O fenômeno maior de evolução do cinema nos anos cinqüenta terá sido- com o necessário recuo- não o cinemascope, mas a invasão das técnicas e técnicos da televisão em nossas telas. Uma história simples, com o grande filme de Renoir1 e o caderno de viagem de Rossellini na Índia marcarão uma mudança decisiva em nosso horizonte, afirmando a tomada de consciência , em todos os níveis ( técnico, econômico, social e estético) da importância da tela pequena no processo hoje generalizado de liberação da criação cinematográfica de inumeráveis servilismos, complacentemente alimentados pelos profissionais da área- sindicalistas, técnicos, montadores “que procuram pêlo em ovo”.2
Antes de tudo, o fato capital: com cerca de 300.000 francos,
uma mãozinha da TV francesa que empresta o material e paga a película, os
atores que oferecem sua colaboração graciosamente, mais o tradicional crédito
oferecido pelos laboratórios, Marcel Hanoun realiza em 16mm- por razões estritamente
econômicas, os custos reduzidos pela metade- um média metragem que segundo o
sistema normald e filmagem teria custado pelo menos dez milhões de francos. Com
os aperfeiçoamentos técnicos que os independentes de Nova York nos deixam
entrever como iminentes, a câmera-caneta ( câmera stylo) sai do domínio da ficção
estética para o das realidades bem concretas. Mas o essencial consiste no fato
de que esta liberação no domínio das “estruturas”, para empregar a linguagem cara a Jean Domarchi, venha
acompanhada por um questionamento total das “superestruturas”, tal como
definidas por Cesare Zavattini e Paddy Chayefsky. O realismo triunfa
incondicionalmente- não mais em intenções, mas nos atos. O cotidiano atinge uma
espécie de objetividade superior, sem deformação masoquista; a câmera concerne
ao homem desnudado. O estilo da TV e a implacável ascese formal de Hanoun são
os responsáveis.
Da televisão, o filme absorve o contato imediato, a visão
microscópica, o sentimento que afeta cada espectador de estar envolvido no
drama. Depois de Welles, aplaudamos a pequena tela, que recria a intimidade
romanesca indispensável a este retrato diante do espelho. E sobretudo Marcel
Hanoun adota um partis pris moral que pessoalmente não aprovo, mas que ele sabe
admiravelmente levar às últimas conseqüências: sua história nos é contada com o
tom lancinante e o distanciamento absurdo que fizeram a reputação do Estrangeiro de Camus. O famoso
imperfeito do indicativo, transposição literária do tédio, encontra aqui seu
equivalente na monotonia ininterrupta da narrativa, a sensação de errância e de
claustrofobia engendradas pelas imagens admiráveis, a eventual repetição ad
absurdum do movimento ( exemplo: a jovem diante de um muro, anda para a
esquerda, depois volta pela direita), como Welles aliás tinha tentado fazer na
cena do jantar em
Cidadão Kane.
Em resumo: Hanoun aqui tem sucesso em exprimir o que
Antonioni, por excesso de preciosismo e excessiva fidelidade aos seus ídolos
literários, fracassara. Ele reduz o tempo em migalhas, com o afã de restituir o
magma informe da subjetividade.
Louis Marcorelles, Cahiers du Cinéma 95, maio de 1959
Trdução: Luiz Soares Júnior.
Notas:
1. O testamento do doutor Cordelier
2. No original "coupeurs de cheveux en quatre".
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