sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Uma obra de saúde pública.


Uma anedota pitoresca, bem urdida. Um realismo de bom tom; ar natural, desenvoltura. Narbonne no inverno, o acinzentado das cidades de província, a noite; em resumo, a  poesia. Alguns fracassos aqui e ali, um tanto de derrisório. Um lirismo ( leve), uma melancolia ( contida), crueldade, ternura. O todo, sendo considerado um espécime do bom gosto, encantou os fúteis, a todos aqueles que, ingênuos- ou porque se crêem excessivamente espertos ( os distintos diletantes que vieram da arte moderna)- só sabem amar a Bonnard opondo-o a Picasso, Eustache contra Godard.
Do lado dos espíritos casmurros, em revanche- de todos aqueles que em nome da modernidade, querem fazer passar sua estreiteza de espírito por rigor, seu fanatismo por jansenismo-, reagiram com desprezo. O Papai Noel desgostou a estes pela mesma razão com que agradou àqueles: como uma obrinha de nada. De um lado como de outro, mal-entendido.
Em primeiro lugar, em relação ao caráter anedótico. Manifestamente, o interesse do filme reside em outra parte- antes e depois, assim como durante, do lado, em torno tanto quanto dentro. Na realidade, o Papai Noel é um filme sobre a experiência. Sobre o material da experiência: a acumulação da vivência cotidiana, de suas ocorrências opacas, de onde às vezes emerge, fácil em identificar, uma réstia de aventura ( durante um mês, se vestiram de Papai Noel para ganhar  dinheiro e comprar um duffle coat). Sobre o trabalho da experiência: sobre a organização ( por exemplo, da narrativa), que a posteriori um indivíduo impõe a esta vivência, de tal maneira que esta parece se ordenar em unidades significantes, em articulações lógicas. O momento onde certos episódios do vivido se tornam capítulos de uma lição. A tentação deste gênero de empresas consiste sempre na possibilidade de um certo fechamento: o episódio fechado ao mesmo tempo em torno de seu desenrolar e de seu sentido. Mas Eustache cuidadosamente evitou sucumbir a isto, ao se abster de privilegiar o episódio central com alguma luz  particular, seja ao nível da narrativa ( este não possui mais relevo que o da loto ou do réveillon) , seja pela inserção na narração de elementos tiranicamente demonstrativos.

Sem dúvida, o Papai Noel aprende que as moças ( ou seja, finalmente o mundo) são menos inabordáveis do que parecem. Mas a lição é duvidosa. Deste saber, é preciso fazer a prova. A honestidade de Eustache consistiu em se recusar a inflar a anedota visada, e, com o risco de taxarem seu filme de insignificante e confuso, de saber respeitar as mensagens obscuras, as significações duvidosas, enquanto estas aparecem como modalidades essenciais do vivido. 

O que pensar então do realismo de Eustache? Por que esta vontade obstinada de se manter o mais próximo possível da vida, de seu desenrolar lento, de suas contingências cotidianas? ( o quotidiano das conversações, dos encontros, dos lugares, o das situações- a mais inesperada das quais ainda entretém com o real sutis implicações- o fotógrafo despreocupado que parece conhecer todo mundo em Narbonne não possui nada de um estranho mensageiro de aventuras). Esta vocação ao concreto seria o efeito de uma carência imaginativa? Pouco importa. O que é certo é que há aí uma tomada de posição enraivecida que nos faz pensar em Flaubert: esta imersão no real possui algo de desesperado, de heróico. Daí vem sem dúvida a força de certos planos distanciados, certos recuos súbitos da câmera ( a longa panorâmica sobre a cidade no primeiro terço do filme), que através do mesmo movimento com que designam o real com uma clareza sem mistério parecem, por sua própria insistência, contestá-lo, recusá-lo. Este recuo não é sem “poesia”, não tem nada a ver com esta graça turva de um olhar que teria miraculosamente o poder de transfigurar o real. É uma espécie de humilhação, uma leve náusea diante de tudo o que “já está lá”. ( Narbonne, seus barcos, suas moças a abordar, o dinheiro que é preciso ganhar, os réveillons que é preciso festejar). Este recuo consiste no único gesto de dignidade possível; é o distanciamento das quedas orgulhosas.

Um realismo desta natureza não teria evidentemente como evitar a aparência de solidariedade com um certo pathos. Um “queridinho insignificante”, um insignificante ideal ( de que Martini deleitado em uma insignificante solidão no terraço do café dos filhinhos de papai representa o insignificante emblema). Presente já em Les mauvaises fréquentations, o primeiro filme de Eustache, esta complacência para com o irrisório  parece ser a mais evidente constante de sua visão. Mas daí a lhe atribuir a função de uma definição de tonalidade consistiria em um mal-entendido sobre o propósito de Eustache. Para que a imersão no irrisório possa desempenhar este papel, era preciso que ela fosse a chave do filme- a armadura da chave, como se diz em música- , seria preciso que Eustache a promovesse, à maneira de um Fellini por exemplo, no essencial de uma mensagem. Não há nada disso. Filme sobre a derrisão, a complacência para com o derrisório ( que arrisca-se a ser qualificado de filme derrisório e complacente). O “Papai noel” é um filme do orgulho. Estes insignificantes ( minables) são eleitos, suas insignificantes aventuras são as empresas homéricas de nosso tempo. Não há nenhum de seus fracassos que não comporte, da mesma forma como os grandes insucessos flaubertianos, alguma vertiginosa ambigüidade.

Quanto à escritura deliberadamente clássica adotada por Eustache- modo de narração estritamente linear, simplicidade ideal da câmera, ausência total de signos exteriores de modernidade- , como não reconhecer aí a honestidade fundamental de um artista que, tendo de certa forma optado por uma fidelidade ao mundo, pretende não trair este engajamento pela intervenção manifesta ( pornográfica, diria Straub) dos gestos obstrutivos da arte? Os propósitos de Eustache necessitam, senão uma perfeita “brancura” ( blancheur) de escritura ( estado ideal de que conhecemos a possibilidade problemática), ao menos algo como uma escritura dissimulada ( mine de rien) , que nos faça esquecer de seus signos com o proveito de uma clareza total dos significados. A câmera atrás do vidro, se o personagem está atrás do vidro, diálogo mudo se não podemos ouvir este diálogo. Ir e vir repetido de um travelling sobre um personagem hesitante que avança e recua. Uma escritura, senão inocente, ao menos justificada pelo que quer dizer- a menos culpada possível.


“É então, escreve Francis Ponge, que ensinar a arte de resistir às palavras torna-se útil, a arte de violentá-las e submetê-las. Enfim, fundar uma retórica- ou antes: levar cada um a aprender a fundar sua própria retórica, é uma obra de saúde pública”.

Sylvie Pierre, Cahiers du cinéma, número 188, março de 1967.

Tradução: Luiz Soares Júnior.


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