Por Serge Daney
O monstro é quem teme
Este filme é singular em vários sentidos. E primeiramente por causa daquilo que David Lynch realiza a partir da idéia de medo: o medo do espectador (nossos) e aqueles pertencentes às personagens, incluindo o de John Merrick (o homem elefante). Deste modo, a primeira parte do filme, até a chegada ao hospital, funciona um pouco por assim dizer a exemplo de uma armadilha. O espectador é induzido a pensar que mais cedo ou mais tarde ele terá que testemunhar algo insurpotável ao defrontar-se com o monstro. Um grosseiro saco com um buraco para olhar é tudo que o separa do horror que ele conjetura. O espectador é conduzido ao filme à maneira de Traves, a partir do ângulo do voyerismo. Ele presta-se (ainda do mesmo modo que Treves) a ver uma aberração (1): este homem elefante sucessivamente exibido e ignorado, abrigado e agredido, sumariamente visto em uma espelunca, uma “excentricidade” para os cientistas, levado e escondido ao hospital real de Londres. E quando o espectador o vê afinal, ele é tão desapontador que Lynch simula praticar o jogo do filme de horror clássico: noite, corredores desertos de hospitais, nuvens movendo-se rapidamente em um céu carregado, e repentinamente neste ponto surge a tomada de John Merrick levantado em sua cama, acometido de um pesadelo. O espectador o vê – realmente – pela primeira vez, mas o que ele também vê é que aquele monstro o qual espera-se temer é quem sente medo. É neste momento que David Lynch liberta seu espectador da armadilha primeiramente estabelecida (a armadilha do “algo a ser visto”, como se Lynch estivesse dizendo: você não é aquele que importa, é ele, o homem elefante; não é o teu medo que me interessa mas o dele; não é o teu medo de vir a se chocar que eu quero manipular mas o medo dele de assustar, o medo dele em se ver no olhar de outro. A vertigem toma outro partido.
O salmo é um espelho
O Homem Elefante é uma série de ações bem-sucedidas de théâtre, algumas divertidas (a visita da princesa ao hospital como uma “dea ex machina”), outras mais transtornantes. Nós nunca sabemos como uma cena pode terminar. Quando Treves deseja convencer Carr Gomm, o diretor do hospital (magnificamente vivido por John Gielgud), de que Johm Merrick não é um incurável, pede a este que memorize e venha a recitar em seguida o início de um salmo: mas tão logo os dois médicos deixam o recinto, eles ouvem Merrick recitar o final do salmo. Impacto, coup de théâtre: este homem o qual o próprio Treves considera um cretino sabe a bíblia de cor. Mais tarde, quando Treves o apresenta a sua esposa, Merrick não pára de surpreendê-los ao mostrar o retrato de sua própria mãe (ela é lindíssima) e por ser o primeiro a oferecer um lenço à esposa de Treves, que repentinamente derrama-se em lágrimas. Há um discreto humor na forma de posicionar o homem elefante como o único que sempre preenche a foto na qual se configura, o único que marca a tela. É também um modo bastante literal e de nada psicológico de conduzir a história: com dois saltos e uma lógica significante. Assim John Merrick encontra seu lugar no painel da (alta) sociedade inglesa, vitoriana e puritana, pela qual ele torna-se uma atração obrigatória. Ele é somente algo que esta sociedade precisa, sem o qual ela não pode ser completa. Mas o que exatamente? O fim do salmo, o retrato, o lenço, o que eles são no fim das contas? Quanto mais o filme progride, mais claro fica para aqueles ao redor dele: o homem elefante é um espelho. Eles vêem menos e menos, mas eles mesmo se vêem mais e mais em seu olhar.
Os três olhares
No curso do filme, John Merick é o objeto de três olhares. Três olhares para três eras de cinema: burlesca, moderna, clássica. Ou: a funfair, o hospital, o teatro. Há primeiramente o olhar inferior, a observação das pessoas humildes, e a aspereza de lynch, uma observação precisa, sem afabilidade, sobre este olhar. Há um bocado de carnaval na cena onde Merrick é embriagado e raptado. No carnaval, não há nenhuma essência humana a ser representada (equiparado com a face de um monstro), há somente corpos tratados com somenos importância. Então há o olhar moderno, o olhar fascinado do doutor (um notável Anthony Hopkins): respeito ao próximo e má consciência, mórbido erotismo e epistemologia. Depois de cuidar do homem elefante, Treves se resguarda: é a primeira luta do humanista (à la Kurosawa). Finalmente, há o terceiro olhar. Quanto mais o homem elefante é popular e celebrado, quanto mais outras pessoas lhe visitam têm tempo para cobrirem-se numa máscara, uma máscara de cortesia que dissimula aquilo que eles sentem a respeito de sua visão. Eles vão ver John Merrick para pôr à prova esta máscara: se seus medos os traíssem, eles viriam o reflexo dentro dos olhos de Merrick. É deste modo que o homem elefante é o espelho deles, não um espelho onde eles pudessem ver e reconhecer a si mesmos mas um espelho para aprender a atuar, dissimular, mentir e até mesmo mais. No começo do filme, havia a abjeta promiscuidade entre a aberração e o homem a exibi-lo (Bytes), até que Treves fica mudo, extático horror no ambiente. No fim, é a Sra. Kendal, a estrela do teatro de Londres, que decide, quando lê um jornal, tornar-se amiga do homem-elefante. Numa cena bastante desconfortável, Anne Bancroft, como a estrela convidada, vence uma aposta pessoal: nenhum músculo de sua face estremece quando é apresentada a Merrick, a quem fala como se fosse um velho amigo, indo tão longe naquela que até o beija. O ciclo se fecha, Merrick pode morrer e o filme pode terminar. Sobre uma mão, a máscara social foi inteiramente reconstituída; sobre a outra mão, Merrick ao menos pôde ver no olhar do outro algo totalmente diferente do reflexo da aversão que ele inspira. O quê? Ele não poderia dizer. Ele compreende o cúmulo do artifício pela verdade e claro que ele não está errado - desde que nós não estejamos no teatro.
O homem elefante cultiva dois sonhos: dormir sobre suas costas e ir ao teatro. Ele irá realizá-los na mesma noite, um pouco antes de morrer. O final do filme é bastante comovente. No teatro, quando Merrick se esforça de sua cabine para conferir quem lhe dirige aplausos por vê-lo, nós realmente não temos a mínima idéia do que se passa em seu olhar, nós não sabemos aquilo que ambos vêem. Lynch conduz assim a remição de um pelo outro, dialeticamente, monstro e sociedade. Ainda que somente no teatro e por uma única noite. Não haverá outra representação.
(1) Em inglês no texto, freak
Cahiers du cinéma, n° 322, Paris, 1981. Tradução de Felipe Medeiros.
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