sábado, 27 de julho de 2013

Da origem do maneirismo ao maneirismo das origens. Filmar Florença: Obsessão de Brian de Palma e Síndrome de Stendhal de Dario Argento.






Como filmar uma cidade, e como a escolha de Florença pode influenciar o gesto criador? Uma cidade pode se situar na origem de um gesto fílmico de três maneiras. Antes de tudo, ela pode se encontrar na origem como um lugar preexistente. A cidade constitui um conjunto determinado de ruas e de casas que o cinema registra, atento à maneira como se agencia um real originário. Encontramos neste culto pela imagem documentária as teorias bazinianas: é suficiente que se mostre a arquitetura de uma cidade e seus imóveis para captar o gênio de um lugar, a memória que este retém, sua grandeza e solidão. Em seqüência, ser sensível à aura de uma cidade consiste em capturar dela imagens originais: evitar os clichês que se interpõem entre o que o visitante vê e o que ele experimenta, e fazer da cidade o emblema de uma relação com o mundo. Enfim, a  origem também nos remete a um desejo originário: a cidade se torna o motivo de eleição de um devaneio uterino: filmar a cidade é também fantasmagorizá-la, como cérebro ou como mãe. Estas três relações à origem ( o originário, o original, o desejo originário) permitem também delinear três formas de relação à imagem ( para irmos logo ao ponto: o documentário, o ontológico e o psíquico). Estes três forçosamente não se excluem, e podem até mesmo se combinar entre si. Se os entrelaçamentos destes diferentes modos são complexos, querer filmar Florença consolida de forma considerável a escala desta complexidade, pois esta é certamente das cidades mais fascinantes, quiçá a mais fascinante. Como escreveu Sartre, “ela possui a liquidez do rio, o doce ardor dourado do ouro, e  se entrega com decência”.

As fascinações que ela suscita são múltiplas: fascinação histórica, pois revolucionou a história da arte, como da Itália e da Europa; fascinação estética, por um lado devida aos seus monumentos: a Ponte Vecchio, o Palazzo Pitti, a Galeria dos Ofícios- e, por outra, à força visionária dos homens que nela habitaram: Dante, Laurent de Médicis, Machiavel; ela fascina enfim por intermédio dos artistas a quem fascinou ( Madame de Staël, Stendhal, Musset, entre outros). Mais que uma cidade, Florença é um mito da civilização e da cultura ocidentais: a cidade aurática por excelência, ao mesmo tempo templo estético e  emanação temporal. Se um cineasta quer filmar imagens de Florença, quais deve conservar? Pode privilegiar algumas em detrimento de todas as outras? Mas ao filmar apenas imagens, ao não filmá-la senão como imagem, filma-se ainda Florença? A relação entre o real e a imagem não é direta e imediata, e  é isto o que constitui sem dúvida o cerne de uma estética florentina. É esta questão que a reflexão maneirista trabalha.

A problemática maneirista é essencial para se compreender Florença; o maneirismo é, ao mesmo tempo, um momento de sua história estética, através dos escritos fundadores de Vasari, e um esquema de sua arquitetura: penso aqui nos jardins de Boboli, aplicações maneiristas sobre a paisagem urbana e modo de ser da imagem florentina. Anamorfoses, alongamentos, fragmentações celebram assim uma síntese pictórica da tortura e do esfacelamento. O evento figurativo não mais é a partir de agora o objeto representado, mas as distorções trazidas aos cânones da representação. A figuração experimenta emancipar-se do real para tornar-se seu próprio objeto. O maneirismo é o momento de uma crise eufórica da imagem e da aparência, crise que afeta tanto pintores como o Parmigianino quanto filósofos como Machiavel. Origem do pensamento maneirista, cidade das imagens maneiristas, cidade maneirista; Florença se constrói sobre um paradoxo: ela é o lugar da crítica mais extremada, assim como da fascinação maior. É possível fundar uma imagem cinematográfica sobre este paradoxo? É possível articular uma “colocação em crise” ( mise en crise) e  uma fascinação? A imagem como forma de estudo crítico permite a restauração por outros meios de uma imagem aurática?

Brian de Palma com Obsessão e Dario Argento com Síndrome de Stendhal querem ambos refundar uma imagem fascinante, mas através de meios e pressupostos bem diferentes. Que imagens retém eles de Florença? Quadros, por exemplo; mas há muitos na Galeria dos Ofícios, para Argento, e este excesso é patológico; em contrapartida, só existe um quadro em De Palma, na capela San Maniato, mas esta rarefação produz um efeito fantasmático. Imagens de pontes também, destas famosas pontes sobre o Arno e da Ponte Vecchio  que vemos nos créditos de Obsessão , contrapostas a diapositivos, o que sobre-determina a natureza de clichê destas imagens; Ponte Vecchio que contemplamos de uma imensa distância em Argento, ou de muito perto, de tão perto que já não a reconhecemos, desde a primeira imagem pós-créditos da Síndrome. De Palma e Argento retrabalham estas imagens; o primeiro neutraliza seu poder de fascinação, o segundo o exalta. Os pontos comuns são superficiais, as diferenças fundamentais. O que resta de Florença para De Palma? Nada de maior: alguns sobrevôos turísticos, ou uma escadaria que antes evoca a casa de Psicose que as de Botticelli. Para Argento, pelo contrário, nada desapareceu, e  filmar a Galeria dos Ofícios é suficiente para escutarmos as batidas do coração de Florença. A Galeria é menos seu tesouro que seu coração. Toda a cidade se concentra e se sublima neste museu, seu centro e sua alma- que é Florença. Enquanto o americano procede a uma subtração figurativa, o italiano cria uma sobrecarga pictórica. Um se inscreve resolutamente em uma perspectiva crítica, o outro encena um teatro das paixões.

A visão de Florença em Obsessão se funda sobre um paradoxo: ao retornar em Florença às fontes de uma arte e de uma prática da imagem, De Palma só registra um esvaziamento. Ao invés de exaltar Florença, ele só desvela ausências: ausência de Elizabeth Courtland, morta em um acidente de carro; ausência de sideração e  fascinação estéticas diante das obras de arte. De Palma delineia uma imagem côncava, com o intuito de desapossar Florença de sua identidade, recusando-se a filmar sua aura. Esta aura se torna um vestígio da memória, um halo que só existe na imaginação do espectador, e que falta ao real florentino. Florença é assim o lugar de um triplo mal-entendido.

Primeiro mal-entendido: atravessamos Florença sem vê-la, e esta é a questão do originário e do real como referente. Florença não é o lugar onde a obra de arte fascina, onde esta parece nascer pela primeira vez diante do olhar de um visitante. Não é a cidade do renascimento, mas de uma desaparição generalizada. Os personagens morrem, como a mãe adotiva de Sandra. A cultura e o prazer estético não existem mais: os monumentos não são mais interrogados; nenhum sentido deles advém. A cidade, de que a tumba de Elizabeth é uma sinédoque, não passa de um imenso mausoléu, povoado de figuras defuntas, e estas figuras são tanto a sobras de arte quanto os personagens. Florença só existe sob a forma do clichê; como estes diapositivos que abrem o filme. Elas não atestam uma admiração estética, mas uma presença turística, remetendo-se o atrativo estético da cidade a um argumento de agência de viagens. Não se trata mais de uma maravilha, mas de um troféu a ser exibido. Florença é essencialmente um fundo, um plano de fundo, como os cartazes de palmeiras no escritório de Robert Loggia em Scarface. Quando Michael fotografa Sandra sobre as escadarias da capela San Ministo, não se trata aqui de glorificar uma figura amada ao ligar sua imagem a um nicho de beleza, mas de apossar-se de uma imagem, de se assegurar que ela esteja bem enquadrada., a natureza ou o momento atrás dela não passando de uma paisagem inerte. Um plano de fundo neutro. Os personagens são incapazes de ver o que os circunda. Uma vez que De Palma só conserva de Florença figuras sobre o fundo de uma paisagem ausente, a cidade é final e totalmente despersonalizada.

Segundo mal-entendido: ela é a memória de um cinema que nunca a filmou- e esta é questão do original e do cinema como referência. Ela catalisa os emblemas cinematográficos da modernidade, mas dos filmes citados nenhum se situa em Florença. Reencontramos lembranças italianas, a cidade filmada como uma ilha deserta como em Antonioni, Michael Courtland, irmão do soldado americano que seduz uma italiana no episódio romano de Paisá; uma reminiscência que pertence a um espaço europeu é O desprezo, do qual De Palma pega emprestado o famoso travelling esquerda-direita direita-esquerda sobre dois personagens; e enfim, fetiches americanos- Florença retoma a São Francisco de Um corpo que cai é claro, mas também, através da presença de Cliff Robertson e do tema da obsessão como crise do personagem e crise do gênero, a Nova York de A lei dos marginais ( Underworld USA) de Samuel Fuller.

Terceiro mal-entendido: os personagens não compreendem de pronto qual a verdadeira natureza de Florença, o que coloca a questão do desejo originário. Trata-se simplesmente de um lugar fantástico onde as mulheres rejuvenescem  ( como Courtland teria amado que rejuvenescessem as mulheres dos banqueiros, na cena da boate?) Será que o Eterno retorno é possível, e enfim Orfeu reencontrará Eurídice? De fato, se De Palma me parece fiel a Florença, ele se recusa a filmá-la como um ideal da contemplação. Ele prefere consagrar os espíritos de Dante e de Machiavel. Se Dante é uma referência explícita, trata-se menos do Paraíso que do Inferno: Geneviève Bujold o cita, ao falar da cegueira suscitada pelo amor. Ele parece até mesmo inspirar a figura estilística mais notável do filme: o círculo. Círculo sobre o mausoléu de Pontchartrain, que aspira o tempo, círculo que enclausura Robertson e Bujold no último plano do filme
. círculo que imprime seu movimento de aprisionamento e de opressão; todos estes círculos parecem ser efígies dantescas, ou deformações infernais das espirais de Um corpo que cai. Quanto a Machiavel, é o patrono do filme: a visão da armadilha como única forma de consórcio com a alteridade e do engodo como única relação com o mundo não estão ausentes de sua filosofia.

Se De Palma pode filmar Florença como o lugar de um mal-entendido, é porque as imagens conservam uma parte de falsidade e de não-evidência. O olhar pressupõe um aprendizado, e a imagem um trabalho: mais precisamente, em De Palma, uma imagem é uma imagem mentirosa, cuja relação ao objeto representado está sempre a se construir e elucidar, o que o último plano de Snake eyes confirma. Daí também a importância da traição como crise da evidência. Em Obsessão, a imagem exprime em particular uma crise temporal e figurativa, uma fratura essencial: uma clivagem ou dissociação (schize).



O filme engendra um conjunto de oposições: oposições econômicas, entre o Novo Sul e o Velho Sul, metáfora sem dúvida dos jovens cineastas, divididos entre uma destruição cínica do classicismo e uma fascinação que apesar de tudo os mantém ligados a ele; oposições psiquiátricas entre um tempo suspenso e um tempo cíclico, e este é o problema da neurose obsessiva. Mas ainda mais que uma estruturação temática, a oposição constitui um modo de ser da imagem. Ela lhe é interna; esta não é uma forma de desvelamento, mas um esconderijo, que reagrupa diversas formas: o já ali ( uma imagem está ali, mas não a vêem), a aparência enganosa ou simulacro ( faux-semblant)- a semelhança entre Elizabeth e Sandra, que ludibria Michael- o desvio ( insistir sobre a ligação com Um corpo que cai para poder em contrapartida trabalhar outras imagens). A imagem é uma arquitetura perversa, que dissimula mostrando, e mostra com o fito de desviar a significação. É possível a partir daí conceber uma verdade da imagem, e fazer da imagem mentirosa uma imagem aurática? Como reencontrar este fenômeno originário da imagem que é a aura? Este projeto, essencial em De Palma, se situa no coração das cenas filmadas na capela de San Miniato.


A capela constitui um nicho crítico no qual a imagem se afirma capaz de neutralizar outras imagens; o maneirismo aqui é abordado como uma afirmação crítica da imagem. Seu modo predominante é a ironia: ao debruçar-se sobre a essência religiosa dos ícones, se empenha em liquidar sua fascinação aurática. O que salta aos olhos quando Michael Courtland apercebe-se da presença de Sandra, amortalhada pela luz das velas: tudo no plano sublinha a falsidade desta aparição. Quando Michael crê ver uma Madona, o espectador só vê um simulacro e um homem cego: Cliff Robertson aos pés da aparição, os olhos esbugalhados, o olhar sublinhado ainda mais por uma montagem Kuleshov. O espectador pode ver aqui uma reescritura irônica desta seqüência em Vertigo onde James Stewart sofre uma vertigem na escadaria da capela. A aura não provém mais do objeto, mas sublinha o caráter factício da imagem. No entanto, a ironia não é uniformemente destrutiva. É ao desdobrar as potências críticas da imagem que De Palma quer reencontrar, apesar de tudo, indiretamente mas em profundidade,  as fontes da fascinação. A relação com a imagem é dupla, fazendo do maneirismo uma forma dual e esquizofrênica.

Para além de uma alteração da imagem fundante de que os filmes de Hitchcock seriam o paradigma- e Um corpo que cai aqui é o emblema-, a crítica é em primeiro lugar uma modalidade dual. O que é uma imagem dual? Um modelo é oferecido quando do primeiro encontro na capela entre Cliff Robertson e Geneviève Bujold, quando esta lhe detalhe o dilema do restaurador. Dois quadros compartilham a mesma superfície, sem poder serem vistos em conjunto e ao mesmo tempo. É necessário restaurar o quadro e perder a presença que este oculta? O que será necessário arriscar? Trata-se de uma aporia, que faz da imagem um lugar de questionamento. Ela demanda uma fenomenologia: como fazer para que o invisível se torne visível? A visão de uma imagem pressupõe o desaparecimento de outra? Ela demanda também uma semiologia: como produzir o sentido, e podemos perdê-lo de vista? A imagem funciona finalmente como um quiasma, instituindo um jogo dialético entre o invisível e o visível, a produção de sentido e a perda de sentido, entre o exterior ( ou o que o espectador vê) e o interior ( o que a imagem recobre), entre o muro ( como suporte sólido da imagem) e o tecido ( como dilaceração da imagem). O signo existe nos limites de seu dilaceramento; é estrutura e estilhaçamento.

Segunda modalidade do maneirismo de De Palma: a esquizofrenia, de que O espírito de Caim constituirá o paroxismo. Quando Gilles Deleuze fala de maneirismo, ele o associa sistematicamente ao conceito de esquizofrenia. De fato, ele separa o maneirismo de uma única forma de relação com  a imagem ( fala do maneirismo de Mallarmé, de Leibniz, etc); trata-se aqui de uma relação à Idéia. Ele separa a esquizofrenia também de um sentido psiquiátrico estrito, fazendo dela o emblema de estilhaçamento próprio a todo pensar. Em Dobra, ele define o maneirismo como “uma hybris dos princípios, uma hybris própria aos princípios”. A prática maneirista de De Palma consagra em efeito uma hybris, uma desmesura da imagem, que se traduz pela multiplicação de impasses e de logros perversos. É preciso cindir a imagem para ver como é um rico continente de imagens possíveis ( vistas ou não, identificáveis ou não). Toda imagem é entrelaçamento de várias imagens, e se impõe como um lugar de intermediação referencial ( a junção entre Scarface e White heat é uma proposição crítica) ou fantasmática ( a trajetória do sangue em Carrie). A imagem a tudo deseja: ela quer dizer tudo ( tudo e  seu contrário: uma mesma atriz interpreta a mãe e a filha, um corpo adulto interpreta o papel de uma criança), tudo tomar para si ( o dinheiro, a vida, a moça), colocar tudo no plano ( o incesto, o desejo, a culpabilidade, a traição, a satisfação). Nesta megalomania da imagem, reencontramos o princípio de Scarface, onde se reencontra sobretudo o efeito do split screen. A imagem possui uma divisão intrínseca, ontológica a exacerbar.

Assim, desde os créditos no início, onde podemos ver uma circulação, um movimento de conotação entre uma capela de San Miniato inquietante, uma Ponte Vecchio desencarnada e uma reminiscência da casa de Psicose. Podemos também, mas sobretudo, ver a exaustão de uma linha de montagem, a glorificação de uma ordem que a imagem cinematográfica permite, distinguindo radicalmente este maneirismo de suas origens pictóricas. O maneirismo de De Palma é a evidenciação da imagem como montagem; ele funda uma fascinação pela imagem como montagem. Toda imagem então supõe uma montagem, toda imagem já é montagem. A esquizofrenia constitui então uma proteção, uma exaltação, não uma destruição, o que nos diz esta passagem de Mil platôs: “A distância crítica é uma relação que decorre das matérias de expressão. Trata-se de manter à distância as forças do caos que batem à porta.Maneirismo: ao mesmo tempo habitação e maneira, pátria e estilo. (...) Dois esquizofrênicos se falam seguindo as leis de fronteira que podem nos escapar. É importante, quando o caos a tudo ameaça, traçar um território transportável”.

Assim que, por exemplo, o split screen, que compreende a essência do maneirismo depalmiano, certamente não destrui a montagem; antes pelo contrário. Ele a exalta, mostrando no plano como uma imagem é por essência um entrelaçamento, e como a montagem protege do caos e das forças pulsionais. Aliás, os créditos contém o único split screen do filme. O maneirismo é uma organização, uma proteção contra o caos e  a pulsão para De Palma; para Argento, é a expressão de um caos interior e da pulsão. A imagem em um é momento lógico, em outro cosa mentale.


Se a viagem a Florença com Obsessão coincidia em De Palma com o início de um novo período artístico, a que faz Argento em Síndrome de Stendhal em 1996 é um retorno. Retorno às vilas italianas que não tinha filmado desde 1975, com a Turim de Profondo Rosso, se esquecermos a Roma pós-moderna de Tenebrae. Retorno a Itália, com várias produções discutíveis no caminho ( penso aqui em Trauma, Two evil eyes, e até mesmo em Ópera). Retorno às origens, portanto. E no Síndrome de Stendhal, que é seu manifesto estético, esta origem será para Argento aquela das pulsões e de sua vocação. Assim, a um jornalista de Libération, ele conta que em sua juventude tinha sentido mal-estares diante do Partenon. “Meu pai dizia que a culpa era da comida grega, muito pesada. Mas não, era o Partenon”. Argento faz aqui o retrato do artista como vítima da Síndrome de Stendhal.

Que sintoma é este? É um conceito clínico evidenciado por uma psiquiatra e psicanalista, Graziella Magherini. Aliás, ela trabalha em Florença, como se Florença fosse exatamente o lugar de eleição de semelhante síndrome. Esta corresponde a uma fortíssima emoção provocada pela obra de arte. Leiamos a descrição:

“O quadro exige do visitante ser visto não do exterior, mas do interior. Subitamente, o indivíduo não conhece mais a fronteira entre o lícito da admiração passional e o ilícito do fantasma agressivo e venal. As sensações de prazer e de dor se mesclam, estranhas curiosidades o devoram. Ele quer saber o que existe dentro, detrás ,não diante: dentro do quadro, dentro de si mesmo. Gozo e pânico, os quadros vem e vão diante e em torno dele, suscitando um constante convite a possuí-los. Eles respiram como seres humanos. O espectador sente uma grande capacidade, uma sensação de poder e de riqueza”.

Para Dario Argento, a idéia do quadro vivo é a origem de uma nova concepção da imagem cinematográfica.: esta explicita e descreve os poderes da imagem pictórica. Desde aí, as relações de origem são redefinidas. Como? Em que este maneirismo difere do de De Palma? Estudemos a representação da síndrome que nos oferece Argento desde o começo do filme.

Contrariamente a De Palma, que isola e esvazia cada aspecto da origem, Argento mostra como eles se articulam e como passam de uns para os outros. Como passar do originário ao original? É o papel desempenhado pela Galeria dos Ofícios: esplendor de Florença, ela coleciona todas as imagens, quaisquer que sejam. Se ela constitui um caleidoscópio quase delirante, tenta guiar o visitante por um labirinto cultural. Como passar do original ao originário ( da pulsão)? É o papel do quadro. Este é por essência inquietante. Argento havia advertido: “As imagens podem se voltar contra nós. Van Gogh, suas imagens o mutilaram e depois mataram. Botticelli, sua Vênus parece gentil. No entanto, ele morreu louco”. O que é um quadro para Argento? Um objeto fascinante e proteiforme. É a princípio um cadre que, suscitando na imagem as bordas da tela cinematográfica, hipnotiza o olhar. É também um espelho: a camada de vidro que a protege permite que se reflita a imagem do espectador: imagem de Ásia Argento, como se esta já não fosse feita de carne, mas elemento do quadro, como se o quadro, quer seja o de Ucello ou o de Botticelli, a vampirizasse; imagem do serial killer , na câmara do hotel, o que reforça a analogia; pois é o quadro que é uma força mortífera, é o quadro o serial killer. É ele que viola e mata: Argento se coloca na continuidade do Lang arquiteto do Segredo da porta fechada, que mostrava câmaras mortíferas. O quadro é mesmo um ser vivo, uma matéria sensual: é o vento, os ruídos, a tinta gouache na qual Anna Manni rola. Anna o escuta, o sente, queria tocá-lo. Ele é enfim e sobretudo um espaço fantasmático: ir em direção ao quadro suscita um devaneio fetal. O movimento é menos um mergulho na matéria que uma “invaginação” neste quadro que é um borrascoso mar: mãe e mar ( mère et mer, ambos femininos em francês).

“Mater materia” é o título de um artigo de Jean-Pierre Richard que se aplica muito bem a esta concepção do quadro. O quadro se torna este espaço que atrai para si todo o campo possível do fílmico, estabelecendo a conjunção entre o material, o maternal e o matricial. Esta interpretação psíquica é solicitada pela seqüência; mas o espaço do quadro ( no qual Anna mergulha, atravessa, ou que desejaria estilhaçá-la) é sobretudo um espaço de figuração, ou mesmo de desfiguração. Como o diz Georges Didi-Huberman, ao falar do pequeno pano de muro amarelo que Proust viu na Vista de Deft de Vermeer: “é questão de matéria e de camada, por um lado; e aí, somos reconduzidos ao leito de cores de que toda representação em pintura tira seu fundamento; por outro lado, de comoção e abalo mortal- algo que se poderia nomear de trauma, um choque, uma revoada de cor”. A Síndrome de Stendhal diz-nos claramente que o trauma possui a princípio uma origem estética: um evento criado pela imagem, e que suscita outras imagens. É por esta razão que o maneirismo de Argento faz do trauma sua matéria figurativa primeira. Este permite decompor as causas da perturbação estética, e tenta dele originar as imagens, todas as imagens, imagens do sublime ( o rosto de Ásia Argento), imagens grotescas ( o corpo de Alfredo Grossi), imagens baixas (a complacência com o gore), imagens degeneradas ( a pílula no esôfago). Este maneirismo cria em torno do trauma três momentos figurativos: a pan, a esquadra, a pulsão.

O que é uma pan? Uma imagem que deseja o movimento, uma imagem pictórica que deseja tornar-se ( devenir) cinematográfica. Didi-Huberman diferencia em primeiro lugar a pan do detalhe:

“O pesquisador de detalhes é o homem que vê a menor coisa, e também o homem das respostas; ele pensa que os enigmas do visível tem solução, que pode apreender a menor  das coisas, por exemplo um fio, uma faca. (...) ele se toma por Sherlock Holmes. Aquele que se deixa afetar pelas pans, pelo contrário, é o homem que contempla; ele não espera do visível uma solução lógica ( antes, ele pressente o quanto o visível dirime qualquer lógica). (...) O homem do detalhe, portanto, escreve romances fechados, com questão colocada no início e resposta entregue ao fim. Se lhe permitissem, o homem da pan escreveria listas sem fim, nem lógica. O pan só expõe a própria figurabilidade, ou seja, um processo, um ainda-não, uma incerteza, uma existência quase da figura”.


Esta passagem permite compreender como evoluiu todo gesto artístico de Dario Argento, e em que sentido O Síndrome de Stendhal é uma realização. Em Pássaro das plumas de cristal, o quadro é um índice da enquête que estrutura apenas um campo-contracampo entre um olhar e fragmentos do quadro; de forma alguma retomado pela narração, este é um detalhe da história. Profondo rosso estabelece uma ambigüidade entre o ser humano e o objeto figurativo: o humano se confunde finalmente com a figura, tornando a noção de detalhe incerta. O que é, então, o detalhe: o rosto posicionado no quadro ou o quadro colocado no corredor? Uma estranha cisão se instala. Se Tenebrae é a reviravolta desta concepção do detalhe, A Síndrome de Stendhal é atualmente o último estádio da evolução das relações entre quadro e imagem cinematográfica: o humano se funde na figura. O quadro não é mais um detalhe, mas uma pan, colocando o pensamento em perigo, e foi o espectador que tornou-se detalhe.A Síndrome consagra um maneirismo da pan, desde seus créditos iniciais, que são justamente esta lista sem sintaxe de que fala o filósofo, uma banda alógica e fascinante. A pan é assim, portanto, ligada à origem: ao trauma e à pulsão. A pan deseja e reinventa o plano.
O que induz um efeito cinematográfico essencial: a invenção de uma nova temporalidade. Quando tempo Anna Manni permanece imersa no plano? A que origem ou história pertence o peixe? A uma ordem do fantasma ou do real? Mais que uma imersão em um outro espaço, trata-se do encontro com uma outra cronologia. Ao entrar no quadro, Anna se perde em um instante, arrancando-se à servidão do real e à escravidão do tempo humano. Não se trata mais de um tempo linear, mas de um tempo onde cada unidade disjunta as outras, onde cada unidade- como uma mônada- instala sua própria medida de tempo, seu percurso labiríntico. O único cineasta próximo de Argento não é então De Palma, mas antes Raoul Ruiz, o Ruiz da Hipótese do quadro roubado ou de Combate de amor no sonho, faz a diversidade das histórias e o estilhaçamento dos quadros o princípio de uma invenção sempre renovada da temporalidade. Para ambos, a confusão entre imagem pictórica e cinematográfica transforma o real em um labirinto temporal. De fato, Argento reencontra aqui por intermédio do quadro o que havia buscado em outro lugar, por exemplo em seu Phenomena, ao figurar o sonho e o medo.

A imagem cinematográfica faz da multiplicidade dos quadros uma série de fragmentos de tela ( écraniques). Mas Argento não filma tanto um olhar dirigido a uma multiplicidade de quadros- e sim uma esquadrilha de quadros que agride um indivíduo isolado. Baudelaire, em uma passagem do Pintor da vida moderna, que aliás Daniel Arasse cita no início de Detalhe, fala de um artista “assaltado por uma multidão de detalhes que demandam todos justiça com a fúria de uma multidão amorosa, em absoluta igualdade”. O quadro em Argento é, concedemos, uma vontade furiosa, e existe bem um desejo do quadro pela espectadora ( aqui, Anna Manni). Mas ao invés de uma multidão, trata-se aqui de uma esquadrão, e este nome me parece definir com justiça a estética de seu cinema. Trata-se, em efeito, do nome dado a um agrupamento de insetos, o que me evoca as lucíolas de Phenomena. É também o nome dado pelos médicos-legistas ao conjunto de equimoses descobertos sobre um cadáver, o que remete ao universo mórbido de Argento. E mesmo quando ele filma uma revolta, como no Cinque giornate, ele a filma justamente como uma esquadra, mostrando como os indivíduos agregam-se com ordem uns aos outros, formando progressivamente uma multidão. A esquadra constitui em Argento o modo principal da agressão, da insubmissão ao real. É um regime de signos que busca quebrar o continuum cinematográfico, a homogeneidade das imagens, assim como a continuidade temporal, constituindo a pedra de toque de seu maneirismo.

A esquadra manifesta a violência intrínseca da imagem. Esta não é mais uma pura superfície, neutra e ineficaz. Ela possui uma força e uma intensidade próprias. É, segundo a expressão de Jean-François Lyotard, “um corpo volumoso”: uma massa orgânica e organizada, viva e desejante, pluridimensional. A imagem possui uma profundeza e fundos insuspeitos. Como explorar estes limites e estas bordas? É este sem dúvida o trabalho do maneirismo de Argento: pôr a imagem à prova e atingir seus limites. Também é necessário figurar este peixe antropomorfo: ele mostra que investir o espaço da imagem é forçosamente remontar a uma origem mítica. Ele permite mostrar sobretudo que as bordas da imagem são fantasmáticas: ou seja, que uma representação da origem é sempre representação de um fantasma primitivo. Segunda conseqüência, um fetichismo certo pela boca: boca do peixe, boca de Alfredo Grossi, que balança entre seus lábios uma navalha; lábios de Asia Argento fendidos na seqüência liminar, depois talhados pelo assassino. Trata-se primeiro de filmar uma vagina, de fazer da boca uma meio de magnetização e uma origem do plano, e de dar a este um sexo. Existiria portanto em Argento uma sexualidade das imagens. Mas mais que uma figuração fantasmática, parece-me que, por esta boca, Argento designa sobretudo os lábios da imagem. O maneirismo consistiria a partir daí em um gigantesco dispositivo pulsional destinado a fazer tremular os lábios da imagem.: fazê-la falar, fazê-la sangrar, fazê-la gozar.

À guisa de conclusão, esta leitura se propunha a dar uma interpretação das origens de uma antipatia, um pouco como fez Philippe Berthier em literatura em relação a Chateaubriand e Stendhal, já que se sabe que De Palma e Argento se detestam, ou no mínimo se ignoram. Podemos mesmo considerar Síndrome de Stendhal como uma resposta 18 anos depois a Obsessão. As diferenças de seus maneirismos retomam finalmente esta diferença de concepção e de figuração da origem. Imagem palimpsesto versus imagem limiar, relação crítica contra movimento pulsional, uma retenção do caos oposta a um abandono ao caos; estes três conflitos recobrem três modelos da origem: modelo documentário, modelo ontológico, modelo psíquico. Ao final das contas, estes dois maneirismos opostos colocam a mesma questão. O que implica uma figuração cinematográfica da origem? Ela implica sem nenhuma dúvida uma figuração do psiquismo e da interioridade. A imagem emana então de um fundo alucinatório, um domínio de indistinção e de dúvida, onde o espectador não sabe mais o que diante dele é subjetivo ou não, o que é pulsional ou não. Paradoxalmente, é ao desejar representar a regressão e a origem que a imagem desdobra todas as suas potencialidades, unificando o desejável ao repulsivo, o grotesco ao sublime.

Haveria uma outra diferença neste maneirismo, se acharmos precioso conservar a todo custo esta expressão, cuja chave nos é dada por uma observação de Serge Daney:

“Entramos no maneirismo quando recuamos ( do interior), e saímos dele quando agitamos ( do exterior). O maneirismo é um jogo por ser muito próximo do prazer da criança, que brinca em arrancar o fígado de suas bonecas ou a desmantelar seus brinquedos. O maneirismo é portanto destinado a uma certa decepção ( não saber refazer o que foi quebrado). É o momento onde , de um aquário-indigesto de cultura e catálogo de efeitos já produzidos, tiramos alguns peixes do aquário e prolongamos o tempo deles para vê-los fazer alguns movimentos fora de seu meio natural.”



Esta condenação virulenta resume perfeitamente o maneirismo segundo Daney, que já havia qualificado a cenografia de Ingerno de “Grande Nada”. Associando o prazer de fazer um filme ao prazer do evisceramento, ela se adequa bem aos filmes de Argento ( penso nesta cena de Ópera, onde o assassino degola a vítima para encontrar a pista que ela havia engolido). Descreve mesmo as condições de desenvolvimento do maneirismo: a fabricação da imagem como jogo malsão; a memória como princípio de escavação ou exumação de uma imagem. Enfim, ela prefigura estranhamente a abertura de Síndrome, com seu peixe gigante e estas caixas de vidro que retém os quadros, como o vidro dos aquários os animais. Mas este “plano aquário”, recentemente teorizado por Alain Bergala, define imperfeitamente nossos dois maneirismos. Se o gesto cinematográfico se liberta das contingências do real, vampirizado por um culto pela referência; para De Palma, a imagem esvazia o real, sem ter por efeito uma decepção, pois De Palma não refaz nada. Ele mostra que a imagem não pode, não quer ser desfeita, ser desconstruída tanto quanto vencida. Para Argento, a contestação de Daney é diferente. O maneirismo é menos a assunção de um espaço ( o aquário)  que de uma matéria ( a água, a cor). Não há movimento ( de dentro para fora). Trata-se aqui de tocar, de trabalhar, de informar esta matéria da imagem de que um dos nomes possíveis será “pulsão”.

Jean-Marie Samocki

Tradução: Luiz Soares Júnior.




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