Se é estranho que no fim de sua carreira um artista conceba
retomar uma obra de juventude, ao menos esperamos vê-lo lançar sobre esta um
olhar enriquecido pela longa experiência.
Assim, à primeira vista, são reminiscências de temas inscritos e desenvolvidos
em outros tempos que nos tocam neste Túmulo indiano, com uma precisão às vezes
espantosa. Subterrâneos, uma multidão de figurantes mascarados de autômatos,
danças lascivas, uma atriz com a máscara imóvel e rija, e cujas pálpebras
entrefechadas acusam a fixidez do olhar; vocês reconheceram Metrópolis. Um
oriente de fantasia, senão de pacotilha, o combate de um homem e de um tigre
meio-homem: vocês devem ter reconhecido a terceira parte das Três luzes, como
reconhecerão Ministry of fear ou Woman in the window nestes corredores de
mármores luzidios e glaciais, e You only live once neste reflexo de um casal às
bordas de um lago, cuja água subitamente é agitada. Mas o que há de espantoso se,
solicitado por um roteiro velho de quarenta anos e pelo contrato com os
estúdios alemães após um longo exílio, Fritz Lang tenha assim a ocasião de
afirmar a continuidade de sua obra e de marcar, com estas referências, que ele
jamais desejou nada negar?
Falaremos portanto de retorno às fontes? Se sob mais que uma
relação seu último filme retoma contato com o período alemão, convenhamos que
há muito tempo Lang nos acostumou a este tipo de “balanço” onde a unidade não
se concebe sem a diversidade. Balanço presente até na construção deste filme
sistematicamente composto ( e um tanto esticado em duas partes por necessidade
de distribuição): dois combates entre homem e tigre, duas cenas de dança no
templo, duas viagens aos subterrâneos, dois encontros com os leprosos. Mas
balanço também entre duas tendências deste metteur en scène, senão
contraditórias pelo menos contrárias e se exprimindo uma por intermédio da
outra: uma tendência à profusão, à extravagância, ao delírio; outra à nudez do
sistema, ao rigor. E estas duas tendências, longe de se excluir mutuamente,
apoiam-se umas sobre as outras. Seria fácil ver que a ordem rigorosa de
certos filmes Woman in the window, Beyond a reasonable doubt, se nos
dispusermos a descrevê-las, repousam facilmente sobre o paradoxo. E que delírio
a inteligência pode se vangloriar de abolir quando a própria inteligência
emprega todos os recursos disponíveis a organizar o delírio? Semelhante
sistema, com o que ele comporta evidentemente de recusa, não deixa às vezes de
ser fortemente sedutor, e no entanto suas próprias recusas o distanciam do
real, ou mesmo o impedem de aderir a este.
Estética e moralmente, toda a obra de Fritz Lang vai ser o
testemunho da empresa desenfreada de um artista para criar um mundo outro, um
mundo que tenha com este aqui a menor semelhança possível. O tigre de Echnapur?
Antes o tigre de Argol, e este se morde a cauda. Por que, com efeito, a Índia
senão por estes palácios fabulosos, estes faustos e estes charlatões, se não
for por um expatriação onde tudo se torna possível? Mas então, por que no
século 20 empreender uma imagem às Índias e nos restituir a imagem que dela
tínhamos no século XVII, em espírito pelo menos? Não sou seguramente o único
para o qual a Índia é qualquer coisa de muito real, que engloba por exemplo o
que viram Renoir e Rossellini, e sem dúvida muitas coisas mais. O real, vocês
vão me responder, não interessa Fritz Lang. Eu concedo, e também que um olhar
obstinado sobre as coisas só se justifica assim pela ambição de atravessar
as aparências. Assim, é sempre partindo das coisas que a ação pode se vangloriar
de nos fazer ver outras: o resto não é nada mais que uma bela desordem de
imagens. Ao fazer da Índia um pretexto, o metter em scène, encerrou-se nesta
via da abstração que consiste em toda reconstrução do real.
Em revanche, abre-se a via da fantasia e da profusão. Aqui,
ritos e cerimônias são inventados para serem descritos, da mesma forma que as
bibliografias de Lovecraft ou os labirintos de Borges, assim como estes
cenários, em seu sentido mais amplo, favorizam o desabrochar de um cinema mais
devotado à presença corporal do ator do que a valorização de gestos singulares
que nos proporcionavam Scarlet street ou Beyond a reasonable doubt. E sem
dúvida podemos preferir menos este a este outro, e este outro menos a àquele, que sabe fazer aflorar sobre o rosto a alma oculta. A alma e a dança se excluem
mutuamente- ou antes: o que é portanto a dança, e o que podemos dizer dos
passos? O Túmulo indiano nos oferece o exemplo de um cinema em liberdade, mas
de uma liberdade sem outro objeto senão o puro espetáculo,: puro, como se diz
puro acaso ou pura perda- ou seja: para simplesmente constatar um fato, e não
levá-lo a argumentar.
Philippe Demonsablon, Cahiers Du cinéma, 98, agosto de 1959
Tradução: Luiz Soares Júnior
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