À questão se podemos ser cinéfilos
hoje em dia, uma resposta lapidar poderia ser: Não há salvação fora da televisão.
Outros o disseram antes de mim; Daney,
Biette, Skorecki, mas a situação hoje se mostra muito mais complexa. A oferta é
muito maior, e as correntes de transmissão, assim como os delinqüentes são
raros. Este claro recuo da pedagogia tradicional, de que o serviço público
atual é largamente responsável, só possui inconvenientes: ele deixa aberto um
campo considerável no seio do qual os filmes são livrados a eles mesmos e aos
telecinefílicos, numa certa desordem mas também uma grande liberdade. Canal + ,
depois os canais temáticos Cine Cinemas e Cine Cinefil, com suas programações genéricas,
testemunham uma oferta à disposição generalizada da história do cinema. Todos
os filmes estão virtualmente ali; eles flutuam, passam e repassam, aparecem e
desaparecem, formam um banco do dados ao qual podemos inquerir a qualquer momento,
tanto mais porque a edição em vídeo constitui o escopo permanente.
A cinefilia dos anos 50-60 era de
essência vertical, genealógica e histórico-empírica: a história do cinema, por
intermédio da Cinemateca, passava por uma série de etapas, de cortes, de
conexões e de influências, mesmo no caso em que o mais dandy dos dandys
conseguia encontrar o objeto mais raro e insignificante, que virtualmente
tenderia a desestabilizar todas as hierarquias. No fundo, para esta geração, a história do cinema era una e indivisível:
Fuller ou Godard eram os descendentes diretos de Griffth ou Lumière. Mesmo
Vittorio Cottaffavi ou Bud Boetticher podiam ainda ser aparentados a Giovanni
Pastrone ou a William S. Hart. A cinefilia dos anos 70-80, já formada pela televisão
( é meu caso) era mimética. Ela flutuava ainda entre a sala e o canal, queria
destruir seu brinquedo em nome da política, mesmo sonhando em reproduzir as
grandes batalhas de seus companheiros mais velhos.
Finalmente, ela tinha fortemente o
sentimento de ter chegado muito tarde, engolfando-se já na cultura das séries
televisivas e dos folhetins. É aliás no cruzamento entre estas décadas de 70 e
80 que a parte mais heróica da cinefilia evaporou-se, face à assunção do
cultural cujo triunfo de Télerama é o signo definitivo. A cinefilia dos anos
90-2000 é horizontal, digital e rizomática. Ninguém pode mais descender de ninguém
porque já está tudo lá. Esta nova cinefilia funciona um pouco como a montagem
virtual: procede-se por cortes abstratos, faz-se muitos ensaios de montagem, criam-se
alianças e, no fundo, só vemos fragmentos. As seqüências, os planos, os
detalhes, as atitudes são privilegiadas em cima dos próprios filmes, graças ao
uso intensivo do congelamento da imagem ( arrète sur l’image),da aceleração, ou
simplesmente do controle remoto zapeador.Os filmes perdem suas raízes, e até
mesmo seus autores- eles crescem como ervas daninhas, um pouco como os rizomas descritos
por Deleuze e Guattari.
Este processo mental é
admiravelmente posto em cena por Dream On, a série criada por John Lands quue
podemos ver todo domingo no Canal Jimmy ( outro canal a cabo). O princípio,
aliás tantas vezes descrito, é o seguinte: as lembranças do herói, o editor
Martin Tupper, são substituídas por trechos de filmes, telefilmes ou outras
séries, e intervém como rastros de memória e de comentários da situação
presente, com freqüência extremamente engraçadas. As imagens tornaram-se a
substância maior de nosso cérebro, e a lembrança-tela adquire sua forma
televisual. O fenômeno não possui, aliás, nada de trágico; ele age sob a forma
de uma psicanálise selvagem e permanente, e possui antes o caráter de ajudar a
viver o personagem fetiche de Dream on. Esta irrupção da memória involuntária,
a maior parte das vezes cômica, é um tanto comparável ao processo do sampling
no rap: um trecho, frequentemente brevíssimo, é desviado de sua função
primeira, de seu contexto. O trecho do filme, da mesma forma, pelo jogo das
citações, age de forma diferente, encontra um outro campo de ação, se
reposiciona e modifica o sentido ou a direção do campo ( no sentido magnético
ou analítico do termo) das imagens nas quais aparece. O autor é relativizado. O
filme é desonerado de seu peso referencial, histórico, de sua paternidade. Ele
flutua e deriva como um átomo, na expectativa de um encontro fortuito com outro
átomo. É um alívio que rima com
apaziguamento, e age como um bálsamo sobre o cérebro do cinéfilo, paralisado pelo
acúmulo de tantas memórias, mas é também uma perda de referentes, a destruição
de uma certa organização racional da memória, uma programação da amnésia.
Admitamos de qualquer maneira que
esta contaminação de todas as imagens, televisão e cinema confundidos,
obras-primas e porcarias lado a lado, possui algo de liberador. Ela nos vinga
da obrigação de amar apenas os grandes filmes da história do cinema. Ela nos
permite reivindicar nossas perversões. Ela nos obriga a reconsiderar nossa
experiência real de espectador, e nos força a admitir que tal ou tal série-
digamos, Chapeau Melon e Bottes de cuir ou Les Envahisseurs- teve um impacto
bem maior sobre nós que a visão de tal obra reputada como maior- o Encouraçado
Potenkim ou Les enfants du Paradis. Deste ponto de vista, a América, e em
particular seus cineastas, possuem uma certa vantagem sobre nós. Depois da
Nouvelle vague, que tinha finalmente o entusiasmo e a inocência , segura de si
mesma e iconoclasta das gerações inaugurais, a cinefilia tornou-se na França
algo paralisante, e de certa maneira ainda o é. Enquanto que os cineastas
americanos da geração de Joe Dante, John Carpenter ou ainda Tim Burton, sem
esquecer Tarantino, jamais foram constrangidos pelo peso de suas referências da
ficção científica dos anos 50, de Jack Arnold, Roger Corman ou Mario Bava.
O cinema e a televisão francesas
falharam em nos oferecer objetos supostos menores que são com freqüência menos
castradores que as referências maiores. Os Tontons flinguers ou Vidocq não são
forçosamente suficientes.
Mas o fim desta hierarquização,
verdadeira desregulamentação em matéria de valores cinefílicos, possui também
evidentes efeitos perversos. Ela possui a tendência a elidir todas as
diferenças e a colocar no mesmo nível todos os filmes, a nos fazer crer que a arte
de Raoul Walsh e o esforço de Willy Rozier são da mesma natureza. É um discurso
tão perigoso que certos trechos da história são um tanto ausentes desta oferta
à disposição generalizada: por exemplo, a modernidade dos anos 60 e 70 é sem
nenhuma dúvida a tendência mais negligenciada dos “bancos de dados” tele-vídeo.
Não vemos também filmes de Glauber Rocha, Marco Bellocchio ou Robert Kramer,
nestas novas telas.
Não se trata de operar uma volta
para trás. A digitalização da cinefilia está em plena marcha. Apesar de suas
prováveis derivas, ela é muito preferível à metamorfose da paixão cinefílica em
discurso de patrimônio, ou mesmo a transformação do cinema em um puro objeto de
saber e de história. Fazemos a aposta em que um novo circuito, uma nova rede,
uma nova geografia estão prestes a se recompor. E que uma nova geração, através
desta instrumentalização generalizada das imagens, está à altura de se
reapropriar da herança da antiga cinefilia. Último paradoxo: esta cinefilia de
apartamento- minoritária como todas as formas de cinefilia, só que mais
disseminada, na ausência lógica de grandes espaços de acumulação gregária- não
está, diante da ameaça da massificação da cultura, prestes a reencontrar as
duas condições fundadoras da antiga cinefilia: a clandestinidade e um certo
dandysmo?
Thierry Jousse, Cahiers du Cinéma, 498, janeiro
1996
Tradução: Luiz Soares Júnior.
Nenhum comentário:
Postar um comentário