No último plano de Retorno do filho pródigo, Siracusa,- uma
das defensoras mais inspiradas da utopia de que Ellio Vitorino nos conta o
nascimento, as contradições, e finalmente o fracasso em Mulheres de Messine-
está nos estertores de sua vontade. Ela sai do quarto onde acabara de fazer uma
análise desencorajadora da situação com Ventura- também ele um dos
participantes mais obstinados da vila autônoma que alguns Operários e
camponeses haviam construído nos dias seguintes à Segunda guerra mundial-, e,
sem forças, senta-se no limiar de uma casa. Ela olha o mundo diante de si, no
vazio da paisagem, toma a pose da Derellità de Sandro Boticelli e, enquanto uma
lenta panorâmica reenquadra a parte baixa de seu corpo, Siracusa deixa,
cansada, descair seu braço ao longo do corpo. A personagem parece se entregar
ao abandono, mas num último gesto de revolta mantém o punho esquerdo fechado.
O filme de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet encerra-se
com este último signo de resistência, centrado sobre esta obstinação do
desespero. Eles não renunciam. No momento em que as guerras contra os povos
continuam a se infiltrar, ou a se imiscuir- uma vez que as demonstrações de
força que seus instigadores julgam necessárias não são suficientes para forçar
o adversário a se entregar sem combate-, em um cinema que ameaça “de uma outra
maneira” a potência cada vez mais esmagadora da indústria, uma última linha de
resistência se traça. Eles estão entre os últimos a não ceder, a empreender uma
última batalha com os meios irrisórios mas tão bem utilizados que ainda se
mostram eficazes, a encadear filme sobre filme para lançar os contra-ataques do
desencantamento, para contra-atacar golpe sobre golpe aos Francis Ford Coppola
e aos fabricantes de Táxis da vida – em uma guerra sobre a qual a maioria
aposta, sobretudo os agressores, que está ganha de antemão: O Retorno do filho
pródigo, e depois Humilhados- um depois do outro, um no outro, retém os
discursos e as peripécias desta batalha.
Em O Retorno, a coalizão é completa. Todos os invasores implicados
no ataque. Na Itália de depois da Segunda guerra, não são apenas os defensores
da propriedade, como Carlo, que detalha as leis do cadastro e explica que não
há terra sem proprietário, mas também os ‘caçadores”, armados de fuzil e
adornados com lenços vermelhos, que explicam amical e doutamente aos operários
e aos camponeses que sua autogestão não tem futuro. Eles seguem a linha direta
( e o ‘comunista’ Elio Vitorini a compreendia certamente neste sentido) da
política produtivista stalinista, onde a prioridade era reservada à produção e
onde toda intervenção do povo deveria evitar constituir-se em obstáculo à
prosperidade do mercado, portanto do progresso: “Porque hoje não há nada além
de um único mundo na economia. E quem se isola perde o trem... Vocês podem
continuar? Seus pulmões vão estourar se continuaram.” Fim da História? Fim de
uma “luta de classes” de que o “socialismo
científico” teria, com o ‘fim do comunismo”, apagado a “consciência” ao
abandonar às “religiões” a conduta e os frutos da revolta. Quando um dos heróis
olha reto diante de si, não em direção ao fora de campo mas do lado da visão-
do espectador-, o que ele vê e de quem é o objeto da visão? Ironicamente, o
roteiro se pergunta: “Um juiz? Um investigador? Deus?”
Em O mundo diplomático, Jacques Rancière explica que o ‘romance’
de Elio Vittorini é percorrido por uma “tensão” que Straub e Huillet filmam, e
que “poderia se resumir em dois nomes, Bertold Brecht e Friedrich Hölderlin”, o
diretor do rigor dialético e o poeta que “esteve entre os primeiros a conceber
esta revolução das formas do mundo sensível de que o materialismo marxista
retomou a idéia à sua maneira”. A voz e os personagens se fundem à natureza. Eles
seguem caminhos que não levam a lugar nenhum. No começo da segunda parte do
Retorno, três planos filmam os dois protagonistas, Cataldo e Toma, que compartilham
suas inquietudes, e, a cada vez, a câmera permanece, depois de sua saída do
campo, fixada mais e mais longamente sobre um atalho cujo vazio é submergido
pela abundância da floresta. As árvores e a verdura onde os “atores” de
Operários e camponeses liam a carta de sua história explodiu. O campo
apossou-se do campo; ele o recobriu para o levantar da cortina do último ato, a
hora do julgamento e do desenlace.
O texto da conferência que deu Jean-Luc-Nancy na Escola
nacional da paisagem, texto que acaba de publicar em No fundo das imagens , é
de agora em diante uma referência inevitável para quem deseja falar da
paisagem,em pintura como em cinema. Para além de todos os ‘desprezos’ do
nacionalismo, do patriotismo , ou mesmo de toda ‘comunidade’, “ não se torna
menos claro... que a nação ( le pays) e o povo remetem-se um ao outro. Talvez o
povo seja a nação que fala, e talvez o rincão ( le pays) seja a língua, quando
é deposta no domínio do fora de sentido”. E também, mais diante: “O camponês é
aquele cuja ocupação é o rincão. Ele o ocupa e se ocupa, e é ocupado por ele:
ou seja, ele o toma sobre si e é tomado por ele”. Aqui, é antes de tudo uma
questão de vozes. Escandidas e próximas do recitativo, elas ressoam. Perdem-se
em sua ressonância. Confundem-se com seu eco. Os “pagãos” falam a um deus que
não lhes ouve. Quer se trate do cenário da floresta ou, ao final, do quarto, as
vozes contam menos uma história que a acentuam, dando-lhe seu ritmo e peso. As
palavras se infiltram e rebrotam entre os troncos e as folhas. Quando um
movimento de câmera, às vezes, passa de um interlocutor para o outro ou quando
a encenação passa do campo ao contracampo, nas soberbas falsas tintas de Renato
Berta, é para se colocarem à“altura das vozes”.
A “humilhação”, para os heróis
que Vitorini inventou e que os Straub filmam, consiste em ser enxotado de sua
paisagem e de seu trabalho, de ser posto no desemprego porque seu rendimento é
insuficiente. Eles são colocados na porta do Paraíso. Não sabem mais onde pôr o
pé. O Retorno... retoma um tema recorrente do western que é o fechamento, a divisão das terras, as
barreiras que seqüestram a extensão à liberdade...é, por exemplo, o tema de Man
whitout a star), de King Vidor. Como o Tales do Teeteto, os camponeses e os
operários são tomados pela aêtheia,
pela desterritorizalização, e tombam sob sua força. O Retorno... é o filme
desta queda, deste abandono e deste sobressalto que assinalam os braços que
descaem e o punho fechado. A música é de Edgar Varèse, esta Arcana cuja coda
foi composta em 1927 e só foi acabada alguns anos antes de sua morte, trinta anos
depois. O film se abre sempre sobre um outro fim. Ele não se satisfaz jamais
com seu acabamento. Esta última resolução ecoa, em Jean-Marie Straub, ao
curta-metragem realizado em 1972, em plena guerra do Viêt Nam, quando já
decolavam os inquebrantáveis B52, sobre a Música
de acompanhamento para uma cena de filme de Arnold Schönberg, e cujo
sub-título era Perigo ameaçador, medo, catástrofe. Nos extremos do desastre
resta no entanto, Friedrich Hölderlin ainda, o início do Patmos: “Muito
próximo/ e difícil de captar, o deus!/ Mas no lugar do perigo cresce/ também
aquilo que salvará”.
Louis Seguin, Quinzena literária, abril 2003.
Tradução: Luiz Soares Júnior.
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