Muito mais que
aquilo que fere, o público teme aquilo que se recusa. Ele espera de um filme
que se enderece a ele e o comprometa no jogo de uma mecânica fascinatória,
oferecendo-lhe certas referências e suportes que lhes possam oferecer um apoio.
Ao se ver confrontado com o desenrolar fixo de superfícies lisas, sem
impacto nem captação possíveis, ele se
sente insatisfeito, inútil. Talvez as razões às quais se atribua o insucesso
comercial de Tempos de guerra (perplexidade
diante de uma série de fatos desprovidos de outra função que a informativa, a
impossibilidade de designar tranquilamente culpados em personagens, aliás, aos
quais é impossível se identificar) tenham seu ponto comum em uma privação
diante deste filme sem horizonte prévio (arrière-plan),
subterfúgio ou nenhuma espécie de densidade, filme cujo mistério se expõe a céu
aberto, e que, rebelde tanto à decifração quanto à refração, apenas exige uma
leitura de suas superfícies. Neste sentido, as desgraçadas aventuras de
Michel-Ange e de Ulysse ( vasta soma de
frustrações) figuram excelentemente as frustrações de um público que substitui
também a impaciência ao recolhimento, a acumulação à síntese, a desmesura à
modéstia, ansioso por um “segredo atrás da porta” ( não há nenhum, é claro, mas
de qualquer maneira os carabineiros perderão a vida) e, ao não receber a verdade em sua clareza imediata , só
descobre, ultrapassados os limites da tela, o seu duplo agonizante.
O espectador
aliás aceita muito bem a não-identificação, desde que se lhe acorde o papel de
testemunha onisciente e a possibilidade de um sobrevôo explicativo sobre a
obra. Mas, igualmente privado deste privilégio, ele se vê senão confundido aos
personagens, ao menos relegado ao seu nível, submetido aos mesmos avatares,
obstinadamente apartado de um domínio que, como eles, ele anseia possuir ( para
eles: a guerra, o rei, o inimigo, o Universo; para o espectador: o filme). O mal-estar
intensifica-se com o fato de que este aspecto incontrolável do filme se dubla
de uma brevidade do traço, de uma retração do tempo, à medida em que os eventos
são apresentados em estado bruto. Godard explicou-se claramente em relação a
isto: cada sequência, ou mesmo cada plano, corresponde a uma idéia, um
sentimento ou um fenômeno preciso em relação ao fator guerra: a violência, a ocupação,
os sequestros, o silêncio... A composição do filmar não advém, portanto, da
ordem do desenvolvimento, mas da repartição. Às clássicas variações sobre o
tema da Guerra, objeto único apresentado sob luzes diferentes, Godard
substitui o seu contrário: a
distribuição, segundo a definição de Stockhausen, de “objetos diferentes sob a
mesma luz, que os atravessa”.
Resta a
objeção massiva e, segundo cremos, definitiva: por que os cartões portais? Para
isto, basta responder que estes figuram, com a falsa evidência de um epílogo ,
o lugar de colisão das múltiplas células do filme( epílogo enganador,
desmentido por sua vez pelo que se lhe segue: a desintegração desta ordem).
Além do mais, esta estratégia corresponde a um dos Axiomas mais fundamentais da
arte atual: “diz-me como tu classificas, e eu te direi quem és”- enfim, admitimos com facilidade a monumental enumeração de
navios, armadas- mas em Homero, é claro. É verdade que neste caso temos o
prazer ou o luxo de saltar as páginas em questão. Tempos de guerra nos
interdita esta operação: impossível escapar ao filme, impossível captar seu tempo.
Nem do lado de fora, nem completamente dentros do filme, ao mesmo tempo contemporâneos
e em retardo, o espectador sofre a experiência da mais inconfortável das posições.
Mas esta situação falsa é também- é por aí que o filme redefine a noção de
espetáculo- a situação verdadeira do espectador: contíguo à obra sem com esta
confundir-se nem misturar-se, presente no filme, mas presente de como se diz de
uma testemunha que assistiu ao acidente. É o lugar do espectador absoluto. É natural
que esteja vazio.
Jean
Narboni, Cahiers du cinema, 161-162
Tradução: Luiz Soares Júnior.
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