A época das estéticas e dos manifestos.
Ainda não tínhamos celebrado, tanto na França quanto no
resto do mundo, o cinquentenário do cinematógrafo. A época estava ocupada com
outras coisas, e quando se deram as celebrações, foram sem alcance intelectual.
Foi apenas um pouco mais tarde que fizemos o inventário deste meio século de
cinema: um inventário muito mais estético, formal, ideológico que industrial ou
técnico. Quando André Bazin escreveu, no início dos anos 50, os três artigos
que ele em seguida fundiria sob um único, sob o ambicioso título de “A evolução
da linguagem cinematográfica”, ele visava a uma única coisa: a passagem do
cinema a uma espécie de idade adulta, que o faz sair da dependência do visual (
“da pintura”, diz ele), na qual ele estava no período mudo, mas também da
dependência do teatro, ao qual o haviam com freqüência reduzido no início do
cinema falado. “ A imagem- sua estrutura plástica, sua organização no tempo-,
por tomar apoio sobre um realismo maior, dispõe assim de uma variedade muito
maior de meios para modificar internamente a realidade. O cineasta é não mais
apenas o concorrente do pintor e do dramaturgo, mas igualmente do romancista”.
Já havia evocado esta conclusão no capítulo precedente: com efeito, temos de
nos haver agora com “um segundo cinema”, que pode modular e modelar o tempo, ou
antes os tempos; que pode variar seus pontos de vista de forma infinitamente
flexível; que pode dizer tanto “eu” quanto “ele”; que pode sugerir o passado, inclusive
o passado mais-que-perfeito, e mesmo visar ao futuro ( ao menos o futuro
optativo); ou seja, que é enfim dotado dos meios elementares de sua arte.
Esta definição do cinema do pós-guerra vai ser
frequentemente ligada, em seguida, à vaga noção de “modernidade
cinematográfica”- ao mesmo tempo que o incremento de realismo autorizado, à
mesma época, pelo plano longo, a tela larga, a vista pseudo-documentária e o
emprego ostentatório de atores não-profissionais. É que a possibilidade do
romanesco- assim como as liberdades que tomava em relação a todas as regras mais ou menos convencionadas
o cinema de Rossellini, e o que se chama ainda na França, de neo-realismo- iam
em parte no mesmo sentido: dar a um cineasta, ao autor de filmes, a
possibilidade de exprimir um ponto de vista sobre a história que ele conta,
quer seja um ponto de vista afirmativo e assertivo, uma espécie de intervenção
do “eu” em um mundo de ficção, ou, pelo contrário, um ponto de vista discreto,
implícito, às vezes até as raias da ambigüidade, e que parece deixar falar os
seres, as coisas e os lugares. Em resumo, tornava-se possível ser plena e
verdadeiramente um “autor de filmes”, o que o “primeiro cinema” havia permitido
apenas de uma forma mais rara e limitada, tanto em sua variante muda ( pelas
limitações essenciais que esta comportava, em primeiro lugar a da imagem
metáfora) quanto em sua variante falada, onde o cineasta era com freqüência
secundário em relação ao roteirista.
O cinema-romance, o cinema miticamente moderno de
Rossellini, não eram as únicas estéticas do filme a se efetivarem, na época. No mesmo momento,
Bresson ativava o sistema que ele iria aperfeiçoar em suas grandes
obras-primas ( Um condenado à morte escapou, 1959, Pickpocket, 1960) e que o
levaria aos aforismos sistemáticos de Notas sobre o cinematógrafo. Também no
mesmo momento, Éric Rohmer desenvolvia uma abordagem abertamente estético e
histórico ( no sentido de “história da arte”), pleiteando pela vinda de um
cinema autenticamente clássico, e colocando na linha de frente a noção de
beleza. De maneira menos coerente e menos formal, um conjunto de cineastas, na
primeira linha dos quais seria preciso citar Chris Marker, experimentava
reatualizar os ideais, políticos e formais, das vanguardas do entre-guerras. Em
um contexto nacional já protegido pelas leis e instituições, puderam eclodir
uma dezena de estéticas ou de ideologias críticas, todas apaixonantes,
fecundas, todas ligadas à atualidade mais vibrante, fazendo deste período,
1945-1960, incontestavelmente o mais rico do ponto de vista de uma história das
idéias sobre a arte cinematográfica.
Foi no fim deste período de excitação crítica que surgiu um
texto singular. Em pleno verão de 1959, os Cahiers du cinéma ofereceram a seus
leitores, sob o título provocador de “Sobre uma arte ignorada”,e munido de um “capitólio” redacional sibilino,
um dos mais diretos manifestos críticos jamais escritos sobre o cinema.
Inscrevendo-se no quadro geral de uma época fértil em reivindicações de
novidade ( a Nouvelle vague já estava lá), este estranho manifesto complica o
quadro. Dizer, em 1959, que o cinema foi mal avaliado como arte, é fazer tabula
rasa de todos os manifestos do período mudo
( em particular,
aqueles que quiseram fazer do cinema a arte da montagem ou da imagem), dos
manifestos situados na passagem ao falado, assim como de todas as proposições
recentes que se felicitavam pelo cinema ter se tornado um igual da arte
literária. Postular, em suma, que a avaliação crítica , se não pode sustentar
um sentido da História, deve dar conta de uma essência da arte do cinema, era igualmente provocador, em um contexto
jornalístico francês onde a crítica marxista era, quantitativamente ao menos, a
mais importante.
O artigo de Michel Mourlet é de fatura clássica; repousa
sobre uma tática e uma retórica simples: para definir a arte do cinema, o
melhor consiste em diferenciá-la o mais claramente possível das outras artes (
como havia feito Bazin, mas de outra forma). Por que o cinema ( “apenas o
cinema”, diria Godard mais tarde, nas Histórias do Cinema) é definível por
oposição a todas as outras artes? É que
ele é a única arte inventada, a única que, necessitando de um certo
desenvolvimento da técnica e de um certo estado de civilização ( em particular,
o gosto pela representação mimética), não teve, como as outras, uma origem
mítica e um desenvolvimento universal, mas resultou de uma invenção local e
historicamente determinada. No entanto, não é sobre este dado histórico (
incontestável) que raciocina Mourlet. Ele parte- para aí tomar o exato
contra-pé- das três teses da história e da psicologia das artes:
- as artes em geral resultam do exercício de uma visão
determinada, submetida ao desejo do homem e atingida de forma segura, desde que
se domine a técnica; são as artes da intenção, ou mesmo as artes que só
constituem uma intenção;
- elas supõem a existência, entre o mundo e a obra de arte, de um terceiro termo, que
permite a simbolização do primeiro pelo segundo. Este “terceiro simbolizante”
foi com freqüência chamado de uma “linguagem” ( da pintura, do teatro, da
dança, da poesia), e a este respeito
Mourlet tem uma fórmula fulgurante: “ nas artes o mundo troca sua forma contra
sua verdade”; as artes tradicionais dão forma ao mundo ( que não a possui por
conta própria), sob o risco ( o preço) da verdade do mundo, que se perde na
operação, a forma não sendo verídica;
- enfim, e por
conseqüência, toda técnica de mise en
forme ( pôr em forma) é a priori tão boa quanto outra: é a existência do terceiro simbolizante que
importa na sua natureza particular. A crítica não possui razão teórica para
escolher um momento mais essencial um mais autêntico: toda prática coerente da pintura,
poesia, dança ou da música é uma manifestação verídica desta arte.
A concepção do cinema como arte não se define pelo desejo do artista
“Um olho de vidro e uma memória cinzelada de prata dão ao artista
a possibilidade de recriar o mundo a partir do que ele é, portanto de fornecer
à beleza ar armas mais agudas do verdadeiro” ( p. 23). Esta frase paradoxal é a
chave primeira da estética do cinema segundo Mourlet: criar sem criar.
“Recriar o mundo...”
A arte em geral é criação: é a concepção dominante no
Ocidente. A apologia do artista genial, implicada por diversas vezes em nossa
tradição filosófica e estética, jamais verdadeiramente cessou. O gênio possui
diferentes facetas: ele é aquele que, praticamente um demiurgo, é capaz de
compreender o cosmos, a ordem do mundo ( é esta a versão, neo-platônica, da
Renascença); ou então ele é aquele que descobre e explora domínios e rotas
desconhecidas ( concepção nietzschiana, avant la letre, do Romantismo); ele é
também este homem cujas qualidades de exceção se manifestam por um temperamento
e um comportamento singulares. A primeira concepção, do gênio à altura de Deus,
por conhecer a ordem do universo, se distanciou de nossas inteligências e
sensibilidades; ela foi submergida pela segunda, a do descobridor do desconhecido
e do infinito, da qual Rimbaud e os surrealistas foram os profetas e os panfletários.
No entanto,a concepção “organizadora” do
gênio, se desapareceu sob sua forma
clássica, jamais cessou de assombrar como um remorso a arte do século 20, aos
programas abstratos e militantes dos anos 20 ( De Stijl, o construtivismo), aos
exercícios de domínio ironicamente absolutos que, que Duchamp a Warhol,
deixaram sua marca profunda em todo empreendimento artístico atual.
Ignorância ou desprezo, Mourlet não faz nenhuma alusão
a esta história. Sua concepção da arte é
anterior ao século 20: ele pensa o artista como se pensava em meados do século
19- e o destinatário, exatamente como se
pensava no século 17. “A arte é a religião da lucidez” ( p. 31), ou seja,a religião da época “lúcida”, aquela que não
tem mais ( necessidade) da fé em Deus- mas esta nova “religião” concerne
diferentemente o artista e seu público.Para o público, ela funciona realmente
como religião, ou seja, como cimento social, respondendo a um desejo de ordem
que se trata de cumprir: o espectador, o participante do rito da arte é quase,
diante de si mesmo, um cidadão
platônico, aspirante à Beleza, e sabendo que de qualquer maneira a ele será
oferecida a Verdade. No entanto, Mourlet o vê prestes a se abandonar totalmente
à obra, ao artista, até a “absorção da consciência pelo espetáculo”; um
espectador, não crítico, não distanciado, tendo total confiança em uma arte
absoluta, que não pode ludibriá-lo. Quanto ao artista, este é movido por um
motor aparentemente contraditório com este ideal, sua “vontade de potência”. O
exercício da arte é então- algo mais próximo de uma concepção clássica- a
prática de uma série de limitações desta vontade no que esta possui de
arbitrário. O artista deve curvar sua personalidade de exceção, até o ponto de
chegar a compartilhar das angústias e das questões do público; também para ele
o exercício da arte é um exorcismo: “o artista realiza a obra de arte para se libertar,
para apaziguar suas contradições” (p. 32). Reencontramos aqui o terceiro traço
do gênio: o sofrimento, interior porque “nascido sob o signo de Saturno”,
exterior pois incompreendido. O artista deve fazer a prova ( experiência)
extática do excesso, a fim de se reencontrar a si mesmo, em uma espécie de oblação
purificadora- ao menos que ele conheça suficientemente o domínio de si, para
evitar esta “prova”.
Em todos os casos, o artista, a arte, o destinatário se
relacionam com o sublime. Sublime da grandeza, pela ambição sem limites que
define o verdadeiro artista; sublime do terror, pelo verniz quase infernal que
adquire a descrição do ato criador; sublime crítico do triunfo do humanos sobre
a fraqueza, do empenho do “domínio de si”” Que tudo o que não diga respeito a
esta ordem do sublime seja nulo, inútil e sem interesse, que toda arte que não
seja exclusivamente íntima e passional, votada ao excesso, preciosista, aristocrática,
que seja frívola e derrisória, isto é ao mesmo tempo uma evidência de nosso
desejo e uma conseqüência lógica da função existencial da arte” ( p.33). A arte
é uma atividade, não um “reflexo passivo da integral realidade”, e Mourlet
emite sempre as palavras mais duras possíveis contra o realismo em todas as suas
tendências, neo realismo na frente, por ser sempre demasiado passivo, demasiado
despido de vontade criativa: diante da obra realista, que “não exorciza” nada,
o espectador nada pode experimentar.
Concepção provocante- menos por sua enunciação terrorista,
que na época irritou ou seduziu, que por sua falsificação deliberada entre as
concepções moderna e clássica. Moderno é, em Mourlet, o recurso à idéia de
gênio criador, substituindo-se à idéia de uma comunidade artística que
estabelece as regras e beneficia-se de progressos comuns; o artista só tem
contas a acertar consigo mesmo ( e com a verdade), de forma nenhuma ao meio dos
artistas, nem à sociedade que lhe permite existir. Mas de forma contraditória,
este artista ainda crê que se pode colocar no núcleo da criação artística o
problema da verdade ( portanto, do erro e da falsidade). Em resumo, o artista
cria, de acordo com sua “vontade” criativa, mas ele não saberia criar qualquer
coisa: ele “recria o mundo”. Se, na concepção romântica, ele é um vidente, na
forma clássica ele submete sua visão à obrigação de compartilhá-la com os
outros, em toda a sua claridade e precisão.
“...a partir do que é”
Sobre este fundamento paradoxal, compreende-se melhor a
definição da arte do cinema. O artista não tem realmente escolha, pois seu
arbítrio, seu desejo e vontade são impostos: é “o mundo” que define todo
empreendimento artístico,até o espectador ( o qual não possui nenhuma escolha:
diante do filme, ele só receberá o mundo, e não deve buscar mais nada”. A arte
do cinema consiste em fazer uma imagem
do mundo ( nada de realismo bruto) masque esta imagem seja bem uma imagem do mundo (
nada de irrealismo também). “A essência do cinema como arte não é mais o
documentarismo nem a féerie, se o documentarismo se limita a restituir as
aparências incontroláveis e se a féerie autoriza a mentira, o truque e os
artifícios de estetas; mas é ao mesmo tempo o documentário e a féerie, trata-se
da beleza imposta pela evidência irrecusável do olho” ( p.34).
-A arte do cinema possui uma essência: não é preciso
defini-la por seus acidentes, suas realizações de acaso, que dependem das
circunstâncias( não identifica-la a uma escola, um movimento, um momento
passageiro); o que imposta é menos sua existência que esta ideal essência que é
a sua ( eis porque Mourlet possui uma lista extraordinariamente seletiva de
“verdadeiros” cineastas). Esta essência é a beleza: o material desta arte o que
ela possui da ordem do evidente, o que aparece em sua visibilidade, o que a
distingue( e não aquilo que eu distinguo nela)- sob o controle e o citério do
“olho irrecusável”: “O objeto desta arte é o mundo, mas apenas enquanto é capaz
desta evidência: não, portanto, todo o mundo, mas simplesmente seus aspectos ou
qualidades que são suscetíveis de agir imediatamente sobre nossas
sensibilidades. A arte deve capturar certos aspectos do mundo ( nada de
féerie), mas não todos( nada de realismo passivo); ela deve selecionar algumas
de suas aparências.
A arte do cinema não
supõe um terceiro termo simbolizante
À esta primeira tese sobre a arte e o artista se acrescenta
uma tese sobre o espectador:ao mesmo tempo que o artista tem relação
diretamente ao mundo via certos de seus aspectos, o espectador vive numa
relação de imediaticidade do mundo através do filme: ver um filme não equivale a
ler, não é mesmo compreender- é antes de tudo sentir, aceitar que mostram algo
quer não possui sentido, ou cujo sentido não me é revelado. Mourlet desenvolve
esta idéia em suas direções, uma mais psicológica, outra mais ideológica.
O cinema total
A expressão cinema total foi inventada, parece, por um
escritor René Barjavel ( em seguida conhecido autor de ficção científica) em
uma pequena obra aparecido discretamente durante a guerra. Ela foi retomada (
sem referência a Barjavel) por Bazin, em um artigo aparecido dois anos mais
tarde. Nos dois autores, a idéia diretora é a mesma:o cinema está em progresso
incessante, efetivo, em direção a um estado ideal, que é ou será a reprodução
perfeita e completa de todos os fenômenos, em todas as suas dimensões
sensoriais. A utopia de um cinema se endereçando a todos os sentidos-inclusive
o olfato e o toque- é antiga ( a encontramos no Melhor dos mundos de Huxley,
1932), e de um interesse limitado. O mais interessante é a idéia da perfeição
da reprodução,que remete a uma outra velhíssima utopia, a da ilusão. Sabemos
que, se é possível enganar a orelha pela reprodução sonora, só se pode enganar
o olho em condições muito limitadas( as do “trompe-l’oeil”),que aliás não tem nada
a ver com o cinema. A ilusão perfeita é impossível, e desde muito tempo havia concluído
que ela não seria o fito da arte. O cinema total, como escreve Bazin, é um mito:é
bem assim que o compreende Mourlet, já que ele designa simplesmente o ideal de um
cinema que “toma” seu espectador, que o submerge pelos meios mais diretamente
sensoriais e emocionais possíveis, sem a interposição de umas “linguagem” de imagens.
Resta-nos o aspecto dinâmico( histórico) desta tese: um
progresso técnico permanente, de que se pode julgar a partir do paradigma de um
exemplo maior- a passagem do cinema mudo ao sonoro ( maior porque acrescenta um
parâmetro sensorial completo, não apenas o da palavra). Se o cinema falado
representa um progresso , podemos então dividir a história do cinema mundo em
duas tendências: uma, sem futuro, que copiava a pintura; outra, progressista,
que buscava falar sem palavras. Mourlet retoma, mais ou menos, este raciocínio
demasiadamente especioso , e daí deduz conseqüências estéticas: tudo o que não
vai no sentido do cinema total é ruim, já que não é conforme à essência da arte
do cinema. Vêem-se assim condenadas no cinema mudo, - e claro, no cinema
falado-, a metáfora, a pantomima, a deformação “caligárica” do cenário, as
deformações fílmicas ( o flou, as sobreimpressões), porque elas operam uma
tranferência de essência, do mundo evidente à imagem, portanto tendem a
restabelecer um terceiro termo (um tiers
symbolisant) simbolizante, uma linguagem que poderia se autonomizar. A
história do cinema é a história de sua “purificação”, de sua adequação cada vez
mais perfeita ao ideal de uma arte da imediticidade e da transparência.
A fascinação
Esta transparência da mídia possui seu correspondente
psicológico: o espectador é projetado no filme, ele é presente nele de maneira
espontânea. “A absorção da consciência pelo espetáculo se chama fascinação:
impossibilidade de se arrancar às imagens, movimento imperceptível em direção à
tela do ser totalmente tenso em um fremente desejo, abolição de si nas
maravilhas de um universo onde morrer situa-se no ponto extremo do desejo.
Provocar esta tensão em direção à tela aparece como o projeto fundamental do
cineasta” ( p.36).
O tema da captação fílmica, em si mesmo, não é novo nem
raro; o destacável é a intensidade que lhe é conferida: absorção, fascinação, tensão,
abolição de si, extremo do desejo,até os limites do estase ( “estamos fora de
nós mesmos”), sem que se busque aliás a distinguir, nesta captura, aquilo que
pertence ao efeito-ficção e à própria imagem ( à imagem-ação).
Aí também temos uma franca axiologia. O mau é aquilo que
rompe a fascinação, e particularmente, tudo aquilo que leva a tomar consciência
da existência da imagem, ou que manifesta, voluntariamente ou não, uma
intervenção do autor. À primeira vista, é a montagem que é aqui visada, porque esta
é sempre “a intervenção exterior e brutal de uma vontade que se superpõe ao
olhar da câmera”(38). Reconhecemos aqui ainda um tema baziniano, aquele da
montagem interdita, com o adendo de que Mourlet é mais radical: não é o caso,
como em Bazin, “quando o essencial de um evento é dependente de uma presença simultânea
de dois ou vários fatores de ação” que a montagem seja interdita, mas todo o
tempo- porque não se trata apenas de ontologia ( para retomar o termo de
Bazin), mas também de pragmática. A montagem deve ser interditada para
respeitar a duração, o ritmo, a natural, e a presença do evento; e também para
não quebrar a fascinação do espectador. Em suma, do lado do artista como do
espectador, o cinema não suporta a linguagem da arte. No cinema, “o mundo não troca sua forma contra sua verdade”:
elas são indissociáveis.
A estética do cinema
não é relativa
O cinema, na versão oferecida por Mourlet, é portanto, ao
contrário das outras artes, uma arte absoluta. Impossível a seu respeito aceitar
as convenções arbitrárias, pois a arte do cinema é responsável para com o
mundo. Com o cinema, “a beleza se vê conferir a arma do verdadeiro”: uma vez
que o cinema submetido auma regra que é
a regra do mundo, ele inclui uma dfoimensão de verdade, que as outras artes não
possuem.
A mise en scène como
princípio estético
A “lei de progresso” que manifesta a utopia do cinema total
deve então ser compreendida como uma espécie de consciência histórica própria. Mourlet,
talvez influenciado por André Malraux, que tinha reivindicado, vulgarizando-a,
esta tese hegeliana da consciência histórica, parece bem pensar que existe um
sentido da História que se encaminha em direção à atualização das essências;
portanto, no que concerne ao cinema, em direção a uma adequação ideal entre uma
natureza e uma prática, santificada pelo fato de que o cinema é a arte do
século, ultrapassando todas as outras e remetendo-as a seu relativismo ( como
ainda, em Eric Rohmer). Existe portanto um princípio estético diretor do cinema,
e ele é absoluto. Enquanto que, nas outras formas, pouco importa o princípio de
“colocação em forma”, já que o mundo é simbolizado e não diretamente presente,
no cinema, só existe um princípio de “colocação em forma” ( mise en forme)
aceitável: é aquele que Mourlet chama de mise en scène, e que garante a
presença direta do mundo.
Mise en scène: chegamos. Em 1959, é tudo menos um termo
neutro. A expressão é carregada de História, e antes de tudo, de uma história
do teatro. Mesmo Mourlet é obrigado de lhe
dar a princípio uma definição desta ordem: “a colocação em um
determinado lugar dos atores e dos objetos, seus deslocamentos no interior do
quadro”. Mas por mínima que seja, esta definição já mostra que a mise em scène
de cinema não é a mesma de teatro: se, no teatro, colocar em cena equivale a
colocar sobre uma cena, no cinema tudo é remetido ao quadro. (...) os movimentos, os gestos, as mímicas dos atores, a
aparência do plateau de interpretação só possuem existência no retângulo do quadro. Certos pensaram mesmo que, já que
a representação cinematográfica consistia na transposição de certos eventos
sobre uma superfície, e que esta superfície se modificava no tempo, dever-se-ia
poder descrever o cinema como uma espécie de écriture. De Kouleshov e de sua teoria da expressividade do ator
até Bresson e sua concepção do cinema como “colocação em relação” de imagens
sucessivas das quais nenhuma é auto-suficiente, não faltam definições do cinema
que não integrem este dado do retângulo, da imagem, do caráter achatado (
plano, plat) literal da realidade por sua filmagem.
Para Mourlet, as conseqüências são bem diferentes. A mise e
scène como “colocação num lugar”e gestão dos deslocamentos é a se considerar-
mas unicamente porque esta contém em germe alguma coisa que o teatro não possui
nenhuma maneira de atingir, a não ser na caricatura e no exagero: o potencial
de afeto de cada gesto, cada olhar e movimento. O quadro é o intensificador de
tensão que permite magnificar, ou mesmo de transfigurar estes afetos e este
potencial. A mise en sène no cinema não é uma técnica: graças às limitações
benéficas do quadro, ela se torna uma força ( ou, em outras passagens, uma
energia). Tudo se passa como se o quadro, ao encerrar a mise en scène, ao
clarificá-la, ao torná-la definitiva, se tornasse uma espécie de instrumento
que focalize sua energia.
Este poder do quadro é pouco sublinhado por Mourlet ( isto o
levaria a acordar aos parâmetros da imagem um valor expressivo próprio, o que
não está disposto a fazer). Ele permanece portanto muito vago, e não precisa
sua definição de mise en sène de forma técnica, colocando no centro do filme, de
seu poder e de seu princípio, no centro da “mise en scène” aquilo que, a seus
olhos, encarna melhor a energia: um, a seleção de momentos privilegiados, “as
ações e reações de um homem em um cenário”.
A mise en scène e o
ator.
O centro e a origem da mise en scène tal como a concebe
Mourlet é portanto o ator, e o critério do verdadeiro artista do cinema,
“consiste na franqueza e na lealdade para com o corpo do ator”. Ao contrário,
os maus cineastas, os falsos cineastas, são aqueles que não cessam de manipular
os corpos, como Hitchcock, Welles, Eisenstein. Toda a energia do fluido
misterioso que é a mise en scène passa pelo corpo do ator; é dele que sobre a
tela ela emana, é ele quem encarna o melhor meio de captar o espectador, de
fascina-lo, de fazê-lo comungar com o “encantamento de gestos, de olhares (...)
onde nos perdemos para nos reencontrarmos lúcidos e apaziguados”. Há a este
respeito uma frase tornada famosa:
“Já que o cinema é um olhar que se
substitui ao nosso para dar vazão a um mundo segundo nossos desejos, ele vai se
pousar sobre rostos, corpos resplandecentes ou mortificados mas sempre belos,
desta glória ou deste estilhaçamento que testemunham de uma mesma nobreza
originária, de uma raça eleita que com embriaguês reconhecemos como nossa,
última precipitação da vida na direção de deus”.( p.43)
O início desta frase foi
imortalizado por Godard em O desprezo- que a cita no começo do filme, mas
estaca antes das considerações sobre o ator e substitui o final por este aqui:
“este filme é a história deste mundo”. Ali onde o cineasta se propõe a fazer um
filmar sobre “o mundo substituído ao nosso”, ou seja, um filme sobre o poder da
ilusão cinematográfica, sobre seus limites e artifícios constitutivos, Mourlet
via este mundo “acordado a nossos desejos” como o reino de personagens
literalmente maravilhosos. Corpos resplandecentes de Beleza, encarnações
mágicas da imagem do Divino, do Belo.
Com este devaneio todo, estamos bem longe da mise en scène como mise en
place, com tudo o que esta implica de cálculo. Fazer do cinema uma arte de mise
en scène como defini-lo como criação de
um mundo maravilhoso, onde reinam a beleza e a energia dos gestos e dos corpos
é ter abandonado a cena pelo ideal, é ter deixado para trás o ator pela
criatura, é querer transcender a ficção
no mito. Pressionado até este limite, esta concepção não corresponde a nenhum
filme existente, é uma pura Idéia de “mise en scène”, ou seja, do exercício
sobre o mundo de um olhar que o transfigura.
Se há uma possibilidade de encarnação deste ideal, consiste,
na mise en scène, na maior transparência possível ( a recusa da montagem e da
expressividade da imagem, e para o ator, numa interpretação natural. Este termo
é difícil em definir, no sentido francês do jeu
naturel, como no sentido inglês do natural. O natural ( actor) é aquele que
é vão dirigir, porque ele sabe de instinto o que deve fazer, e sobretudo
porque, fora de um certo registro ou alguns limites, ele não saberá
interpretar. O caso extremo é o ator não-profissional, aquele que é preciso
flagrar por surpresa, e que só interpretará se fizermos apelo a todo o seu ser.
Nicholas Ray, que adorou sempre este estilo de atores, de Robert Mitchum a
James Dean, explicou bem esta relação complexa entre um registro, uma
personalidade, uma intuição, uma ciência inata- e a posição de retração ativa
que isto implica no realizador. Quanto à interpretação “natural”, consiste num
ideal- neutro, aparentemente espontâneo- do jogo do ator; pode-se dizer que é
uma técnica tão pensada quanto outra qualquer.Natural e construído: contradição
nos termos que com freqüência deu, nos atores franceses, o que se pode chamar o
“natural estereotipado”.
Mourlet não tem uma teoria do ator, senão bem implícita. O
que ele chama mise en scène refere-se a estes dois fatores, tão indefiníveis um
quanto o outro: a transparência absoluta
de um olhar portado sobre os atores absolutamente
naturais. Ela une uma atitude de criador à atitude deste outro homem que é
ao mesmo tempo sua criatura, seu rival, seu modelo e seu material. E em um como
em outro caso, ela propõe um mundo cinematográfico perfeito, que se define por
um duplo oxímoro: o cineasta é ao mesmo tempo total vontade criativa e total
retração diante da expressão pessoal; o
ator é aquele que é antes de
interpretar. A mise en scène tornou-se uma força, uma energia e, para dizer
tudo, uma virtude. Vertu vem do latim
virtus, que significa força, mas acrescenta uma conotação ética ( até
mesmo moral) que não é deslocada: a mise em scène só se concebe como pura,
desembaraçada das escórias do artifício, do estilo, da expressividade, e também
da “inchação” egotista, da pretensão do autor e do narcisismo do ator. Só há
mise en scène à medida em que fundada ( e fundida) no mundo, no ser, e é algo
justo se o artista é, como o poeta para Heideggger ( ao qual Mourlet
involuntariamente faz com freqüência pensar), um passageiro inspirado, pelo
qual o Espírito transita e que nada acrescenta de si mesmo à obra.
Jacques Aumont, O cinema e a mise en scène
Tradução: Luiz Soares Júnior.
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