sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Aberto e fechado


Os cineastas aprenderam a ser orgulhosos. Houve um tempo em que depositavam nas barreiras da mise en scène o cuidado de mascarar o segredo de seus filmes; houve outro em que se empenhavam em apagar as pistas falsas que dissimulavam o limiar de seu mundo, e assim desvelavam o próprio centro de onde tudo emanava. O desprezo, assim como Os pássaros, revela-nos agora este segredo na evidência de sua irredutibilidade, primeiros espécimes de um cinema que não se contenta apenas em compreender sua própria dimensão crítica, pois arroga-se igualmente o direito de ser o único detentor desta condição. Godard, quando crítico, deplorava que ninguém ousasse dizer de um filme: “isto é cinema”; isto, em toda crítica. O desprezo o afirma hoje, e afirma também sua recusa em ser qualquer outra coisa. E se Camille possui um ar pensativo, é porque simplesmente ela pensa em alguma coisa. Mas restemos na defensiva: as portas abertas estão também fechadas. A câmera de Cottard gira e inclina-se, mas é para nós que ela se dirige. Os filmes tiraram dos críticos o direito de julgar; ainda mais o de colocar questões. Por seu turno, eles interrogam.

Se abordei O desprezo por esta perspectiva, é porque conheço poucos filmes onde seja utilizado com tanto rigor o infatigável mecanismo do jogo de questões e respostas, onde nos seja revelado o outro modo de agir de um interrogatório que não pela força ou pela violação ( o que é o caso, por exemplo, de Hitchcock): pela persuasão ou pela lassidão, onde nos é demonstrado com crescente segurança o assustador poder da repetição.  Observem neste filme como os diálogos advém menos do domínio da conversação que da incitação e do disfarce; o caráter sonso ( sournoiserie) e o aparente distanciamento das frases; a situação negligente do centro de interesse; e como este brutal “yes or no” que liquida as frases de Prokosh parece-nos, por contraste, irrisório. Prestem atenção, quando da cena em que Paul interroga a Camille, à importância da mesa, da lâmpada que ele ilumina e apaga, figuras de um cerimonial de investigação que imprime à câmera um movimento que a confissão precipita. Armadilha da palavra, onde o ser acuado, perseguido arrisca uma resposta que seus próprios sentimentos devem em seguida esforçar-se por assumir. Daí que a fixação de Paul, ilustrada pela parábola do asno Martin, provoque uma confissão cuja simples formulação é suficiente, por um efeito de reação, a torná-lo ainda mais desprezível. E compreendemos então ( o que prova que se trata aqui de Godard, e não de Moravia) a função encantatória acordada por este cineasta à repetição ( o “of course” em Acossado; “eu não vou”, aqui em O desprezo), função esta que a destina a fazer nascer inteiramente a decisão que esta havia revelado ou invocado.

Dessincronização ( décalage) do pensamento e das palavras, das questões e das respostas, com freqüência dissociadas no espaço e  no tempo; dessincronização das próprias palavras- entre elas, pelas línguas diferentes que falam os personagens, e as estranhas traduções de Giorgia Moll, sempre em chave falsa, impondo assim, para além da sensação de naufrágio buscada por Godard, a impressão de uma não-coincidência, de uma obstinação enraivecida em encontrar a mútua compreensão ( e tudo isto nos evoca Paisá).

Vejo o corolário figurativo desta busca no incessante vai-e-vem dos personagens, na perseguição recíproca que sem cessar empreendem, sempre lançados uns contra os outros, em flagrante desacordo. Recusados, distanciados por uma câmera cujo posicionamento parece designar, com o fito de melhor interditá-lo, o ponto virtual de um acordo recusado ( assim como o núcleo do átomo repele seus elétrons); falsa liberdade acordada aos seres por este “no trespassing”. Cineasta da clausura, Godard recusou as facilidades do espaço reduzido, do quadro estreito, para substituir a eles, primeiro em Tempos de Guerra, o espaço aberto de um mundo finalmente ausente, limitado a uma avalanche de signos; e em O desprezo, conduzindo a Itália, a beleza e o cinemascope  às dimensões de uma prisão. Acuados pelos muros brancos, à imobilidade de uma natureza suntuosa mas indiferente, às gaiolas de vidro da villa de Capri, os personagens não mais escaparão aos dois pólos que os requisitam, reduzidos a um inquieto rodopio, obrigados a tirar as máscaras- como no apartamento romano onde, sob a cobertura da digressão em aparência a mais casual, a situação, no intervalo de uma toilette, evolui vertiginosamente de uma vaga sensação de mal-estar à confissão explícita do desprezo.


O Desprezo marca em Godard o advento de um sentido da duração cujo cuidado, de forma estranha, ele confia à montagem; o mais sereno, o mais equilibrado dos planos fixos deve, por contraste, traduzir a ruptura. O jogo de esconderijos do apartamento- ocultando, por intermédio de suas vastas superfícies, os seres entre si e a nós espectadores-, estas entradas e saídas de campo onde ninguém jamais se encontra substituem ao habitual plano de corte a eficácia igualmente penetrante ( mas num outro sentido) da montagem no plano. As bruscas partidas de Paul ( no quarto, ou quando ele arremessa-se à escadaria depois de ter surpreendido o beijo) e suas calmas entradas no plano seguinte; ou o grito de Camille, interrompido pelos limites do quadro, e ao qual responde em um eco surdo o de seu marido, não nos parecem fragmentos de um movimento cujo curso teria sido quebrado, e sim obedecem à continuidade respeitada de um élan que se apazigua, de um canto cuja última nota ainda é plena dos acordes passados. O que amo neste filme é que pelo mais seguro dos movimentos a insolência seja amortecida e a gravidade se instale, quando Camille, ao dizer “Nome de Deus” baixa os olhos e a voz; e que o ruído de uma onda destroçando-se contra os rochedos venha sancionar, quando do beijo, o único momento onde a natureza se abandona à ação.

O que com efeito nos diz O desprezo? Que todas as viagens à Itália não se parecem entre si, que dois seres fatigados podem, por ocasião da venda de uma casa, vir a redescobrir o amor em um cenário onde o passado, a terra, os Deuses e os homens lhes possam falar; mas também que outros casais se desfazem em apartamentos vazios, diante de Deuses mudos e de uma natureza altaneira; que Penélope, diante da impossibilidade do retorno, deve, para libertar Ulisses, transformar-se em Sereia e desaparecer; que, às vezes- e nisto reside o sublime- os Deuses podem morrer e apenas interpor à passagem dos mortais os seus gestos transfixados, seus olhos vazios, suas bocas pintadas e fechadas. Mas a arte não é uma conclusão; isto Lang nos havia ensinado em As Três luzes, e o Testamento de Orfeu também. De pé diante do mar, Ulisses contempla as margens da pátria, depois de compreender que esta não é apenas o lugar que nos propiciou a luz do dia, nem aquele para o qual retornaremos, mas o combate a empreender, o ideal a erigir. “ O que seriam o céu e o mar,  e as ilhas e as estrelas, e tudo o que se estende diante dos olhos dos homens...se eu não lhes desse o som, a linguagem e a alma”, escreve Hölderlin. A Odisséia finita em todos os seus níveis, a última palavra repercute, que é a invocação ao silêncio. A vida, o mundo dos homens renascem. Amanhã, eles vão reinventar os Deuses.


Jean Narboni, Cahiers du cinéma, 152.

Tradução: Luiz Soares Júnior.




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