Esqueci em
que circunstâncias exatas eu conheci Daney- na época, nos chamávamos por nossos
nomes ( sobrenomes). Este grande rapaz austero, sentencioso e apaixonado me
intrigava. Ele acabara de seguir, como nós, a retrospectiva Hawks de 1962 na
Cinemateca da rua de Ulm, onde Jean-Pierre Biesse, o primeiro morto dentre os
cinéfilos de nossa geração, deixava-se regularmente deslizar ao longo da rampa
que levava ao subsolo, e assim chegava antes ao guichet, sorridente de ter
passado à frente de todo mundo para ver Le harpon rouge ou Ceiling Zero. Daney
pertencia ao pequeno grupo vindo da classe de Agel no Liceu Voltaire, que iria
atrair nossa atenção pela audaciosa fundação de uma revista, Rostos do cinema,
que nos propunha um número Hawks e um sobre Preminger. Eu creio que ele entrou
nos Cahiers antes de mim, e eu o encontrava ao acaso entre nossas idas à
revista ainda amarela e entre projeções de filmes na Cinemateca, aos diversos
cineclubes ( de forma notável o Cine Qua Non em Escurial, onde descobrimos An affair
to remember de Leo McCarey, House of strangers de Mankiewicz e sobretudo Wind
across the everglades de Nicholas Ray 1, em projeções magníficas à época).
Esqueci muita coisa desta época em que eu era estudante, e as lembranças que
restam se misturam.
Foi apenas
em 1970, depois de quatro anos passados na Itália, que eu reencontrei Daney nos
Cahiers ( o Cahiers tornado austero, como prolongamento de 1968). Ele tinha
mudado: estava sorridente, engraçado, não tão sério quanto esta sinistra França
de Pompidou. Daney evocava suas viagens naquilo que se chamava então
terceiro-mundo, e eu tinha sido muito marcado por um texto que ele escrevera
sobre Pocilga e sobre a relação que estabelecia no filme a partir das palavras porco e corpo. Nesta época, Daney falava com freqüência de Paulhan, de que
admirava a escritura enigmática, esta forma perturbadora de parecer arriscar
palavras modestas. Ele amava os cadernos encadernados de páginas coloridas que
não ousava recobrir de tinta, as canetas e os lápis, os livros de Stevenson, de
quem no entanto vendeu a edição completa de Edimburg a Bernard Eisenschitz para
se pagar uma viagem- talvez à Índia. Foi nesta época que descobri em Serge alguém
que adorava falar e rir. Começou então nosso hábito de nos encontrarmos nos
cafés, e sobretudo nos restaurantes. O primeiro de que me lembro foi o Petit
Marseillais, rua de Charonne, que permanece de pé mas que perdeu seu grande
cartaz do lado de fora representando Carlitos , cartaz sobre o qual se pregava
o cardápio operário que nos satisfazia. As mesas eram coladas umas ao lado das
outras, e no meio do burburinho podíamos citar de letra as réplicas do Tigre de
Bengala e do Túmulo indiano, que neste período tão sisudo exprimiam a liberdade
de viver e o verdadeiro sublime popular- uma vez que já os havíamos
compartilhado tantas vezes com os espectadores de todas as cores das salas dos
bairros do XI e do XX distritos. O fato de que na época houvesse a
efervescência Godard-straubiana não perturbava em nada nossa admiração, capaz
de se deslocar rapidamente de uns aos outros, com o auxílio- no caso de Serge-
de teorias de que ele se apossava com sua maneira tão pessoal de assimilar
todas as coisas. Algum tempo depois- apesar dele dizer em algum lugar que fui
eu que o levei a descobrir Jacques Tourneur-, foi ele quem me falou em primeiro
lugar de forma tal que eu não pude senão passar a amar os filmes deste
cineasta. Foi a partir deste momento que comecei a receber cartões-postais que
Serge enviava a algumas pessoas de todos os países onde se encontrava. Os
textos, ao contrário dos que escrevia sobre cinema, eram deliberadamente leves
e frívolos: jogos de palavras, referências, comentários sobre o cartão
escolhido, citações desviadas de diálogos de filmes, evocações de personagens.
Aquele que freqüentemente voltava à baila como o mais belo personagem do
díptico indiano de Lang era Asagara que, como que por acaso, fazia a ligação
entre o Maharadjah, o arquiteto e a dançarina. Há muito de Serge neste personagem: esta forma
de acusar a paulada recebida em silêncio, que se adivinha através de uma
passageira perda de presença no olhar.
Esqueci de
dizer que um evento cinematográfico importante havia abalado nossas certezas de
herdeiros da Nouvelle vague: foi a retrospectiva John Ford, que havia feito em
1963 a gloriosa inauguração da Cinemateca de Chaillot; esta iria impor uma
polêmica, jamais resolvida e sempre viva, sobre quem seria o maior entre Hawks
e Ford, polêmica concernente tanto aos cineastas quanto àqueles que refletiam
ponderadamente sobre cinema. Creio que não serei indiscreto se revelar que hoje
em dia Rohmer e Brisseau estão em desacordo sobre a grandeza de um e do outro.
De meados de
1975 a 1992, Serge Daney precisou seu pensamento com uma intensa clareza de
escritura nos textos que compõem A rampa, Ciné Journal, Le salaire Du zappeur,
Devant La recrudescence..., e Traffic; e de uma forma tal que basta lê-los uma
única vez para ter uma idéia do que fez ou foi. Eu continuei a vê-lo mais ou
menos regularmente: com o tempo, mudamos de restaurante. Ele continuou a enviar
cartões postais com regularidade deste ou daquele país. Nos reencontramos em
Paul, rua de Charonne, onde a gata Trottinette entronava-se sobre o guichet,
por onde passavam pratos copiosos e banhados de batatas saltadas de forma
irregular. A conversa podia durar mais tempo, mais tarde, neste restaurante
talvez argelino da rua de Lappe, no qual Serge havia achado o contrafilé totalmente
honesto. Logo apelidamos o restaurante de Honesto ( sincère). Encontro a tal
hora no Honesto! Mais tarde nós o traímos com outro, rapidamente chamado o
Neo-Honesto, muito menos satisfatório. Falávamos evidentemente muito e por
longo tempo, e eu estava de tempos em tempos em desacordo com seus julgamentos
no detalhe, mas regularmente me achava perturbado pela forma clarividente que
ele encontrava de relacionar os cineastas do mundo inteiro por meio de
encadeamentos de ligações que era o único a encontrar. O que o atraía, como que
por uma forma de imantação, era o movimento do cinema em seu conjunto- conjunto
constituído de partes distintas que raramente se percebiam umas às outras, e
que aparentemente não faziam nenhum esforço para que esta recíproca percepção
ocorresse.
Ele, o
vigilante, via do alto e de longe aquilo que se tramava nos filmes e entre os
filmes, mesmo quando estes eram fechados em sua singularidade. Foi por causa
disso que passei a querê-lo ainda mais quando, mais ou menos entre 1983-1984,
ele resignou-se rapidamente a registrar aquilo que chamava- e que outros se
precipitaram em retomar- de a morte do cinema, confundindo as manifestações
mais mórbidas de uma certa retomada ( no sentido de reprise, reprisar)
cinefílica com coisas mais soberanas e então indiscerníveis. Foi em parte por
oposição ao seu diagnóstico, que eu atribuía à sua fascinação pelas mídias que
ele expunha no Libération, que empreendi nos Cahiers as “Crônicas de cinema” em
1985. Mas ele permanecia no entanto meu principal interlocutor, e quaisquer que
fossem nossos dissensos e às vezes nossas disputas- foi a única pessoa com quem
me irritei várias vezes-, jamais foram por razões pessoais; e com o tempo, se
consolidaram nossas posições de fundo sobre o cinema e a curiosidade maior, em
relação a Serge- eu era mais confiante, logo menos curioso- por aquilo que o
cinema iria se tornar. O projeto da Traffic nasceu em 1986, e Paulo Branco devia ser o produtor. O batismo
deste projeto de revista deu-se no começo de 87 em um restaurante russo da rua
de Lappe, cujo standing ( reputação) era
manifesto pelo afastamento excepcional das mesas. Pouco convencido com a direção
unicamente reflexiva, eu me revoltava contra a idéia de escrever outra coisa
senão estas Crônicas, que eu amava como uma espécie de território pessoal onde
eu era livre. Com a neve abundante fazendo as vezes de catalisador, terminei
subitamente quinze dias mais tarde Le Champignon des Carpathes, que iria me
reter ( assim como um infeliz filme em seguida) ocupado longe da escrita
durante dois anos.
Foi só no
fim de 1990, com tantas coisas acabando mal- Serge com o vírus da Aids, os
eventos internacionais tendo como conseqüência a vexação das mídias, a Romênia
e depois a guerra do Golfo à porta-, que eu tive a certeza de que havia
urgência em fazer a Traffic. Desde outubro de 1990 até os últimos dias de sua
vida, fui impulsionado pela força moral de Serge que, eu creio, marcou a todas
as pessoas de quem se aproximou. Ele jamais perdeu esta capacidade que tinha de
se rir das coisas divertidas que lhe contavam e de contá-las ele mesmo, pelo
prazer de encontrar a palavra certa, forçosamente engraçada, contar coisas que
o intrigavam ou retinham sua reflexão. Pela
primeira vez, se ele se sentia definitivamente não-reconciliado com a sociedade-
mas amando mais do que nunca o mundo sobre o qual o cinema havia velado desde
seu nascimento-, eu me sentia totalmente em acordo com ele em todos os pontos,
até o limite de crer que eu encontraria por minha conta tudo o que ele pensava,
de tal forma me identificava com as formulações felizes que inventava
espontaneamente. Falar, que quando em demasia o fatigava, era no entanto um
oxigênio que acabou por lhe faltar. Ele só nos escutava a fim de relançar seu
pensamento, que buscava fazer avançar, esperando ganhar tempo. Eu sabia que
podia chamá-lo até 1 h 15, às vezes 1h 30 da manhã. Foi no último mês de sua
vida , quando todo esforço físico lhe era impossível ( e quando ele queria
economizar o que lhe restava para poder escrever de manhã), que eu me resignara
a jamais chamá-lo depois da meia-noite. Ele era orgulhoso a ponto de querer dar
a impressão de que jamais precisava dos outros- só me chamava para falar de
Trafic-, ele que jamais cessou de estar à frente dos outros, ao descobrir seus
filmes. No planeta estilhaçado do cinema dos anos 60, ele ia ao encontro destes
pedaços que não podiam mais se integrar: foi o primeiro a nos assinalar, ao
escrever, a existência de Pelechian e Kiarostami; ele nos lembrou que havia
outras capitais de cinema que não Roma e Hollywood, que elas estavam
disseminadas pelo mundo, no Burkina-Faso, no Irã, em Portugal, nas Filipinas e
além: e que podíamos identificar estas capitais tão logo um cineasta- isolado
como estivesse- registrasse sua percepção do mundo onde vive e inventasse sua
forma particular de dizê-la. E que o
cinema vivo nascia deste passo. Ele me fez tomar consciência que eu mesmo desde
a infância era enojado com o cinema francês dos anos 40-50, e que o cinema
também podia apreender a vida, coisa que adivinhávamos no cinema italiano e,
com muita ingenuidade ( naïveté), nos filmes hollywoodianos. Parece-me que eu
devo à sua memória contar que ele tinha a intenção, logo depois da polêmica a
propósito de Uranus, de enviar a Claude Berri um exemplar de Devant La recrudescence...
com a dedicatória- retomava o termo com que ele havia saudado Berri- “Tiens ma poule, voilà de la lecture! (
Toma, minha vaca, eis o que deves ler!). E que havia renunciado a isto devido
ao esforço de buscar o endereço de Berri, acabando por confessar- diante desta
evidente perda de tempo- que ele não queria mandar nada realmente. Serge
considerava que o cinema havia de tal modo se estreitado em alcance, que não se
podia mais odiar ninguém, e calarei pudicamente o nome de seu único inimigo.
Trafic se
fez regularmente no Grandes marches ( restaurante parisiense), Place de La Bastille,
que nós batizamos sem o menor sucesso de Place Straub em homenagem ao movimento
giratório de Trop tôt trop tard. Outro lugar destruído de que o cinema dá
testemunho. Era no Grands Marches que S.D. recebia as pessoas, e a primeira
quarta-feira em que a reunião hebdomadária foi anulada- já que acabara de
chegar de viagem e me encontrava só no Grands marches-, eu a experimentei como
um dia de luto. O primeiro filme que vi com ele em sala foi Van Gogh, e o último que teve forças para ver foi
Antígona, que vi mais tarde. Serge foi o primeiro- e desde muito tempo já- a
ousar brincar com os Straub, que possuem na verdade mais humor e senso cômico
que muitos cineastas; ele, que escreveu os melhores textos e mais profundamente
admirativos que escreveram sobre eles, ousou ( ele me contou ao telefone) dizer
na saída de Antígona a Jean-Marie Straub: “Eu preferia seu período frívolo”. Eu
não vejo Kazan ou Kubrick aceitando ouvir coisas assim, pelo menos não como uma
eventualidade concebível.
Sempre ao
telefone: uma noite, Serge me explica longamente os movimentos migratórios dos
povos quase esquecidos através da Sibéria, o Irã, o mundo árabe; ele tinha uma
febril paixão em querer manter presente em sua memória, com a ajuda de um
grande atlas desdobrado, esta intensa circulação humana que não havia cessado
de existir em certas partes do mundo, descrevendo-as como se o cinema tivesse
registrado e guardado alguma coisa que nenhuma simplificação interpretativa,
nenhuma visão esquemática das paixões, dos desejos, das circunstâncias
econômicas e históricas pudesse desbotar. Como se o Mundo só estivesse
esperando que Griffith e seus genros Walsh e Ford, e seus pequenos sobrinhos do
outro lado do Atlântico (Godard e Pasolini) pudessem conservar alguma coisa que
havíamos percebido, e que ficaria disponível à espera de outros clarividentes
transeuntes. Era como uma espécie de embriaguês da memória, onde ele se
colocava apenas como uma espécie de médium oral, onde sua própria existência
contava pouco, com o senão de que este país que evocava na noite do telefone,
Serge havia percorrido ao longo de sua juventude- percorrido a pé e
provavelmente nestes velhos ônibus que vemos no Subida ao céu de Buñuel. Eu
ainda o vi rir no primeiro dos oito dias que devia durar seu 49 º ano, quando
eu lhe contava sobre um dos quatro filmes de John Dorr, The case of the missing consciousness, onde o herói ( interpretado
pelo cineasta) está dolorosamente solicitado por dois farmacêuticos rivais, que
o usam como suporte de experiências, como se escrevia antigamente, terrificantes
e/ou excêntricas ( loufoques). No dia
seguinte, quando o SAMU veio buscá-lo para levá-lo até o hospital onde acabaria
seus dias, ele ainda teve a leveza de espírito de rir desta coincidência entre
seu estado e a narrativa da véspera. Durante sua doença, que durou vinte meses,
não pude nada senão calcular a extensão de seu sofrimento.
Jean-Claude
Biette ( Cahiers du
cinéma, nº 458, julho-agosto 1992)
Tradução:
Luiz Soares Júnior
Nota:
1. As rubricas com os nomes dos
diretores são do tradutor