O mundo dos filmes de Jacques Tourneur é o mundo da
tenacidade e da surpresa contínuas. Mas a surpresa contínua ( surpresa de
existir, surpresa de não se saber feito para nada neste mundo, e no entanto obrigado a assumir um papel)
destina-se a uma ausência – uma ausência total- de surpresa. Só resta a
tenacidade.
Esta mesma tenacidade, virtude não exaltante por excelência,
não consiste em uma qualidade moral dos personagens, uma faceta de sua
personalidade: alguma coisa que poderia subitamente desaparecer de dentro
deles, abandoná-los, e sobretudo deixá-los em paz; não, esta tenacidade é a
própria substância de que são feitos. Em cada um de seus atos, dir-se-ia que
são invencivelmente inspirados pelo conselho que o herói de uma das ficções de
Borges dirige a seus eventuais sucessores: “ Eu prevejo que o homem vai se
resignar a cometer empresas cada vez mais atrozes; logo, não haverá nada além
de guerreiros e bandidos; eu lhes dou este conselho: aquele que se lança em uma
empresa atroz deve imaginar que já a tenha realizado, deve se impor um futuro
tão irrevogável quanto o passado”.
Quem são “estes personagens”? Quase nada; sombras ativas;
homens de ação que não tem nada para dizer nem comunicar- que não possuem nada,
nem mesmo esta liberdade ilusória ( a esperança, o desejo, o presente que,
insensivelmente, torna-se passado) onde se comprazem os outros homens; eles, de
uma vez por todas, estacaram o seu
destino ( id est: decidido e
imobilizado). Entrevejo duas outras formas de evocar a emoção que dispensam-
correspondentes igualmente a duas hipóteses que tem servido de base a alguns
contos fantásticos contemporâneos: 1) estes personagens combatem, mas é como se
o desenrolar deste combate se passasse em um mundo, e as conseqüências em
outro: elas não lhes dizem respeito; eles combatem, é tudo. Aquilo que
empreendemos e as conseqüências de nossas empresas pertencem a dois mundos
diferentes, sem contato entre si; 2) estes personagens combatem, mas ao
combater, ao agir, eles nos sugerem que sua ação, sua individualidade, e por
extensão toda ação, toda individualidade possuem sua própria dimensão temporal-
sua própria temporalidade- que progride paralelamente a todas as outras, que
não coincide com nenhuma destas.
São por isso pessoas tristes? Eu creio que até mesmo a tristeza
lhes parece algo supérfluo. Ao invés disto, eles possuiriam, em estado latente,
uma espécie de humor sinistro, exercido sobretudo contra eles mesmos, humor
este que lhes permite ver com uma implacável precisão as inumeráveis etapas,
estratagemas, formalidades e obstáculos através dos quais são obrigados a
passar; que lhes possibilita ver igualmente, com a mesma precisão, esta galeria
de monstros, de maior ou menor envergadura, que encontram em seu caminho-
criaturas simiescas, inquietantes, repugnantes ou bufões com os quais lhes é
necessário se acumpliciar, até acabarem por se confundir com eles. Humor
sinistro justamente, por não achar graça em nada.
Poucas obras souberam dissimular a este ponto a ligação que
as relaciona a seu autor. Como Jacques Tourneur, filho de Maurice Tourneur (
cineasta eclético, pouco conhecido e às vezes apaixonante), nascido em França,
cuja infância, juventude e aprendizado cinematográfico passaram-se em idas e
vindas entre a França e os Estados Unidos, onde ele se instalou definitivamente
com 34 anos, e onde desde então tem se exercitado na confecção de vários
gêneros, de todos os orçamentos e metragens; onde enfim chegou a compor uma
obra tão secreta e intensa, quase experimental, que exerce sobre o espectador
uma ascendência às vezes tão forte, e cujo rigor- sua principal característica-
constitui-se igualmente em fonte de prazer e de perplexidade: eis aquilo que é
quase impossível de explicar. Nem seu pai nem a França parecem ter tido sobre
ele uma influência tangível. É preciso buscar em outros lugares: talvez na
própria obra.
No prefácio de seu livro “A Idade do homem”, Michel Leiris é
levado a fazer uma distinção banal, mas interessante, e cujos termos podem ser retomados: “Entre
tantos romances autobiográficos, escreve ele, diários íntimos, memórias,
confissões, que conhecem desde há alguns anos um extraordinário sucesso ( como
se da obra literária negligenciassem a dimensão de criação, e buscassem reter
apenas a da expressão, e assim
visassem, não o objeto fabricado, mas o homem que se oculta- ou se mostra-
atrás dele), a Idade do homem vem portanto se apresentar...” Retomando esta
terminologia, poderíamos dizer que a originalidade da obra de Tourneur- é
preciso de qualquer modo designá-la como tal, de uma forma ou de outra-
consiste no fato de que a parte da expressão
é completamente apagada, em proveito da criação.
Criação ex nihilo, então? Mas sabemos que deste gênero de criação apenas
Deus é capaz ( e mesmo assim...). Não. A questão permanece: como a parte da
expressão pode ser apagada sem que talvez a parte da criação não se apague da
mesma maneira- e, nestas condições, como pode-se pretender ainda que exista aí
uma obra? Eu vou responder, não por efeito de alguma teoria expressa acima, mas
pela simples observação de seus filmes, que Tourneur pôde levar adiante esta
experiência ( pois se trata de uma experiência, com o grau de risco comum a
todas as experiências: não dar em nada): 1) apagando-se atrás de seus
personagens; 2), não escrevendo os seus roteiros; 3) explorando metodicamente o
ganho( acquis) do cinema de aventuras tal como praticado
em Hollywood, e em particular a recusa de que este ganho se constitui; 4) acrescentando a estes alguns de sua lavra.
Estes pontos necessitam de alguns comentários.
1) Apagar-se atrás de seus personagens é
impossível em cinema sem que haja uma grande densidade, uma grande coerência
plástica na descrição do universo que circunda o personagem. À menor falha
nesta descrição, o ponto de vista da expressão
toma a frente ao da criação, na
consciência do espectador; a menor escapada- por efeito de artifício, imperícia
ou por negligência- do personagem para fora de seu quadro de ação é
imediatamente interpretada pelo espectador como um “signo” expressivo da
mentalidade do autor. Diz-se- esta é a
fórmula consagrada- que o autor se traiu. Este esforço de recreação plástica
deve, evidentemente, ser retomado do zero em cada filme. Ele exige um imenso
talento, e nisto não há trapaça possível. Este grande talento existe na obra de
Tourneur: na selva monótona de Appointement in Honduras, na austera e grandiosa
paisagem urbana de The fearmakers, no miniaturismo charmoso dos três sketches
de Frontier Rangers, etc, temos uma série de universos coerentes, fechados e
que caem como uma luva em seus personagens.
2) Não escrevendo seus
roteiros. É claro que Tourneur não se recusou a escrever seus roteiros, mas
a coação a que esteve com freqüência submetido ( coação esta aceita por ele) de
não escrevê-los, faz parte das condições da experiência. Um grande número de
roteiros aliás podem lhes ser convenientes: apenas lhe é necessário, no
interior de um circuito plástico muito particularizado, um esquema de ação
linear, muito movimentado- muito lógico também, e cuja mise en scène possa
ainda mais acentuar esta lógica. Ora, é muito mais fácil captar e acentuar a
lógica de um roteiro que não se escreveu ( que apenas corrigiu-se), ficando
menos sensível a eventuais “riquezas” marginais da história, riquezas estas que
frequentemente possuem apenas um caráter parasitário.
3) As aquisições do cinema americano de
aventuras fornecem a matéria destes roteiros. Em nenhum outro lugar senão na
América ( Holywood) existe uma herança cinematográfica que possa ser utilizada sem a necessidade de retoques. A obra de
Tourneur é neste sentido essencialmente americana, no sentido de que ela necessita,
para dar certo, de uma herança já assentada, que ela ali encontrou, e que não
poderia ter à sua disposição em nenhum outro lugar. Dito isto, nada se encontra
ali que se possa julgar tipicamente americano, nada que corresponda a uma
espécie de cor local; talvez aí esteja a razão- e esta já seria uma explicação-
deste caráter desolador e pungente que habitualmente possui, característica pela
qual é facilmente reconhecível.
Toda aquisição, qualquer que seja esta, de arte ou de
civilização, vale sobretudo e se define paradoxalmente por suas recusas. Uma
invenção que não existisse sob o império de certas barreiras, uma liberdade sem
freios constituem-se em perspectivas do espírito, em tristes e não criativas
perspectivas do espírito. O cinema americano tentou sempre que possível evitar
esta tristeza, assim como tentou evitar esta outra tristeza evocada com bom
senso por Mankiewicz: “Quer se trate de uma peça ou de um filme, devemos fazer
o público pensar apesar do público...O público vem, e se você é um bom
dramaturgo, ele sai pensando naquilo. Esta é na minha opinião a marca de nosso
sucesso. Mas se o público vem para pensar, então tudo se torna um pouco
pedante, um pouco triste também.”
Esta “herança” se caracteriza notadamente pela recusa do
psicológico em proveito do trágico; sobre a recusa da estrutura livre em
proveito da estabilidade dos gêneros; sobre a recusa da formulação literária e
discursiva da idéia em proveito de sua encarnação em uma variedade real de
episódios, peripécias, itinerários, metamorfoses, etc. Com o auxílio de nuances
( para apercebermo-nos, basta escrever: prioridade do trágico sobre o
psicológico, prioridade dos gêneros sobre a estrutura livre...) e também de uma
grande inteligência, a maioria dos cineastas americanos conseguiram se exprimir
perfeitamente em função desta herança. E eles o fizeram segundo o sentido de
duas direções principais: descoberta e exaltação de um equilíbrio vital a
partir de certos aspectos- cuidadosamente selecionados- da vida e da história
americanas ( linha Walsh); adoção de um ponto de vista crítico sobre um tipo de
sociedade americana- em geral aquela que o autor tem sob os olhos-, vista como
o lugar de eleição de certas aspirações permanentes e maléficas do homem (
linha Lang). A obra de Tourneur é tão distante de uma como de outra.
4) A noção de gênero,
por si mesma, já possui no cinema americano uma tendência a se esvaziar de seu
conteúdo, psicológico, social ou moral para deixar lugar apenas a um elemento
mítico, e às vezes- mais raramente- erótico, que lhe resume ou estimula o
sentido. Tourneur esposa esta tendência, mas lhe tira ainda toda finalidade
mítica ou erótica. Chegamos assim a este “vazio bariométrico da mise en scène”
de que falava André Bazin a propósito de Beyond a reasonable doubt, ou ao
célebre “punhal sem lâmina a que falta o cabo” de Lichtenberg? Não o creio. O
que resta de uma tal experiência é a beleza- beleza de arquétipo, escultural e
plástica, e quase inverossimelmente bela- da ação no momento em que ela se
realiza, em que ela marca, usa, faz e desfaz aquele que a realiza; beleza de
forma alguma hipotética aliás, pelo contrário firme e compacta, e cujas
qualidades são intensificadas pela ausência de justificação e de perspectiva
com que é captada; beleza de forma alguma nova igualmente ( aliás, ela existe
de tempos em tempos na maioria dos filmes, mas dispersa, casual, enquanto que
aqui constitui o núcleo da obra) e que vamos encontrar, por exemplo, em um
espírito e sobre um solo totalmente diferente, no “L’Enlèvement de la
Redoute”de Mérimée.
O Eros pálido e distante dos filmes de Tourneur parece-nos
tão alheio ao Eros flamejante de Walsh quanto do fúnebre de Fritz Lang. Para
falar a verdade, não se encontra no mesmo plano que eles. Inexpressivo,
perfeitamente incorporado aos conflitos dos personagens, no interior dos quais
ele serve com freqüência de pretexto a algum novo subterfúgio ou estratagema; é
o Eros típico de um autor que, ainda uma vez, recusa uma ocasião de se deixar
trair, e é talvez ainda mais tipicamente, o Eros da verdadeira ação e da
verdadeira aventura, aquele que nos leva a pensar em uma frase de um romance de
Pierre Benoit ( que eu não pude encontrar novamente), onde o autor nos diz que
é preciso ter atravessado as areias do deserto, ter sentido sede e sentido
medo, ter acreditado mil vezes na iminência de sua última hora, antes de se
arriscar a emitir um julgamento sobre a importância exata do erotismo no homem.
Com o elemento erótico, desaparece igualmente o elemento
mítico de cada gênero. O quadro respectivo do western, do policial, do filme
fantástico convém a Tourneur, mas apenas na medida em que se mostra propício à
revelação desta tenacidade que é a experiência de base dos personagens. (
Sobretudo, evitemos nos fixar sobre a
palavra, fazer dela um tema ou qualquer atitude inepta do tipo; aliás,
procurando, encontraremos sem dúvida uma palavra melhor). Eu quero simplesmente
precisar que os mais belos momentos de seus filmes sãos em dúvida aqueles em
que o meio e os humores dos personagens- e que não são nada além de um meio ou
um humor: aqui podemos nos referir à camaradagem cavalheiresca de Joel McCrea
em Wichita, ou ao egoísmo cínico de Victor Mature em Timbuktu- começam a
minguar, retomam os personagens no puro presente ( o presente paralisado, o
presente implacável) de suas ações, tornando-os rigorosamente intercambiáveis.
A contribuição específica de Tourneur aos diferentes gêneros
consistiria aqui e ali em introduzir uma ponta de fantástico, se quisermos
limitar esta contribuição ao ritmo da narrativa, feita de uma sucessão
irregular, depressiva, não dinâmica, de instantes de lassidão e de instantes de
terror, onde aliás aparece curiosamente o rigor do autor. É porque tratamos
aqui de um autor que tira os contrastes de que precisa do seu próprio tema, e
não por alusão a elementos que lhes são estranhos- método defeituoso e muito
disseminado, no qual vamos achar a causa do envelhecimento precoce de tantos
filmes famosos. Ele jamais irá, por exemplo, opor à aspereza da ação algum
ideal contemplativo de que seus personagens não tem a menor necessidade, e com razão ainda maior, a nenhuma nostalgia.
Ele prefere mostrar que a ação possui seus tempos mortos, seus próprios
contrastes, particularmente este contraste entre a lassidão e o terror que sabe
pintar admiravelmente; pois o ciclo da ação- medo, fadiga, sofrimento e morte-
, que é um ciclo terrificante, é também um ciclo monótono. Sente-se isto
através dos filmes de Tourneur.
Sentimos também outra coisa. Durante toda a sua carreira,
Tourneur teve à sua disposição alguns dos mais prestigiosos rostos de homem de
ação do cinema americano: Robert Mitchum, Robert Ryan, Joel McCrea, Ray Milland,
Dana Andrews- sobretudo Dana Andrews- e a menor coisa que se pode dizer é que
ele lhes soube render justiça. O interesse destes rostos reside em boa parte em
uma certa “inexpressividade” que lhes é própria e que exprime mais coisas que
qualquer invenção de roteirista ou de dramaturgo. Sobre o rosto de Dana
Andrews, em particular, se inscrevem e se cancelam verdades de ordem ao mesmo
tempo elementar e geral, que constituem uma outra forma de resumir os
propósitos de Tourneur. A ação é, sob estes variados aspectos, em seus perigos
vários, uma forma de vileza, uma escravidão. Comprometimento, escravidão em
relação à natureza antes de tudo, que esculpi, desenha nas carnes aquilo que
ela quer e como quer; e, paradoxalmente, os filmes de Tourneur são aqueles onde,
do começo ao fim, temos a mais forte impressão de ver envelhecer os
personagens- revanche do Tempo sem dúvida, expulsado artificialmente da
mentalidade dos protagonistas. Comprometimento também, renúncia em relação
àquilo que queríamos ter sido, querido fazer, às pessoas que queríamos ter
encontrado, aos sites onde queríamos ter vivido; renúncia sobretudo a tudo
aquilo que queríamos ter aprendido e descoberto. ( O herói de Tourneur,
tentemos dizê-lo sem literatura, é um herói rodeado de fantasmas e de mistérios
insolúveis, de mistérios que ele renuncia pouco a pouco a resolver.). Assentimento,
em definitivo, aos nossos esforços, nossos sofrimentos. Paro por aqui.
Os melhores
filmes de Tourneur são: Circle of danger, Way of gaucho, Appointment in Honduras , Wichita ,
Night of the demon, The Fearmakers, Timbuktu .
Dentre estes, os mais característicos: Appointment in Honduras , Night of the demon, The
Fearmakers.
Jacques Lourcelles, Présence du cinéma, 22-23, outono de
1966. Allan Dwan, Jacques Tourneur
Tradução: Luiz Soares Júnior.
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