sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Tempos de guerra por Jean Narboni




Muito mais que aquilo que fere, o público teme aquilo que se recusa. Ele espera de um filme que se enderece a ele e o comprometa no jogo de uma mecânica fascinatória, oferecendo-lhe certas referências e suportes que lhes possam oferecer um apoio. Ao se ver confrontado com o desenrolar fixo de superfícies lisas, sem impacto  nem captação possíveis, ele se sente insatisfeito, inútil. Talvez as razões às quais se atribua o insucesso comercial de Tempos de guerra  (perplexidade diante de uma série de fatos desprovidos de outra função que a informativa, a impossibilidade de designar tranquilamente culpados em personagens, aliás, aos quais é impossível se identificar) tenham seu ponto comum em uma privação diante deste filme sem horizonte prévio  (arrière-plan), subterfúgio ou nenhuma espécie de densidade, filme cujo mistério se expõe a céu aberto, e que, rebelde tanto à decifração quanto à refração, apenas exige uma leitura de suas superfícies. Neste sentido, as desgraçadas aventuras de Michel-Ange  e de Ulysse ( vasta soma de frustrações) figuram excelentemente as frustrações de um público que substitui também a impaciência ao recolhimento, a acumulação à síntese, a desmesura à modéstia, ansioso por um “segredo atrás da porta” ( não há nenhum, é claro, mas de qualquer maneira os carabineiros perderão a vida) e, ao não receber  a verdade em sua clareza imediata , só descobre, ultrapassados os limites da tela, o seu duplo agonizante.

O espectador aliás aceita muito bem a não-identificação, desde que se lhe acorde o papel de testemunha onisciente e a possibilidade de um sobrevôo explicativo sobre a obra. Mas, igualmente privado deste privilégio, ele se vê senão confundido aos personagens, ao menos relegado ao seu nível, submetido aos mesmos avatares, obstinadamente apartado de um domínio que, como eles, ele anseia possuir ( para eles: a guerra, o rei, o inimigo, o Universo; para o espectador: o filme). O mal-estar intensifica-se com o fato de que este aspecto incontrolável do filme se dubla de uma brevidade do traço, de uma retração do tempo, à medida em que os eventos são apresentados em estado bruto. Godard explicou-se claramente em relação a isto: cada sequência, ou mesmo cada plano, corresponde a uma idéia, um sentimento ou um fenômeno preciso em relação ao fator guerra: a violência, a ocupação, os sequestros, o silêncio... A composição do filmar não advém, portanto, da ordem do desenvolvimento, mas da repartição. Às clássicas variações sobre o tema da Guerra, objeto único apresentado sob luzes diferentes, Godard substitui  o seu contrário: a distribuição, segundo a definição de Stockhausen, de “objetos diferentes sob a mesma luz, que os atravessa”.

Resta a objeção massiva e, segundo cremos, definitiva: por que os cartões portais? Para isto, basta responder que estes figuram, com a falsa evidência de um epílogo , o lugar de colisão das múltiplas células do filme( epílogo enganador, desmentido por sua vez pelo que se lhe segue: a desintegração desta ordem). Além do mais, esta estratégia corresponde a um dos Axiomas mais fundamentais da arte atual: “diz-me como tu classificas, e eu te direi quem és”- enfim, admitimos   com facilidade a monumental enumeração de navios, armadas- mas em Homero, é claro. É verdade que neste caso temos o prazer ou o luxo de saltar as páginas em questão. Tempos de guerra nos interdita esta operação: impossível escapar ao filme, impossível captar seu tempo. Nem do lado de fora, nem completamente dentros do filme, ao mesmo tempo contemporâneos e em retardo, o espectador sofre a experiência da mais inconfortável das posições. Mas esta situação falsa é também- é por aí que o filme redefine a noção de espetáculo- a situação verdadeira do espectador: contíguo à obra sem com esta confundir-se nem misturar-se, presente no filme, mas presente de como se diz de uma testemunha que assistiu ao acidente. É o lugar do espectador absoluto. É natural que esteja vazio.



Jean Narboni, Cahiers du cinema, 161-162

Tradução: Luiz Soares Júnior.

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