1. 1. Há em Le départ uma cena onde
Jean-Pierre Léaud e seu cúmplice, ele também garçon-cabeleireiro, fazem-se
passar por um marajá e por seu secretário. Compreendemos rapidamente que se
trata de uma fraude ( risos) , mas ao mesmo tempo é difícil não acreditar na
existência do tal marajá. Estes poucos segundos contém talvez toda a arte de
Skolimowski: um homem que contaria maravilhosamente suas histórias e que as
terminaria com um sorriso fino, zombando da credulidade da plateia. Que preço
teria a derrisão se ela não se acompanhasse de uma arte ao menos à altura de
tornar as coisas plausíveis? Aqueles que zombam de suas próprias palavras devem
ser antes de tudo grandes oradores. Senão...
2. 2. Em O départ, um jovem de Bruxelas
sonha em participar a um rally automobilístico. Como deve ser ( constante
skolimowskiana), uma moça mais calma e mais velha que ele torna-se, sem razão
aparente, sua cúmplice e companheira. Depois de uma jornada exaustiva (
discussões, vendas e trocas, brigas,
tentativas de estupro, trabalho, encontros, etc), o herói aluga um quarto de
hotel. Na manhã seguinte, é acordado pelo ruído dos carros que passam: ele não
tinha se acordado a tempo, perdeu o rally. O que é fortíssimo nesta
história é que em nenhum momento
prevemos este final, quando no fundo, segundo toda a lógica, este é o único
possível. Quando chegamos na última cena, se diz: “claro, claro...”, mas já é
muito tarde. Em Le départ, Skolimowski
portanto soube melhor dissimular os enlaces de sua história que nos
filmes precedentes. Ele prova assim que pode se dar bem em qualquer horizonte
de cinema, por exemplo o filme comercial...
3. 3. Ao mesmo tempo , Le départ é um filme
“de nada”, menos audacioso que La barrière, menos soberano que Walkover. Para
isto, há diversas razões, todas
secundárias: diálogos menos bem cuidados ( Skolimowski não fala bem o belga);
foto ( Kurant) um pouco suja,etc. É preciso tomar este filme por um exercício
de estilo e detectar os riscos da arte pela arte. Aliás, seria inútil criticar
a Skolimowski seu excesso de talento. Ele tem o direito de fazer um ou dois
filmes na linha de Walkover, visto a importância e beleza deste último.
4. 4. Os personagens de Skolimowski são tão mais obstinados , ligados a uma idéia
fixa quanto mais o mundo não cessa de se retrair a seu contato. Eles só podem de
viver à espera de um acontecimento importante, de uma prova de força decisiva, coisas
que jamais chegarão ou chegarão mal. Só subsiste um frenesi, e isto na exata
medida em que é alimentado de entropia. Não haveria em seus filmes como ter
ponto final, uma lição medida, na medida em que todas as paródias são
permitidas. É que o provisório é a única realidade, o único valor e talvez o
último. Certezas fugitivas, pontos de referências irreconhecíveis (
travestidos), o mundo continua seu jogo,
mas algo nunca está no seu devido lugar. Esta naturalidade mesma é suspeita: é um
sonho cujo sonhador sabe que logo estará acabado. Momentos onde tudo é
suspenso, provisório, inacabado ( de que Gombrowicz diz que eles são a busca-
provisória- da “imaturidade”).
5. 5. Voltemos ao marajá. O gosto de
Skolimowski pelas farsas, as gags, é sem
dúvida polonês, , certamente uma sobrevivência potache, com certeza uma coisa
importante. Se todo filme se revela ao final uma mistificação, muito barulho
por nada e um falso rigor servindo a um
real sentimento do vazio, é evidente que cada plano, a cada instante, pode ser
“uma armadilha”. Assim, o que parecia espontâneo pode revelar subitamente
( basta um travelling dianteiro,
para trás, ou um zoom) seu pertencimento
a um plano premeditado. Tudo é legível a vários níveis: vemos assim os
“irrealismos” e estranhezas de Walkover e de La barrière tornarem-se explicáveis,
realistas, em um certo sentido. O sonho e a realidade se livram a uma troca de
bons procedimentos ao termo do qual acabam por se parecer intensamente.
Pensemos na sequência que abre La barrière. Quem ousará desde logo se
pronunciar sobre o que seja aquilo?
6. 6. Eis o domínio de Skolimowski:
convencermo-nos ao mesmo tempo do
caráter evidente e arbitrário do cinema. Um plano pode pertencer
simultaneamente a dois ou três contextos possíveis, onde ele teria a
desempenhar um papel diferente mas plausível. Trata-se unicamente de não
limitar o sentido, -não, é claro,
fazendo filmes “insensatos”, mas pelo contrário: dando-lhes um excesso
de sentido. O que conta é o deslocamento ( dépaysement): durante alguns
segundos, , não mais reconhecer o mundo ou a praça de Brouckère, nem mesmo
saber mais se este mundo foi feito para nosso uso. Durante um segundo, duvidar
de tudo e não mais se habituar. Habituamo-nos menos às coisas quando elas
possuem duplo ou triplo sentido. O que contam seus filmes : vale mais a pena se
agitar em todos os sentidos do que chegar em algum lugar. Esta é também a
maneira como são contados: vale mais agitar todos os sentidos, todos os
registros...Skolimowski é o homem que diz: vejam um personagem; se eu o filmo
de longe, temos uma comédia musical; de mais perto, um melodrama; de mais perto
ainda, temos cinema verité. Tudo é verdadeiro. Que cada um escolha o que lhe
convém. Eu escolho tudo.
Serge Daney, Cahiers du Cinéma, 192
Tradução: Luiz Soares Júnior.
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