Uma anedota pitoresca, bem urdida. Um realismo de bom tom;
ar natural, desenvoltura. Narbonne no inverno, o acinzentado das cidades de
província, a noite; em resumo, a poesia.
Alguns fracassos aqui e ali, um tanto de derrisório. Um lirismo ( leve), uma
melancolia ( contida), crueldade, ternura. O todo, sendo considerado um
espécime do bom gosto, encantou os fúteis, a todos aqueles que, ingênuos- ou
porque se crêem excessivamente espertos ( os distintos diletantes que vieram da
arte moderna)- só sabem amar a Bonnard opondo-o a Picasso, Eustache contra
Godard.
Do lado dos espíritos casmurros, em revanche- de todos
aqueles que em nome da modernidade, querem fazer passar sua estreiteza de
espírito por rigor, seu fanatismo por jansenismo-, reagiram com desprezo. O
Papai Noel desgostou a estes pela mesma razão com que agradou àqueles: como uma
obrinha de nada. De um lado como de outro, mal-entendido.
Em primeiro lugar, em relação ao caráter anedótico.
Manifestamente, o interesse do filme reside em outra parte- antes e depois,
assim como durante, do lado, em torno tanto quanto dentro. Na realidade, o
Papai Noel é um filme sobre a experiência. Sobre o material da experiência: a
acumulação da vivência cotidiana, de suas ocorrências opacas, de onde às vezes
emerge, fácil em identificar, uma réstia de aventura ( durante um mês, se
vestiram de Papai Noel para ganhar
dinheiro e comprar um duffle coat).
Sobre o trabalho da experiência: sobre a organização ( por exemplo, da
narrativa), que a posteriori um indivíduo impõe a esta vivência, de tal maneira
que esta parece se ordenar em unidades significantes, em articulações lógicas. O
momento onde certos episódios do vivido se tornam capítulos de uma lição. A
tentação deste gênero de empresas consiste sempre na possibilidade de um certo
fechamento: o episódio fechado ao mesmo tempo em torno de seu desenrolar e de
seu sentido. Mas Eustache cuidadosamente evitou sucumbir a isto, ao se abster
de privilegiar o episódio central com alguma luz particular, seja ao nível da narrativa ( este
não possui mais relevo que o da loto ou do réveillon) , seja pela inserção na
narração de elementos tiranicamente demonstrativos.
Sem dúvida, o Papai Noel aprende que as moças ( ou seja,
finalmente o mundo) são menos inabordáveis do que parecem. Mas a lição é
duvidosa. Deste saber, é preciso fazer a prova. A honestidade de Eustache
consistiu em se recusar a inflar a anedota visada, e, com o risco de taxarem
seu filme de insignificante e confuso, de saber respeitar as mensagens
obscuras, as significações duvidosas, enquanto estas aparecem como modalidades
essenciais do vivido.
O que pensar então do realismo de Eustache? Por que esta
vontade obstinada de se manter o mais próximo possível da vida, de seu
desenrolar lento, de suas contingências cotidianas? ( o quotidiano das
conversações, dos encontros, dos lugares, o das situações- a mais inesperada
das quais ainda entretém com o real sutis implicações- o fotógrafo
despreocupado que parece conhecer todo mundo em Narbonne não possui nada de um
estranho mensageiro de aventuras). Esta vocação ao concreto seria o efeito de
uma carência imaginativa? Pouco importa. O que é certo é que há aí uma tomada
de posição enraivecida que nos faz pensar em Flaubert: esta imersão no real possui
algo de desesperado, de heróico. Daí vem sem dúvida a força de certos planos
distanciados, certos recuos súbitos da câmera ( a longa panorâmica sobre a
cidade no primeiro terço do filme), que através do mesmo movimento com que
designam o real com uma clareza sem mistério parecem, por sua própria
insistência, contestá-lo, recusá-lo. Este recuo não é sem “poesia”, não tem
nada a ver com esta graça turva de um olhar que teria miraculosamente o poder
de transfigurar o real. É uma espécie de humilhação, uma leve náusea diante de
tudo o que “já está lá”. ( Narbonne, seus barcos, suas moças a abordar, o
dinheiro que é preciso ganhar, os réveillons que é preciso festejar). Este
recuo consiste no único gesto de dignidade possível; é o distanciamento das
quedas orgulhosas.
Um realismo desta natureza não teria evidentemente como
evitar a aparência de solidariedade com um certo pathos. Um “queridinho
insignificante”, um insignificante ideal ( de que Martini deleitado em uma
insignificante solidão no terraço do café dos filhinhos de papai representa o
insignificante emblema). Presente já em Les mauvaises fréquentations, o
primeiro filme de Eustache, esta complacência para com o irrisório parece ser a mais evidente constante de sua
visão. Mas daí a lhe atribuir a função de uma definição de tonalidade consistiria
em um mal-entendido sobre o propósito de Eustache. Para que a imersão no
irrisório possa desempenhar este papel, era preciso que ela fosse a chave do
filme- a armadura da chave, como se diz em música- , seria preciso que Eustache
a promovesse, à maneira de um Fellini por exemplo, no essencial de uma
mensagem. Não há nada disso. Filme sobre a derrisão, a complacência para com o
derrisório ( que arrisca-se a ser qualificado de filme derrisório e
complacente). O “Papai noel” é um filme do orgulho. Estes insignificantes ( minables) são eleitos, suas
insignificantes aventuras são as empresas homéricas de nosso tempo. Não há
nenhum de seus fracassos que não comporte, da mesma forma como os grandes
insucessos flaubertianos, alguma vertiginosa ambigüidade.
Quanto à escritura deliberadamente clássica adotada por
Eustache- modo de narração estritamente linear, simplicidade ideal da câmera,
ausência total de signos exteriores de modernidade- , como não reconhecer aí a
honestidade fundamental de um artista que, tendo de certa forma optado por uma
fidelidade ao mundo, pretende não trair este engajamento pela intervenção
manifesta ( pornográfica, diria Straub) dos gestos obstrutivos da arte? Os
propósitos de Eustache necessitam, senão uma perfeita “brancura” ( blancheur)
de escritura ( estado ideal de que conhecemos a possibilidade problemática), ao
menos algo como uma escritura dissimulada ( mine de rien) , que nos faça
esquecer de seus signos com o proveito de uma clareza total dos significados. A
câmera atrás do vidro, se o personagem está atrás do vidro, diálogo mudo se não
podemos ouvir este diálogo. Ir e vir repetido de um travelling sobre um
personagem hesitante que avança e recua. Uma escritura, senão inocente, ao menos
justificada pelo que quer dizer- a menos culpada possível.
“É então, escreve Francis Ponge, que ensinar a arte de
resistir às palavras torna-se útil, a arte de violentá-las e submetê-las.
Enfim, fundar uma retórica- ou antes: levar cada um a aprender a fundar sua
própria retórica, é uma obra de saúde pública”.
Sylvie Pierre, Cahiers du cinéma, número 188, março de 1967.
Tradução: Luiz Soares Júnior.
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