O
“quatro de espadas”.
Para chegar a
esta definição do cinema e da mise nm
scène, Mourlet só tinha por arma a acuidade de sua percepção dos filmes -
um pouco como em Kant a arte se depreende de considerações sobre a
sensibilidade quase desprovidas de empirismo. Quando ele não escrevia no Cahiers, Mourlet com freqüência
publicava artigos na revista Présence du
Cinéma; esta revista (1959-1967) era intimamente ligada a uma sala de
cinema parisiense, perto dos Campos Elísios, o Mac-Mahon, dirigida por Pierre
Rissient, e cuja programação se queria exemplar. No hall, éramos acolhidos por
retratos gigantes de quatro cineastas julgados como os melhores pela corrente
crítica “mac-mahoniana”: Fritz Lang, Joseph Losey, Otto Preminger, Raoul Walsh.
Esta lista, à parte alguns acréscimos ocasionais (de Vittorio Cottaffavi a Hugo
Fregonese), é também a lista de Mourlet. São aos seus olhos os raríssimos
autores de filmes onde se pode encontrar a verdadeira arte da mise en scène.
A escolha é
surpreendente, sob vários pontos de vista, e em primeiro lugar por conjugar
dois cineastas puros, Fritz Lang e Walsh, e dois homens vindos do teatro, Losey
e Preminger. Este último é mesmo um homem de teatro antes de tudo: sua
concepção da mise en scène, embora
elegante e muito discreta, é muito intervencionista e distante de toda
transparência. Preminger é antes de tudo o homem da fluidez, e seu instrumento
mais importante é o movimento de câmera. Uma cena, para ele, é antes de tudo
uma continuidade: se ele pode filmá-la em plano único, ele o fará, pronto a
determinar as trajetórias dos atores de maneira a torná-la possível; se ele
deve “découpá-la”, ele vai preferir raccords
no movimento de preferência a outros; o campo e o contracampo não lhe são
estranhos, mas unicamente se não os pode evitar, e sempre como uma forma neutra
que não possui nenhuma expressividade em si mesma. O resultado, sensível em
quaisquer dos filmes da maturidade de Preminger, é uma forte sensação de
“direção”, não no sentido da “direção de atores” (Preminger tendo pelo
contrário a reputação de dar muito poucas referências aos atores), mas antes no
sentido hitchcockiano de “direção dos espectadores”. Acompanhando, flexível mas
exatamente, os deslocamentos dos personagens, e sempre guardando um certo grau
de liberdade em relação a estes - e quase que arbitrário -, a câmera dirige
minha atenção, volens nolens, de um
gesto a outro, de um olhar a outro, de um lugar a outro.
Peguemos em Alma em Pânico (1952) a pequena cena de
“transição” onde Diana, a jovem heroína assassina presa de remorsos, vem
encontrar seu advogado, Barret, para registrar sua declaração de culpa. Quando
chega ao escritório, Diana encontra uma secretária, que “pisca o olho” para seu
patrão, e diz que ele não está lá; decepcionada, Diana se senta, mas neste
momento mesmo a porta se abre e Barret entra. Ele passa com a jovem para o
escritório adjacente, por uma outra
porta. Todo este jogo marca-nos em primeiro lugar pela continuidade; Diana
acabou de sentar; Barret, supostamente ausente, chega; eles partem por uma
outra porta, acompanhados por uma leve panorâmica, e a entrada na peça ao lado
se faz por meio de um raccord sobre a
porta, um pouco como nos primeiros Griffith. Fica-se um momento do mesmo lado
da peça, face às grandes baías envidraçadas e suas cortinas entreabertas, cuja
sombra estria os muros, até o momento onde a moça anuncia o fito de sua visita.
O cineasta corta, então, para nos apresentá-la em plano americano, segundo um
ângulo que não corresponde nem ao olhar frontal (interdito pela convenção), nem
pelo olhar de lado que indica um campo-contracampo, mas por um “olhar intersticial”
(entre-deux), da ordem do que, em um
contexto muito distinto, vai se chamar um olhar “suturante” (Oudart, La suture,
Cahiers 211).
Volta-se dali
para o primeiro ponto de vista, que é agora flexível e incessantemente
modificado por movimentos à la dolly.
Depois, um verdadeiro contracampo (ligeiramente assimétrico: em plano mais
aproximado), de onde se sai por um plano sobre Barret, que reintroduz o
movimento. A cena, sempre tratada em movimentos leves, quase aéreos, culmina
depois que, confrontada a si mesma pela única vez em um plano único (portanto,
sobre a tela, lado a lado), o advogado felicita sua cliente por ter confessado
seu crime “off her conscience”. Como
se esta alusão à consciência tivesse modificado a natureza da cena, um novo
elemento, aliás verossímil, é introduzido na mise en scène: a sombra dos protagonistas. A de Barret primeiro,
que antecipa e redobra o gesto paternal e protetor de seu braço sobre os ombros
de Diana; depois a da jovem, que a precede e a intensifica ostensivamente,
quando ela abandona a peça de forma proposital.
Em tudo isto, a
maior flexibilidade e, se quiserem, a mais absoluta das transparências da mise en scène são observadas. Mas tudo é
,sem cessar, totalmente significante: os reenquadramentos que acompanham um dos
personagens de preferência a outro (nem sempre aquele que fala); o movimento
incessante que mobiliza nossa atenção, levando-a a concentrar-se sobre objetos
sem cessar variados e impedindo-a de se fixar (ou seja: ao mesmo tempo nos
impedindo de nos entediar e ao mesmo tempo de nos tornarmos críticos); os
planos fixos, que se destacam fortemente neste contexto (sobretudo o que li
como sendo “suturante”); o papel mudo do cenário, que se torna bastante
tagarela com a aparição das sombras. No total, uma mise en scène expressiva se quiserem - em sua imensa neutralidade
aparente. Estamos longe dos corpos que se auto-exprimem e da retenção do
cineasta: Preminger nos mostra uma cena, escolhendo a cada instante o que ele
nos mostra, o ângulo sob o qual a devemos ver, e sem se privar de jogar com
todas as conotações de um cenário verossímil, mas sabiamente iluminado.
Poder-se-ia
dizer a mesma coisa, ainda mais claramente (e quase teoricamente) sobre um
filme reputado “menor”, e onde a teatralidade se exibe, Joanna D’arc (1957). Trata-se do fim do primeiro ato, com a chegada
de Joanna diante de Orléans; ela encontra Jean Dunois, que comanda o exército
francês, e a quem ela vai comunicar o seu ardor no combate. O encontro é um
pedaço de mise en scène
particularmente demonstrativo, em dois planos, um e outro longos e sinuosos. O
primeiro nos leva - com grua - de uma torre de espia, de onde desce um soldado,
até a tenda do estado-maior, onde ele se dirige para fazer um registro: o vento
do Oeste não sopra mais (o que os impede de atravessar o Loire para atacar);
Dunois constata sua impotência e, questionado por seus tenentes sobre eventuais
reforços, responde que lhe mandam uma “menina” e que ela vai demorar sem dúvida
uma semana para chegar; durante este pequeno discurso, o rumor da tenda do
acampamento se infla, atirando a atenção do capitão, que olha para fora. Fazendo
um raccord sobre seu olhar (em um
campo/contracampo bem solto), segundo plano começa pela chegada da Donzela (La Pucelle), ao fundo, seguida - sempre
à grua -, enquanto ela se aproxima, desce do cavalo, vai ao encontro de Dunois,
saído da tenda para acolhê-la, depois o precede para voltar até a tenda e
confabular com os chefes militares. Um objetivo dramático simples e preciso: os
dois protagonistas devem se encontrar sob a tensa que representa o lugar da
tomada de posição. Um meio complexo, mas totalmente naturalizado, pode permitir
este encontro: dois planos longos de grua, ambos demandando uma situação
meticulosa no espaço e advindo no horizonte da mais técnica das mises en scène.
O estilo de
Preminger é certamente dos mais perfeitos que se possa imaginar: ele designa, a
cada instante, o elemento importante da cena, e lhe sugere o sentido sem precisar
sublinhá-lo. Compreende-se que este estilo tenha podido fascinar; é difícil,
com efeito, ser mais clássico: respeito total das convenções, culto da
transparência, limpidez do discurso, cujo sentido não é nunca dissimilado,
natural o mais possível na interpretação do ator. Preminger é certamente, de
todos os cineastas hollywoodianos da era “clássica”, aquele que melhor soube
conciliar estas duas exigências contraditórias: fazer sentido, e não mostrá-lo.
Hitchcock ao lado dele parece exagerado, Ford é mais sentimental, Hawks mais
rudimentar e menos variado, e só podemos aprovar
o gosto de Mourlet. Acontece que este discurso límpido continua sendo bem um
discurso, e que um filme de Preminger, antes de nos deixar admirar os corpos
dos atores e atrizes, nos impõe seu ponto de vista sobre os eventos - e, com
plano longo ou não, cinemascópio ou não, é bem uma mise (colocação) em cena, no sentido técnico que Mourlet
negligencia ou detesta. Para dizê-lo com Jacques Rivette:
“Viva
Preminger, que sabe que ele não é nem um pensador, nem um reformador do mundo,
mas simplesmente um perfeito metteur en
scène, que neste termo existe cena -
e por que o teatro seria para nós uma matéria não cinematográfica?
A mise en scène de Friz Lang é de uma
natureza muito diferente. Tão controlada quanto a de Preminger, ela não repousa
sobre uma intervenção constante da câmera e do olhar do cineasta, mas pelo
contrário, sobre sua discrição total. Isto não escapou a Mourlet:
“A mise en place dos atores e dos objetos,
seus deslocamentos no interior do quadro devem tudo exprimir, como vemos na perfeição
suprema dos dois últimos filmes de Fritz lang, O Tigre de Bengala e o Sepulcro Indiano.”
Perfeição: a
apreciação é audaciosa, mas dá o tom. Não era particularmente difícil defender
Preminger, Walsh ou mesmo Losey, cineastas nos quais a crítica em geral havia
identificado no mínimo como finos técnicos (Walsh), e na melhor apreciação como
autores (os dois outros).
Friz Lang, em
revanche, era com freqüência visto à época como um antigo grande cineasta que
havia se dado mal; para seus detratores, era o autor de M (1931) e dos Mabuse, mas depois de seu exílio só fizera alguns
filmes de gênero ordinários, com o estilo cada vez mais rígido e acadêmico -
sobretudo seus últimos, como Suplício de
Uma Alma. O díptico indiano foi literalmente assassinado pela crítica
parisiense, que nele percebeu apenas o inexplicável remake de um serial excessivamente ridículo (já levado às telas por
Joe May em 1921, por Richard Eichberg em 1938).
Situado numa Índia
de fantasia e de convenção - apesar de vinte e sete dias de filmagem (de vinte
e nove ao total) em autênticos palácios -, a história em primeiro lugar é
decepcionante, com efeito, por seu lado folhetinesco, suas reviravoltas
inverossímeis, seus sentimentos simplificados.
Os Cahiers du cinéma, grandes
defensores do Lang americano, não foram entusiastas (e nenhum dos “tenores” da
revista escreveu sobre o filme). Um crítico estima que “ele trata com desprezo
e piada uma história desprezível e idiota”(Louis Marcorelles); para um outro,
“ao fazer da Índia um pretexto, o diretor fechou-se o caminho desta abstração
que constitui toda reconstrução do real” (Phillippe Demonsablon). É preciso
esperar por um número largamente consagrado a Fritz Lang e uma nova crítica (Fereydoun
Hoveyda, As Índias fabulosas), para
encontrar um tom diferente: o filme de Lang é visto como’importante sob mais de
um ponto de vista’, por sua revisão da obra anterior de Lang e pela permanência
de um estilo depurado e simplificado que é sua marca. Por exemplo, “o suspense
em Lang se manifesta nos olhos, e não, como em Hitchcock, no exterior dos
personagens. No final de um plano, a direção do olhar de Debra Paget ou de Paul
Hubshmid nos anuncia sempre que algo vai acontecer.(...) os olhos substituem,
por assim dizer, a montagem paralela” (Hoveyda). Michel Mourlet, que propõe no
mesmo número dos Cahiers du cinéma
uma Trajetória de Fritz Lang, toma a sério esta história fantasista, e nela lê,
para além da anedota, “o sentido do cósmico, (...) encarnado até o símbolo pelo
gesto alucinado do fugitivo descarregando sua arma contra o sol” e “trágico no
estado puro: não uma derrisória crítica dos homens, mas uma descrição da
fatalidade”.
Estas fórmulas
de Mourlet são sem ambigüidade, mas permanecem vagas, e não propõem nenhuma
descrição da mise en scène de Lang. Na
verdade, esta mise en scène depurada
é difícil em caracterizar de maneira geral, e nenhum crítico jamais conseguiu
senão um a priori sobre a qualidade
de autor de Lang. (Parece que nunca foi ultrapassada, sobre estes filmes, a
apreciação excelente mas lapidar de Helmut Färber, em um artigo para o
Süddeustsche Zeitung de novembro de 1968: “O grande Fritz Lang rodou estes
filmes há dez anos; então, julgaram-nos desagradáveis e ridículos. (...) Se os
examinarmos agora, como obras modernas difíceis que são, começará a observar
outra coisa que não o conteúdo ideológico e a psicologias inexistente de uma
história de quatro vinténs: a claridade clássica de uma construção, a
estilização das figuras e das situações, a significação dos olhares, a
continuidade do espaço, a nostalgia, algo de paralisante, uma abstração quase
doentia” (Citado por Lotte Eisner).
O filme retém
soluções límpidas, que privilegiam o centro da imagem e, com freqüência, a
simetria (em particular em todas as cenas de parada ou cerimônia, filmadas em
arranjos frontais que fazem pensar muito nas soluções outrora encontradas
nos Nibelungos). Os movimentos de câmera
são muito raros, de frágil amplidão, jamais demonstrativos nem insistentes e
puramente funcionais (um reenquadramento para seguir um personagem que sai do
campo, por exemplo). Os espaços são vastos, e o filme acentua a sensação de um
vazio que se desprende deles pelo uso de uma focal muito curta, e ao deixar os
deslocamentos dos personagens se desenrolarem na profundidade. A interpretação
dos atores - certamente a mais decepcionante das escolhas de Lang - é
perfeitamente coerente com estes princípios: com exceção de algumas cenas de
ação (e mesmo aí), os corpos são assimilados a estátuas, a uma presença tanto
mais impressionante pelo fato de sua imobilidade ser animada por um jogo
extraordinariamente intenso de olhares.
Parece muito
difícil, à primeira vista, casar as fórmulas exaltadas de Mourlet sobre os
corpos impregnados de sublime do verdadeiro cinema e este uso dos corpos dos
atores como super-marionetes. A coreografia da dança diante da estátua de Kali
aparece como uma caricatura de dança indiana, e Debra Paget - com o corpo
esplendidamente escultural- não nos impressiona por nenhum brilho em
particular; quanto a Paul Hubshmid, sua carcaça alta e longos braços parecem
antes atrapalhá-lo do que qualquer outra coisa. Mas Lang não trabalhou um
sublime que adviria do carisma dos atores; contrariamente ao que julga a
crítica, ele levou muito a sério este roteiro, e sua Índia de pacotilha, onde
todos falam alemão, dá-nos uma sensação bem forte do abismo entre as culturas;
os Alemães são mais rígidos por natureza, diante de seres que não tem medo dos
grandes sentimentos - o amor, a honra, o ódio, a fé - e que os encarnam sem
recuo ou ironia. O fakir é talvez um
charlatão (como o sugere de forma complacente o irmão do marajá), mas executa
de forma conveniente a criada, com sangue-frio; o marajá é um ser por inteiro,
que não transige com seu desejo, e que acaba por canalizar sua paixão na religião;
a dançarina crê com simplicidade no poder da deusa que invoca; esta pureza dos
sentimentos só podia ser bem traduzida pela conjunção entre a imobilidade dos
personagens e a febre que ardia em seus olhares.
É natural que
tudo isto tenha impressionado um defensor do classicismo. A rarefação do gesto,
particularmente, só pode dar uma força ainda maior aos gestos efetivamente
realizados - por exemplo, o salto de Hubschmid por cima da mesa do banquete,
quando compreende que a criada fora assassinada no baú do fakir, ou mesmo o único golpe de lança por meio do qual, em um
golpe súbito, desfaz-se do tigre que salta sobre ele. Esta mise en scène estática é, portanto, de fato, extraordinariamente
ritmada - pelos olhares, pelos deslocamentos nas arquiteturas angustiantes, por
bruscos actings - e compreende-se
facilmente o gosto de Mourlet por este cinema de um tônus, uma nobreza e, se
quisermos usar o termo, de uma “perfeição” com efeito raramente igualadas. Mesmo
o tratamento da metáfora neste filme, pela naturalidade com que é feito, não
contraria o ideal de Mourlet; a longa cena da chegada da dançarina no palácio,
por exemplo, onde ela se compara a um pássaro em uma gaiola dourada, poderia
ser considerada puro expressionismo, mas ao fazer a comparação passar expressamente
pelo diálogo, Lang se poupa toda tentação de sublinhá-lo na imagem.
Como a de Preminger, a mise en scène de Lang é monumental. Cada detalhe resulta de uma
decisão consciente, e nada é deixado ao acaso (isto é particularmente verdade
no caso do Tigre de Bengala e no O Sepulcro Indiano, e sem dúvida é esta
a razão pela qual estes filmes tiveram tantos detratores: pode-se sentir como
sufocante este domínio incessante). Losey e Walsh possuem “écritures” mais flexíveis, seus planos não são visivelmente
“assinados” como os de Lang (que identificamos imediatamente). Eles representam
a outra face do classicismo: não mais exatamente o domínio, mas a neutralidade
do estilo, a transparência, a arte de se exprimir sem idiossincrasias; de
Losey, Mourlet louva justamente a capacidade de variar seus modos de filmagem
em função do tema e a abordar cada roteiro sem preconceitos nem fórmulas
prévias. Tornou-se difícil, depois de seus respectivos finais de carreira, ter
hoje por Preminger, e, sobretudo por Losey, a mesma consideração que em 1960; a
“quadra de ases” tornou-se difícil de
apreciar. Constitui todo o valor do manifesto de Mourlet - ter apreendido esta
efêmera conjunção de valores, mesmo se esta não constituísse uma demonstração de
seus teoremas estéticos.
Dificuldades da noção de ação e de
presença.
O manifesto
passional de Mourlet coloca, portanto, vários problemas de aplicação. Apesar de
suas precauções oratórias, permanece difícil dissociar os dois sentidos da
expressão “mise en scène”: seu
sentido concreto, limitado, que provém da experiência do teatro, mesmo se a
prática visa distanciar-se deste; e seu sentido ideal, de vasto alcance teórico,
mas que possui em seu “ativo” poucas concretizações reais, sempre discutíveis.
Ao longo de seus textos, escritos no momento em que Hollywood, longe de se
encaminhar para o desenvolvimento e consolidação de um classicismo, inicia sua
deriva maneirista e pós-moderna, ele refere-se conscientemente a um número de
exemplos reduzidíssimo:
“O acesso a
esta mise en scène de vertigens e
cintilações que se abre a uma liturgia onde a contemplação de uma ordem cósmica
é reencontrada pode explicar porque oitenta por cento da produção
cinematográfica nos parece ser inexistentes, miseráveis e sem relação com o
cinema”.
Igualmente, a
natureza inefável das características da “verdadeira” mise en scène torna quase impossível convencer alguém da
pertinência das escolhas de Mourlet, a
fortiori de sua verdade:
“Condenado a demonstrar o indemonstrável, o
crítico só pode limitar-se a consolidar os a prioris de seus leitores ou lhes
imprimir sem resistência sua própria marca”.
A tomada de
posição de Mourlet é uma daquelas que nesta época desempenharam, para a
definição de uma estética do cinema considerada “pura”, o papel da realidade e
sua “evidência” contra os da imagem e sua expressividade, favorizadas pela
geração crítica anterior à guerra. Sua
oposição, mais instintiva que racional, à “pintura”, acompanha-se de uma certa
cegueira: ao defender a “transparência” do cinema, Mourlet ignora soberbamente
todas as tentativas, neste sentido, da arte de pintar (particularmente em torno
de 1800, um pouco antes da invenção da fotografia); ao mesmo tempo, e de forma
simétrica, André Bazin , ao falar da “janela aberta sobre o mundo”, deformava
gravemente a frase do pintor e teórico do Renascimento, Alberti, que fala
janela aberta sobre a istoria, sobre
a ficção. Tanto em Bazin quanto em Mourlet e seus contemporâneos há uma
pressuposição de “realismo” da própria realidade que não é jamais questionada
realmente, e que os leva a certas aporias.
O momento chave
é a defesa da “evidência” do mundo contra a vontade de potência do artista
criador. “Evidência” é um termo ao mesmo tempo claro e equívoco: claro na sua
significação (é evidente aquilo que se impõe à simples apreensão, sensorial ou
intelectual, sem que seja necessário argumentar), mas complexo na sua colocação
em prática. A “evidência do mundo” pode designar ao menos duas coisas, muito
diferentes e com conseqüências quase opostas: seja a neutralidade do olhar
dirigido à arte, que deixa o mundo transparecer tal e qual é; ou a capacidade
do mundo a falar de si mesmo via suas
aparências, arriscando-se a nada dizer, ou nada de inteligível. A fórmula
remete, portanto, seja à qualificação da arte - esta é a escolha de Mourlet -,
seja a uma qualidade do mundo, e esta é a escolha de Bazin com seu tema da
“ambigüidade imanente ao real”; quanto à escola dos Cahiers, vai hesitar longamente entre ambos, como o testemunha
Jacques Rivette - celebrante da evidência da arte em 1953 e do mundo em 1955.
A idéia de que
o mundo comunique-se ele mesmo tinha sido introduzida no espírito do tempo pela
fenomenologia, em suas diversas variantes. Encontramo-la, sob uma forma
moderada e racional, em Maurice Merleau-Ponty e, para nos limitarmos ao cinema,
na conferência que ele pronuncia no IDHEC em 13 de março de 1945. Na linha
direta da Fenomenologia da percepção, a “nova psicologia” de que fala o
filósofo “nos faz ver no homem, não um entendimento que constrói o mundo, mas
um ser que aí é jogado e que lhe é ligado por uma relação natural”. O cinema é
a arte mais adequada a dar conta desta ligação natural, pois “um filme
significa como (...) uma coisa significa: um e outro não falam a um
entendimento separado, mas se dirigem a nosso poder de decifrar tacitamente o
mundo ou os homens e de coexistir com eles”. Dito de outra forma, o cinema é
uma arte espontaneamente “fenomenológica”, já que dá a ver ao invés de
explicar. Os meios formais do cinema, a partir daí, devem ser concebidos como
essencialmente transparentes, e se existe alguma coisa como uma “linguagem”
cinematográfica, a mise en scène consiste
em seu manejo espontâneo (esta linguagem não se aprende, ela se pratica). Encontramos
a idéia sobe uma forma mais radical em Roger Munier, com o tema da “cosmofania”.
Munier é heideggeriano, e para ele, em consequência, a evidência do mundo é ao
mesmo tempo manifestação e recusa da manifestação: “é preciso compreendê-la em
seu sentido de auto-manifestação, onde aquilo que se manifesta, ao guardar a
iniciativa do desvelamento, ao mesmo tempo se recusa e se fecha”. O mundo, na
imagem transparente - aquela que busca se apagar tanto quanto possível -, se
manifesta, mas como segredo: ele proclama que nada diz e não “quer” dizer nada.
Mourlet é
próximo destes dois filósofos (que ele não cita e verossimilmente não deve ter
lido), mas de forma desigual. Para ele, não há segredo na manifestação do
mundo: somos calcados naquilo que se manifesta, somos em plena ação, e quase naquilo
que Gilles Deleuze vai chamar de imagem-ação. Seria muito fácil casar estas
proposições com as de Merleau-Ponty (que Deleuze cita a propósito da
imagem-ação):
“A emoção não é
um fato psicológico e interno, mas uma variação de nossas relações com o Outro
e com o mundo, relações que podem ser legíveis em nossa atitude corporal”, e,
sobretudo: “o Outro me é dado com evidência como um comportamento”.
Uma emoção
legível nas atitudes corporais, um sujeito ao qual só tenho acesso na evidência
de seu comportamento: isto é próximo das considerações de Mourlet sobre o ator,
sobre o cinema como seqüência de ações ideais, sobre a fascinação que elas
engendram.
“Fascinação”: o
termo é pesado. Podemos tomá-lo positivamente, como sinal da eficácia do
cinema, de sua força de convicção, do prazer que ele suscita - e, seguindo
Mourlet, do caráter eticamente elevado deste prazer. Sua estética também é
eufórica, não apenas porque profetiza o advento do cinema classicamente puro,
mas porque assegura que o cinema nos fará bem, nos tornará disponíveis ao
melhor e ao mais puro em nós, nos abre o caminho do Bom ao nos imergir no Belo.
(Eu o sublinho novamente, pois não é evidente que o acesso ao Belo seja
eufórico: não faltam estéticas melancólicas do cinema, que pensam a beleza como
“fatal”, para retomar ainda um termo de Godard). Mas pode-se tomar a fascinação
como um termo negativo. Ainda resta muito latim na palavra para nos lembrar do fascinum, do charme, o malefício, o
enfeitiçamento. É a fonte das diversas críticas da imagem em geral, e
especialmente, no século 20, da imagem fotográfica. A imagem fascina, portanto
ela estaciona o pensamento, bloca a crítica, ou mesmo a consciência: posição
radical de Roger Munier, para quem a fascinação engendrada pela imagem
fotográfica tem por conseqüência um “silêncio da consciência”. Munier, que
retoma em seu viés negativo as teses de Bazin sobre a imagem fotográfica,
censura à imagem por esta não poder, como a pintura, levar-nos a sentir alguma
coisa do aparecer na reprodução das
aparências- e, portanto, de jamais atingirmos a aparição.
Neste terreno,
no entanto, a posição de Mourlet não é tão paradoxal quanto parece. Se a
fascinação exercida pela arte do cinema é positiva, ou mesmo eufórica, é
porque, ao contrário da fotografia, o cinema é capaz de um ato criador como o
da pintura. Aqui ainda existencialista sem o saber, Mourlet funda sua defesa de
certos cineastas na capacidade que estes têm de fazer ver, a ultrapassar o aparecido para aceder realmente ao aparecer. O que decepciona nos últimos filmes
de Lang (e encanta a Mourlet) é precisamente isto: a capacidade de discernir,
sob as aparências mortas (o “aparecido”
de Munier), um permanente aparecer, um dinamismo da presença do mundo. Pois é
definitivamente da presença que aqui se trata, na fascinação assim como na mise en scène (para o espectador e para
o criador). Presença do cinema - no e
pelo cinema. Mas de que presença se
trata? O termo é difícil, um pouco vago. Na história da Filosofia, ele designa
à primeira vista (em Plotino) a união da alma com o Uno (à divindade), sob o
modo da fusão: a presença é um transbordamento do espírito, algo que torna a
razão inoperante e inútil. É neste sentido, mas amainado, que o termo retorna
no início do século 20, nas filosofias do ser: a presença é o sentimento de
ser; aquilo que não podemos de forma alguma conhecer, com efeito, dele podemos
ter a intuição e o sentimento. É disto
que se trata em Mourlet. Nós não poderíamos aspirar a uma compreensão racional
da realidade ou da existência, mas podemos e devemos buscar este sentimento de
presença. Por quê? Pois ele nos une, não à divindade, mas à chama divina no
mundo, a saber, a ação (Nietzsche passou por aí também). De um ponto de vista
conceitual, isto se aparenta sem dúvida a uma estratégia de passe de mágica -
mas esta é bem a tese: o cinema é a arte suprema (e Fritz Lang é seu profeta)
porque este é (o único) capaz de produzir em mim o entusiasmo da presença; ora,
se o cinema me entusiasma, é porque ele me propõe, não anatomias ideais nem a
aparência das coisas, mas a imitação perfeita de ações grandiosas ou sublimes;
“por conseqüência”, em cinema, presença e ação são da mesma natureza
psicológica, e talvez - é a audácia de Mourlet - ontológica.
Não prossigo
com a crítica desta tese - cujas conseqüências, notadamente políticas, seriam
perigosas. Queria apenas assinalar o que daí resulta para a mise en scène. Esta - em seu sentido
concreto, de colocação em um espaço-tempo e da técnica do ator e do cenário -
deve visar os momentos privilegiados onde uma ação se torna presença da ação,
onde um movimento realiza a revelação de uma presença, que não é nem a do ator
nem a do personagem, do cenário, do lugar ou mesmo da criação artística, mas as
inclui e transcende todas, para se tornar presença vital. “Se o acordo entre um
gesto e um espaço é a solução e a conquista de todo problema e de todo desejo,
a mise en scène será uma tensão em
direção deste acordo, ou saída imediata da expressão.” Esta frase, tirada de um
artigo sobre Raoul Walsh, é sem dúvida a que condensa melhor a lição e a crença
de Mourlet: pôr em cena é se esforçar em atingir um acordo autêntico entre a
ação e o mundo - acordo que vai se provar sob o modo transcendente da presença,
esta paralisia da ação pela exacerbação da certeza sensível. Este êxtase, por
meio do qual conhecemos sem pensar (como no êxtase religioso) resolve os
problemas e realiza todo o desejo (ou, na fórmula ambígua escolhida pelo autor,
lega uma solução ao desejo e conquista os problemas...). O cinema clássico é o
cinema da ação: banalidade que Mourlet assenta sobre um fundamento vitalista e
que Deleuze iria, vinte anos mais tarde, retomar com profundidade para
decliná-la (em uma perspectiva vitalista também, embora de forma muito
diferente).
Quando filma Um Punhado de Bravos (Objective, Burma!) em 1945, Walsh não
deseja nada mais que fazer um filme de ação. Os Estados Unidos estão ainda em
guerra contra o Japão, e o filme participa do esforço (ideológico) de guerra ao
glorificar a conquista da Birmânia pelos aliados, pagando o preço de algumas sérias
liberdades tomadas em relação à verdade histórica - tendência endêmica do
cinema yankee. Quase não houve
soldados americanos na Birmânia durante a Segunda guerra mundial, com a exceção
dos “saqueadores” Merril, tão bem filmados por Samuel Fuller em 1962; são os
Ingleses, juntamente a seus aliados e vassalos birmaneses e indianos, que
ganharam esta guerra (o filme de Walsh, visto como mentiroso, foi interdito na
Inglaterra). Mas se brinca com a História, o filme não brinca com a ação, nem
com a imagem-ação. Aventura de um grupo de homens, ele pertence à “grande
forma” (Deleuze) que faz deste grupo o representante real de toda uma nação. O
comando integra-se totalmente a um único homem, em sua identificação ao chefe (Errol
Flynn), mas ele é tão diverso e múltiplo quanto o povo americano - princípio
corrente do pequeno grupo, cujos traços canônicos haviam sido dados por Ford no
final dos anos 30. Muitas vezes, o filme se recentra sobre este grupo e seu
valor de padrão, oferecendo rostos, traços de romanesco interpessoal -, mas ele
funde estes fragmentos de individualização no todo da epopéia (como as origens
étnicas se fundem no melting pot).
O episódio do
paraquedismo é exemplar neste sentido. O filme utiliza seu tempo em expor a
ansiosa espera dos homens, sua angústia à simples idéia de saltar; as
brincadeiras fluem, as relações se esboçam em torno de duas figuras, a do chefe
e a da testemunha (o jornalista mais velho, que evidentemente representa o
espectador médio do filme, aquele que não pode combater diretamente, mas faz o
possível para poder ajudar). Subitamente, o piloto anuncia - com um sinal da
mão aberta - que só lhes restam dez minutos; close sobre ele, depois de sua mão
acionando um comutador. Como se por magia, o filme então modifica seu regime,
passa à ação. Nenhum diálogo agora, nem close, nem indivíduos. O paraquedismo é
um hino mudo (quase: a música de Franz Waxman é muito presente) à liberdade dos
corpos inteiramente tomados na ação. No solo, os homens são ativados, em silêncio,
absolutamente integrados às suas funções, nada mais que gestos funcionais e
perfeitos (se ocultar, enterrar os pára-quedas, obedecer às ordens). Começa
então a longa seqüência na selva, onde os closes, que retornam ocasionalmente (para
sublinhar a presença dos insetos, por exemplo) parecem quase incongruentes, de
tal forma Walsh soube filmar este episódio como uma fusão quase total entre os
homens e a selva. Planos distanciados, alternando com planos “americanos”, em
um ir e vir permanente entre a ação do ponto de vista de cada corpo e a ação do
ponto de vista superior de seu fim e de seu meio essencial: a invisibilidade, o
silêncio, a assimilação ao cenário. As folhas, o solo, a água, os gritos de
pássaros absorvendo os movimentos e restituindo-os a eles mesmos,
intensificados por uma pura carga ativa.
Este episódio é
quase mais impressionante, em sua monotonia deliberada, que a tomada do posto
japonês que lhe segue. Esta é, de maneira mais esperada - embora também
demonstrativa - um festival de gestos, de olhares logo esgotados numa única
visada (lançar uma granada, verificar que os inimigos estão corretamente
massacrados, estimar uma direção ou uma distância), de correlações entre os
movimentos individuais. Nestes três episódios sucessivos - a espera dentro do
avião, a chegada ao solo e a progressão na selva, o ataque -, três registros da
ação muito diferentes, mas um estilo de montagem e de mise en scène muito homogêneo, embora difícil de caracterizar. As
brincadeiras trocadas no avião em campo-contracampo, de forma muito livre, mas
para o resto não há nenhuma prescrição a
priori. Walsh não tem, como Hawks por exemplo, um tipo de enquadramento
preferido; ele parece ao contrário sempre ter buscado “cobrir” um evento, longo
(a progressão na selva) ou breve (a destruição do posto e do radar) por uma
multiplicidade e uma variedade de ângulos e, sobretudo, buscando imprimir um ritmo
próprio a cada momento. (De resto, não é preciso creditar muito a Walsh neste
ponto: é pouco provável que seu contrato com a Warner tenha lhe concedido o final cut.)
Os soldados do
filme não são os heróis wagnerianos ou nietzschianos que a prosa lírica de
Mourlet parece ter discernido sob os personagens de filmes de guerra e de ação.
Uma parte do projeto do filme consiste em assegurar a comunidade americana melted face a um inimigo monocromático,
o Japa, e é preciso para isso a construção de personagens simples, populares,
com preocupações elementares - comer, dormir, voltar para casa. Se o filme é,
no entanto, congruente à visão mourletiana da mise en scène como virtude, é que, à diferença de Ford - em quem às
vezes nos faz pensar -, temos muito pouco em Walsh o sentimento de alguma
consciência sobre si mesmos nos personagens; todo o recuo crítico é esgotado na
personagem do jornalista, que sintomaticamente morre de esgotamento pouco antes
do fim da viagem. Os heróis se consagram à sua missão, à ação. Refleti-la vai
ficar para uma outra vez, um outro cinema.
Transparência,
plano longo, montagem
Dentre os
cineastas preferidos de Mourlet, há ao menos um, Preminger, que recorre com
freqüência ao plano longo. Vimos com o exemplo de Joanna D’arc que a extensão (e a fluidez) do plano lhe permitiam
uma mise em scène flexível, que segue
a ação sem sublinhá-la, mas exprimindo-a plenamente. Sem ser jamais teorizado
enquanto tal, o plano longo, na escola crítica de que falo - de Bazin a Mourlet
-, foi tendenciosamente considerado como mais transparente, mais conforme ao
ideal de realismo expressivo, de mise en
scène como trans-aparição (transparition) da evidência, mais do que
qualquer espécie de montagem. Este é um dos lugares comuns mais tenazes da
teoria do cinema, e em particular da teoria do plano. Em uma compreensão exatamente
oposta, Pasolini vai dizer a mesma coisa uma dezena de anos mais tarde. O plano
longo, que ele chama de forma aproximada (plano seqüência”, é incapaz de
significar, pois consiste na reprodução amorfa da experiência vivida e que, já
que nada sublinha, nada exprime; para Pasolini, o sentido começa com o gesto do
montador, que corta e ajusta: um filme não significa nada enquanto não temos
este gesto de “montagem” definitiva, a morte.; é portanto assim que o plano
longo é como a vida: sem estrutura nem significação.
Bazin era pelo
plano seqüência, Pasolini o condenava - mas a partir de uma mesma
caracterização do plano longo, que segundo eles reproduzia as condições de
nossa relação à realidade. É sobre esta última que eles divergem: para o
cineasta italiano, a realidade não possui nenhum sentido se nós não imprimimos
um por um o gesto de interpretação, em parte arbitrário, sempre pessoal e
arriscado, da ordem da montagem; para o crítico francês, a realidade é
essencialmente, ontologicamente ambígua, e decidir da sua significação é não
apenas arbitrário, mas impossível. Ao poeta agnóstico, que deseja criar o
sentido, se opõe o crítico cristão influenciado pelo “personalismo”, para quem
o único sentido imaginável provém de Deus; portanto, não é nem dominável nem
conhecível em sua profundidade. Michel Mourlet não considera diretamente esta
questão, mas sua utopia da mise en scène
como emanação da energia vital e presença do Belo/Verdadeiro repousa sobre a
refutação do sentido. Para ele, o sentido só pode provir do arbitrário do
artista, de uma “vontade de potência” não quebrada pela consideração do real e
do mundo. Sua posição, próxima da de Pasolini na medida em que faz repousar o
sentido sobre o artista, se distingue por seu idealismo: ao final das contas, o
que é determinante não é a realidade enquanto tal, mas a realidade artística, a
realidade do mundo imaginada pelo artista.
As
conseqüências na concepção da mise en
scène são importantes. André Bazin associou estreitamente a filmagem em
planos longos à utilização da profundidade de campo, a partir de sua análise de
certas cenas de Soberba de Orson
Welles e de Pérfida de William Wyler;
um e outro destas escolhas artísticas de mise
en scène vão num mesmo sentido:
“Trata-se
sempre de integrar ao découpage e à
imagem o máximo de realidade, de tornar total e simultaneamente o cenário e os
atores presentes, de modo que a ação não constitua jamais uma subtração. Mas
este acréscimo constante do evento na imagem visa aqui à neutralidade mais perfeita.
(...) Wyler quer apenas permitir ao espectador 1) tudo ver; 2) escolher “ a seu
turno”. É um ato de lealdade em relação ao espectador.”
E um pouco
adiante, esta famosa conclusão:
“A profundidade
de campo de William Wyler se quer liberal e democrática como a consciência do
espectador americano e os heróis do filme!”
Em resumo, para
Bazin, a mise en scène em plano-seqüência
e profundidade de campo é aquela que corresponde quase idealmente a uma
exigência de realismo concebido como respeito da realidade em sua ambigüidade.
Ao mesmo tempo, ela é também um meio de expressão, paradoxal se assim o
quisermos, em todo caso potente e mais sutil que uma mise en scène analítica, como o demonstra a análise da seqüência da
cozinha em Soberba; a câmera
permanece imóvel durante quase uma bobina inteira, mas é para melhor permitir à
“cena na duração de ser um condensador” que Welles se priva de tocá-la antes
que ela tenha atingido uma voltagem dramática suficiente, que vai estabelecer a
faísca em direção à qual toda a ação é tensionada.
Não foi difícil
à geração seguinte de críticos mostrar que Bazin em grande parte não levara em
consideração o valor realista deste tipo de filmagem. A mise en scène de Welles ou Wyler é tão articulada, arbitrária e
intervencionista que não importa qualquer outra mise en scène analítica, e a explosão histérica de Agnes Moorhead
no final da cena, sem ambigüidade, determina todo o desenrolar da seqüência, decoupada ou não. Bazin - como, de outra
forma, Pasolini - superestima enormemente o valor intrínseco de uma forma, o
plano longo com profundidade de campo, que é suscetível de dar lugar a
utilizações muito diversas.
Quando Ingmar
Bergman decide, em Fanny e Alexander
(1983), filmar em um único plano a espera da família Ekdahl no salão da avó,
enquanto agoniza Oscar, o pai de Alexander, esta é antes de tudo uma decisão
ditada pela sua experiência de teatro. Bergman contou a forte impressão que lhe
havia causado a técnica analítica da “ação” do diretor sueco Torsten Hammarén,
que ensaiava horas com cada ator para colocar de forma precisa os gestos os mais
insignificantes, até obter uma impressão de conjunto fluida, ritmada, perfeitamente
natural. Em seu filme, (o making off
o testemunha), Bergman se esforça em atingir o mesmo natural pelo mesmo meio
paradoxal do analitismo, do detalhe trabalhado, do encadeamento calculado. Com
este magnífico trecho de mise en scène
como domínio absoluto, estamos nas antípodas do sonho baziniano da ambigüidade
imanente ao real, e no desmentido flagrante da equação pasoliniana exclusiva
entre sentido e montagem (ao menos se considerarmos como montagem a intervenção
de Bergman para regrar seu plano-seqüência).
Bergman é
evidentemente ainda mais distante de Mourlet: o ator, em um filme como Fanny e Alexander, aporta seu savoir-faire, sua experiência, mas se
apaga largamente diante de seu papel, sua presença não sendo dada diretamente
como na utopia mourletiana. O plano longo não é, portanto, forçosamente ligado
à evidência, mas pode sê-lo ao cálculo e ao teatro. A ausência quase total de
referência direta a esta forma em Mourlet é sintomática: longe de ver, como
Bazin, a possibilidade de “manter uma ligação viva e sensível do ator com os
protagonistas e o cenário”, Mourlet veria antes aí um duplo perigo: de um lado,
o risco de um filme literalmente amorfo, contentando-se de reproduzir a
realidade sem lhe acrescentar nenhum valor artístico (versão pessimista e
disfórica da concepção pasoliniana); por outro, o risco igualmente importante e
assumido do teatro, do cálculo, da falsidade e do expressionismo - cuja
presença em numerosos planos longos de Wyler ou Bergman testemunha
eloquentemente. De fato, a prática das tomadas de plano ininterruptas durante
toda a duração de um evento se desenvolveu, sobretudo, nestas duas direções, a
de Welles e Bergman de um lado, a de Jean Rouch pelo outro: ou o plano é longo,
mas muito estruturado, ou o plano pelo contrário é semi-aleatório, esposando os
caprichos de um evento que ninguém domina realmente. O movimento ou a
imobilidade da câmera não muda nada, e encontramos planos absolutamente
estáticos onde o evento é totalmente dominado por um realizador transformado em
“metteur en scène” (é o caso típico
de Welles), ou outros ao contrário em que o cineasta se contenta em registrar
os desenvolvimentos, desconhecidos dele, de uma situação que ele lançou (é o
caso da maioria dos primeiros filmes de Phillippe Garrel).
Na estética da
“mise en scène”, o filme se dirige a
nós fora dos circuitos da razão, dos circuitos do sentido. Todos os
instrumentos da racionalização, montagem à frente, devem ser tão econômicos
quanto possível: parcimoniosos e invisíveis. Antes da crítica sistemática, nos
anos 70, da ilusão da transparência associada ao plano-seqüência, Mourlet tinha
intuitivamente se apercebido que esta forma não era nem econômica nem discreta,
mas saída diretamente do arsenal da “vontade de potência”.
Extraído de O cinema e a mise en scène, Jacques Aumont
Tradução: Luiz Soares Júnior
Revisão: Ricardo Lessa Filho