado que conta, pouco importa de onde vem. Necessidade de muito tato e sensibilidade para traduzir este diário em filme sem o trair.
E Maladie reencontra todo um cinema moderno, feito sobre o escrito e a palavra, o cinema de Bresson e de Straub.

Luc Moullet.

Tradução: Luiz Soares Júnior.

Notas:

1. Neste contexto objetivo, os adjetivos raríssimos que mencionam a dor tomam uma considerável importância.

2.
Vecchiali, de forma discutível, nos engana um instante: cremos ver uma foto do doutor, quando se trata de Charles.

3.
Filme de que Maladie é realmente o gêmeo: começa também com fotos de família.

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