Em 1982, Dario Argento abandona os território do
sobrenatural ( Suspiria e Inferno) e retorna ao giallo. O título do filme,
Trevas, remete a um sombrio interior, à cor da pulsão mortífera, e não à sua
estética- solar, que evoca antes a atmosfera de um giallo deslavado, do qual só
se tivesse conservado a cor vermelha. Tenebrae é um filme sobre o branco:
branco como as páginas do escritor ainda não enegrecidas por seus fantasmas
mórbidos, branco como a atmosfera de pesadelo que o assombra, branco como o halo
virginal que perderam as mulheres que trucida ( “puta suja!”, sussurra-lhes à
orelha antes de matá-las)-, branco enfim como o meio higienizante constituído
por halls de aeroporto, quartos frios, estúdios de televisão e villas iluminadas por néon. O design, glacial
e ultramoderno, privilegia as formas
contundentes, as linhas retas ou quebradas e as superfícies retangulares expostas de grandes baías envidraçadas. Longe
da Roma turística cheia de signos do passado, a Roma de Tenebrae é uma cidade
residencial e impessoal, feita de
jardins cercados de arame e aléias de concreto. A violência erstá presente em
todos os recantos das ruas e determina a maioria das relações humanas, quer se
tratem de violência comum ( um roubo num magazine, um mendigo agressivo,
objetos de uso pessoal depredados, um doberman ensandecido de raiva, uma
ruptura amorosa em lugar público, uma crise de ciúme ou brigas) ou criminais. A
onipresença do vidro engendra uma conflagração de espaços públicos e privados.
A transparência abole a interface exterior/interior e vale como prolongamento
plástico de uma fronteira móbil, em torno da qual o filme se desloca: “Vemos mas
não podemos tocar. A comunicação é universal e
abstrata”. 1 Neste giallo quase futurista em que a pulsão sexual é
“entubada” em contêineres, o assassinato constitui o único meio de entrar em
contato com o outro. De penetrá-lo. Argento insistiu com frequência na dimensão
intemporal do filme, verificável tanto na escolha dos cenários quanto na dos
figurinos, impossíveis a datar. A música, enfim, à base de teclados eletrônicos
e caixas rítmicas, reforça a sensação de um mundo frio e desumanizado, dominado
pela tecnologia.
Tenebrae é um pesadelo climatizado. Antes de tudo, a
referência é à televisão italiana da época, em sua tentativa de absorver o
cinema e impor a quem lhe resiste seus códigos estéticos grosseiros ( o
primeiro assassino é um apresentador de talk show!). Pela primeira vez, Argento
abandona o cinemascope pelo 1:85, formato mais próximo do da tela de televisão
, e superexplora seus estereótipos: uma luz pálida e branca ( todos os atores
tem o rosto emplastrado de branco), sequências de comédia “água de rosa”,
interiores impessoais e personagens clichês: um jogador de fliperama com jeans
colado ao corpo e “bodybuidado”, uma “tinca”- lábios polpudos e estremecimentos
lascivos- ou uma femme fatale ( Jane, a ex-mulher de Peter Neal), versão over
de Veronika Lake.
Ao cabo de vinte minutos, um pesadelo ou uma lembrança que
imaginamos traumática para o criminoso irrompe no filme sob a forma de um
flash-back. Numa praia, uma mulher vestida de branco e com um par de sapatos
vermelhos desnuda-se diante de rapazes de que vemos apenas as pernas. Súbito,
um deles lhe dá uma bofetada. Jogado à terra e macerado de golpes, ele sofre as
represálias da mulher, que lhe enfia o salto na boca. Mais tarde, um segundo
flash-back fecha este pequeno filme no filme e nos mostra a jovem apunhalada
pelo rapaz a quem humilhara. Damo-nos conta agora que o estilo visual de
Tenebrae é obra de um espírito doente; é sua matriz plástica ( todos os “motivos”-
a obstrução da boca, a importância do fetiche, o desejo negativo, as cores-
reencontramos aqui), e o filme é sua
versão soft. Argento enfatiza aqui a origem patológica da estética televisual e
do que esta produz em matéria de recalcado (refoulé)- a televisão se torna o
pesadelo literal do cinema. Tenebrae “des-dobra” precisamente a imagem
cinematográfica de seu recalcado televisual. O assassino, cujos atos são calcados
sobre os do romance ( “é uma espécie de homenagem ao livro”, diz-nos o inspetor
Giernani), se centra no que ele considera a Corrupção, que reúne todos os
comportamentos ( sexuais, humanos) que ele julga “desviantes”. Ele encarna
assim uma espécie de braço armado da censura televisual, e evolui como ela no
interior de um mundo regido por fórmulas petrificadas ( “”fixed patterns” é a
expressão usada por Tilde,a jornalista).
O filme, que se poderia acreditar estar bloqueado por esta constatação crítica,
desloca progressivamente seu objeto a partir de seu horizonte, ou seja de seu
impensado: o sexo e o assassinato.
O sexo primeiro, pois Tenebrae leva para o centro do
“contêiner” aquilo que habitualmente este expulsa ( fetichismo,
homosexualidade, sadomasoquismo). Um dos exemplos mais perturbadores do
travestismo empreendido é a escolha do transexual Eva Robins/Roberto Coati 2 para encarnar a moça da praia, fantasma erótico trivial. O
duplo pertencimento sexual do ator/atriz contamina o conjunto do filme e
instala em seu centro um princípio de indeterminação. “Se tiveres atração por
ela, estás preso na teia. Eva é apenas um sonho, uma aparência”. 3 Qualquer que
seja o caso da figura ( olhar heterossexual ou não), esta imagem de status
incerto aprisiona numa armadilha o olhar do espectador. Ela é o lugar por onde
passam todas as dobras do filme- entre normalidade e desvio, heterossexualidade
e homossexualidade, atração e repulsa, clichê e subversão-, o que o leva a
experimentar um desejo forçosamente contraditório, eivado de sentimentos que
naturalmente se excluem. O assassinato enfim que surge como um programa, em
letras capitais e closes nos créditos do
filme. A brutalidade do filme é à medida da higienização ambiente, de que a
violência parece ser o recalcado orgânico e vingador. Degolas, lacerações,
amputações e outros “gêiseres” escarlates reintroduzem a cor ( o desejo, a
pulsão) em um mundo que enlouqueceu. Tenebrae registra o surgimento do gore no
país dos sitcoms.
Notas:
2 Notemos que Mario Bava também havia utilizado um garoto (
Valério Valeri) para fazer o papel da pequena Melissa em Operazione paura. Em
Pronfondo rosso, o amiguinho de Carlo é feito por uma moça...
3 Entrevista feita por Christophe Gans por ocasião do
lançamento de Tenebrae na França.
Dario Argento, o mágico do medo. O mundo e suas dobras. Jean Baptiste Thoret
Tradução: Luiz Soares Júnior.
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