segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Morte de um conceito


Vemos claramente hoje, a mais de sessenta anos da sessão do Grande café, que uma palavra simboliza tanto a substancial história da arte cinematográfica, assim como a maneira com que a linguagem crítica se empenhou em dar conta dela. É a palavra mise en scène, que se aplica com efeito, com igual ventura, ao L’Arroseur arrosé, O Assassinato do duque de Guise, Nascimento de uma nação, O encouraçado Pontenkime ao último Preminger. Dos dois conceitos gêmeos que permitem à crítica “captar” os filmes ( como se usasse um bisturi), a palavra mise en scène designa antes aquilo que, para além do sujeito, designa o “modo de fazer” ( rendu).

Desde Delluc, julgar um filme consiste sempre em julgar a interpretação dos atores,a qualidade dos diálogos, a beleza da fotografia, a eficácia da montagem. E se, durante trinta ou quarenta anos, a crítica  pôde se acercar com mais precisão de seu objeto, é que de fato o cinema não evoluiu,. Ou antes: que ele só evoluiu no interior do conceito definido pelo de mise en scène.

Desde então, compreende-se o embaraço de nossos críticos diante das obras mais representativas dos últimos anos: é que eles são vítimas de sua linguagem. Porque os filmes hoje falam cada vez menos a linguagem da mise en scène, então como então os críticos prisioneiros desta palavra poderiam compreendê-los? Acho que não há ainda hoje, em 1967, diálogo justo entre a crítica e os filmes de Godard. Armados de um vocabulário ultrapassado, os críticos só podem falar de forma conveniente de filmes ultrapassados. Os outros, os que nos importam, permanecem convenientemente longe de seus campos de percepção. Pois não é que eles os desprezam; eles não os enxergam.

Ora, o que questionamos nós, aqui no Cahiers? Que se faça um pouco de luz sobre este estado de coisas, ou que ao mesmos iluminemos os pés da dançarina!!Petrificados como todos em conceitos extenuados, o que temos feito? Ok, temos essencialmente nos esforçado de nos ajustar ao cinema novo- explicando, por exemplo, ( tranqüila ou raivosamente) que a mise en scène não é apenas o “rendu”( o modo de fazer”), mas a idéia também; não apenas a premeditação e a ruse ( esperteza), mas também o collage e o acaso; não apenas o exuberante plano de grua da abertura da Marca da maldade, mas também estes planos “jogados na lixeira” de que fala Chabrol a propósito de alguns Aldrichs; não apenas a extraordinária performance de Audrey Hepburn em Philadelphia story, mas também as patéticas aparições destes heróis documentários que encarna Jean-Pierre Léaud nos filmes de Truffaut, Godard, Eustache, de Skolimowski; em suma, que a mise en scène não é apenas a mise en scène, mas também o contrário do que havíamos pensado seguindo a linha de Delluc.

É-nos necessário perguntar para que serve uma palavra que é necessário sem cessar explicar, sem cessar impor esclarecimento circunstanciados pelos filmes, segundo o autores. Por que não nos desembaraçarmos, como fez a pintura da palavra figurativo? Por que não abandoná-la uma vez por todas àqueles que, sintomaticamente, dela se orgulham tanto: os Delannoy e Duvivier, os Prat e Lorenzi, ou ainda Barrault e Villar- ou seja, àqueles todos que fazem da mise en scène uma Tróia do romance balzaciano, zumbis aplicados na sobrevivência de um cinema ( ou de um teatro) exangues, trabalhadores cegos que assombram estes sepulcros irrespiráveis que são a maioria das salas de cinema (e de teatro) de Paris e de qualquer outro lugar? E se a crítica consiste em falar do cinema até que o cinema fale por si ( vê-se aí como é absurdo opor crítica e cinema de outra forma que a relação da moeda e seu inverso), por que não buscaríamos os conceitos de que somos necessitados nos domínios vivos da publicidade, da cibernética ou mesmo da pintura, da escultura ou da música?

Um autor chinês conta que pescadores cegos jogavam um dia sua rede num lago.
Então, abramos os olhos! o cinema se deslocou. Não tentemos mais pescá-lo. Cassemo-lo!.


André Labarthe

Cahiers du cinéma, número 195 novembro 1967

Tradução: Luiz Soares Júnior

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