Como filmar uma cidade, e como a escolha de Florença pode
influenciar o gesto criador? Uma cidade pode se situar na origem de um gesto
fílmico de três maneiras. Antes de tudo, ela pode se encontrar na origem como
um lugar preexistente. A cidade constitui um conjunto determinado de ruas e de
casas que o cinema registra, atento à maneira como se agencia um real originário.
Encontramos neste culto pela imagem documentária as teorias bazinianas: é
suficiente que se mostre a arquitetura de uma cidade e seus imóveis para captar
o gênio de um lugar, a memória que este retém, sua grandeza e solidão. Em
seqüência, ser sensível à aura de uma cidade consiste em capturar dela imagens
originais: evitar os clichês que se interpõem entre o que o visitante vê e o
que ele experimenta, e fazer da cidade o emblema de uma relação com o mundo.
Enfim, a origem também nos remete a um
desejo originário: a cidade se torna o motivo de eleição de um devaneio
uterino: filmar a cidade é também fantasmagorizá-la, como cérebro ou como mãe.
Estas três relações à origem ( o originário, o original, o desejo originário)
permitem também delinear três formas de relação à imagem ( para irmos logo ao ponto:
o documentário, o ontológico e o psíquico). Estes três forçosamente não se
excluem, e podem até mesmo se combinar entre si. Se os entrelaçamentos destes
diferentes modos são complexos, querer filmar Florença consolida de forma
considerável a escala desta complexidade, pois esta é certamente das cidades
mais fascinantes, quiçá a mais fascinante. Como escreveu Sartre, “ela possui a
liquidez do rio, o doce ardor dourado do ouro, e se entrega com decência”.
As fascinações que ela suscita são múltiplas: fascinação
histórica, pois revolucionou a história da arte, como da Itália e da Europa;
fascinação estética, por um lado devida aos seus monumentos: a Ponte Vecchio, o
Palazzo Pitti, a Galeria dos Ofícios- e, por outra, à força visionária dos
homens que nela habitaram: Dante, Laurent de Médicis, Machiavel; ela fascina
enfim por intermédio dos artistas a quem fascinou ( Madame de Staël, Stendhal,
Musset, entre outros). Mais que uma cidade, Florença é um mito da civilização e
da cultura ocidentais: a cidade aurática por excelência, ao mesmo tempo templo
estético e emanação temporal. Se um
cineasta quer filmar imagens de Florença, quais deve conservar? Pode
privilegiar algumas em detrimento de todas as outras? Mas ao filmar apenas
imagens, ao não filmá-la senão como imagem, filma-se ainda Florença? A relação
entre o real e a imagem não é direta e imediata, e é isto o que constitui sem dúvida o cerne de
uma estética florentina. É esta questão que a reflexão maneirista trabalha.
A problemática maneirista é essencial para se compreender
Florença; o maneirismo é, ao mesmo tempo, um momento de sua história estética,
através dos escritos fundadores de Vasari, e um esquema de sua arquitetura:
penso aqui nos jardins de Boboli, aplicações maneiristas sobre a paisagem
urbana e modo de ser da imagem florentina. Anamorfoses, alongamentos,
fragmentações celebram assim uma síntese pictórica da tortura e do esfacelamento.
O evento figurativo não mais é a partir de agora o objeto representado, mas as
distorções trazidas aos cânones da representação. A figuração experimenta
emancipar-se do real para tornar-se seu próprio objeto. O maneirismo é o
momento de uma crise eufórica da imagem e da aparência, crise que afeta tanto
pintores como o Parmigianino quanto filósofos como Machiavel. Origem do
pensamento maneirista, cidade das imagens maneiristas, cidade maneirista;
Florença se constrói sobre um paradoxo: ela é o lugar da crítica mais
extremada, assim como da fascinação maior. É possível fundar uma imagem
cinematográfica sobre este paradoxo? É possível articular uma “colocação em
crise” ( mise en crise) e uma
fascinação? A imagem como forma de estudo crítico permite a restauração por
outros meios de uma imagem aurática?
Brian de Palma com Obsessão e Dario Argento com Síndrome de
Stendhal querem ambos refundar uma imagem fascinante, mas através de meios e
pressupostos bem diferentes. Que imagens retém eles de Florença? Quadros, por
exemplo; mas há muitos na Galeria dos Ofícios, para Argento, e este excesso é
patológico; em contrapartida, só existe um quadro em De Palma , na capela San
Maniato, mas esta rarefação produz um efeito fantasmático. Imagens de pontes
também, destas famosas pontes sobre o Arno e da Ponte Vecchio que vemos nos créditos de Obsessão ,
contrapostas a diapositivos, o que sobre-determina a natureza de clichê destas
imagens; Ponte Vecchio que contemplamos de uma imensa distância em Argento, ou
de muito perto, de tão perto que já não a reconhecemos, desde a primeira imagem
pós-créditos da Síndrome. De Palma e Argento retrabalham estas imagens; o
primeiro neutraliza seu poder de fascinação, o segundo o exalta. Os pontos
comuns são superficiais, as diferenças fundamentais. O que resta de Florença
para De Palma? Nada de maior: alguns sobrevôos turísticos, ou uma escadaria que
antes evoca a casa de Psicose que as de Botticelli. Para Argento, pelo
contrário, nada desapareceu, e filmar a
Galeria dos Ofícios é suficiente para escutarmos as batidas do coração de
Florença. A Galeria é menos seu tesouro que seu coração. Toda a cidade se
concentra e se sublima neste museu, seu centro e sua alma- que é Florença. Enquanto
o americano procede a uma subtração figurativa, o italiano cria uma sobrecarga
pictórica. Um se inscreve resolutamente em uma perspectiva crítica, o outro
encena um teatro das paixões.
A visão de Florença em Obsessão se funda sobre um paradoxo:
ao retornar em Florença às fontes de uma arte e de uma prática da imagem, De
Palma só registra um esvaziamento. Ao invés de exaltar Florença, ele só desvela
ausências: ausência de Elizabeth Courtland, morta em um acidente de carro;
ausência de sideração e fascinação
estéticas diante das obras de arte. De Palma delineia uma imagem côncava, com o
intuito de desapossar Florença de sua identidade, recusando-se a filmar sua
aura. Esta aura se torna um vestígio da memória, um halo que só existe na
imaginação do espectador, e que falta ao real florentino. Florença é assim o
lugar de um triplo mal-entendido.
Primeiro mal-entendido: atravessamos Florença sem vê-la, e
esta é a questão do originário e do real como referente. Florença não é o lugar
onde a obra de arte fascina, onde esta parece nascer pela primeira vez diante
do olhar de um visitante. Não é a cidade do renascimento, mas de uma
desaparição generalizada. Os personagens morrem, como a mãe adotiva de Sandra.
A cultura e o prazer estético não existem mais: os monumentos não são mais
interrogados; nenhum sentido deles advém. A cidade, de que a tumba de Elizabeth
é uma sinédoque, não passa de um imenso mausoléu, povoado de figuras defuntas,
e estas figuras são tanto a sobras de arte quanto os personagens. Florença só
existe sob a forma do clichê; como estes diapositivos que abrem o filme. Elas
não atestam uma admiração estética, mas uma presença turística, remetendo-se o
atrativo estético da cidade a um argumento de agência de viagens. Não se trata
mais de uma maravilha, mas de um troféu a ser exibido. Florença é essencialmente
um fundo, um plano de fundo, como os cartazes de palmeiras no escritório de
Robert Loggia em Scarface. Quando
Michael fotografa Sandra sobre as escadarias da capela San
Ministo, não se trata aqui de glorificar uma figura amada ao ligar sua imagem a
um nicho de beleza, mas de apossar-se de uma imagem, de se assegurar que ela
esteja bem enquadrada., a natureza ou o momento atrás dela não passando de uma
paisagem inerte. Um plano de fundo neutro. Os personagens são incapazes de ver
o que os circunda. Uma vez que De Palma só conserva de Florença figuras sobre o
fundo de uma paisagem ausente, a cidade é final e totalmente despersonalizada.
Segundo mal-entendido: ela é a memória de um cinema que
nunca a filmou- e esta é questão do original e do cinema como referência. Ela
catalisa os emblemas cinematográficos da modernidade, mas dos filmes citados
nenhum se situa em
Florença. Reencontramos lembranças italianas, a cidade
filmada como uma ilha deserta como em Antonioni, Michael Courtland, irmão do
soldado americano que seduz uma italiana no episódio romano de Paisá; uma
reminiscência que pertence a um espaço europeu é O desprezo, do qual De Palma
pega emprestado o famoso travelling esquerda-direita direita-esquerda sobre
dois personagens; e enfim, fetiches americanos- Florença retoma a São Francisco
de Um corpo que cai é claro, mas também, através da presença de Cliff Robertson
e do tema da obsessão como crise do personagem e crise do gênero, a Nova York
de A lei dos marginais ( Underworld USA) de Samuel Fuller.
Terceiro mal-entendido: os personagens não compreendem de pronto
qual a verdadeira natureza de Florença, o que coloca a questão do desejo originário.
Trata-se simplesmente de um lugar fantástico onde as mulheres rejuvenescem ( como Courtland teria amado que
rejuvenescessem as mulheres dos banqueiros, na cena da boate?) Será que o
Eterno retorno é possível, e enfim Orfeu reencontrará Eurídice? De fato, se De
Palma me parece fiel a Florença, ele se recusa a filmá-la como um ideal da
contemplação. Ele prefere consagrar os espíritos de Dante e de Machiavel. Se
Dante é uma referência explícita, trata-se menos do Paraíso que do Inferno:
Geneviève Bujold o cita, ao falar da cegueira suscitada pelo amor. Ele parece
até mesmo inspirar a figura estilística mais notável do filme: o círculo.
Círculo sobre o mausoléu de Pontchartrain, que aspira o tempo, círculo que
enclausura Robertson e Bujold no último plano do filme
. círculo que imprime seu movimento de aprisionamento e de
opressão; todos estes círculos parecem ser efígies dantescas, ou deformações
infernais das espirais de Um corpo que cai. Quanto a Machiavel, é o patrono do
filme: a visão da armadilha como única forma de consórcio com a alteridade e do
engodo como única relação com o mundo não estão ausentes de sua filosofia.
Se De Palma pode filmar Florença como o lugar de um
mal-entendido, é porque as imagens conservam uma parte de falsidade e de
não-evidência. O olhar pressupõe um aprendizado, e a imagem um trabalho: mais
precisamente, em De Palma ,
uma imagem é uma imagem mentirosa, cuja relação ao objeto representado está
sempre a se construir e elucidar, o que o último plano de Snake eyes confirma.
Daí também a importância da traição como crise da evidência. Em Obsessão, a
imagem exprime em particular uma crise temporal e figurativa, uma fratura
essencial: uma clivagem ou dissociação (schize).
O filme engendra um conjunto de oposições: oposições
econômicas, entre o Novo Sul e o Velho Sul, metáfora sem dúvida dos jovens
cineastas, divididos entre uma destruição cínica do classicismo e uma
fascinação que apesar de tudo os mantém ligados a ele; oposições psiquiátricas
entre um tempo suspenso e um tempo cíclico, e este é o problema da neurose
obsessiva. Mas ainda mais que uma estruturação temática, a oposição constitui
um modo de ser da imagem. Ela lhe é interna; esta não é uma forma de
desvelamento, mas um esconderijo, que reagrupa diversas formas: o já ali ( uma
imagem está ali, mas não a vêem), a aparência enganosa ou simulacro (
faux-semblant)- a semelhança entre Elizabeth e Sandra, que ludibria Michael- o
desvio ( insistir sobre a ligação com Um corpo que cai para poder em
contrapartida trabalhar outras imagens). A imagem é uma arquitetura perversa,
que dissimula mostrando, e mostra com o fito de desviar a significação. É
possível a partir daí conceber uma verdade da imagem, e fazer da imagem
mentirosa uma imagem aurática? Como reencontrar este fenômeno originário da
imagem que é a aura? Este projeto, essencial em De Palma , se situa no
coração das cenas filmadas na capela de San Miniato.
A capela constitui um nicho crítico no qual a imagem se
afirma capaz de neutralizar outras imagens; o maneirismo aqui é abordado como
uma afirmação crítica da imagem. Seu modo predominante é a ironia: ao
debruçar-se sobre a essência religiosa dos ícones, se empenha em liquidar sua
fascinação aurática. O que salta aos olhos quando Michael Courtland apercebe-se
da presença de Sandra, amortalhada pela luz das velas: tudo no plano sublinha a
falsidade desta aparição. Quando Michael crê ver uma Madona, o espectador só vê
um simulacro e um homem cego: Cliff Robertson aos pés da aparição, os olhos
esbugalhados, o olhar sublinhado ainda mais por uma montagem Kuleshov. O
espectador pode ver aqui uma reescritura irônica desta seqüência em Vertigo
onde James Stewart sofre uma vertigem na escadaria da capela. A aura não provém
mais do objeto, mas sublinha o caráter factício da imagem. No entanto, a ironia
não é uniformemente destrutiva. É ao desdobrar as potências críticas da imagem
que De Palma quer reencontrar, apesar de tudo, indiretamente mas em
profundidade, as fontes da fascinação. A
relação com a imagem é dupla, fazendo do maneirismo uma forma dual e
esquizofrênica.
Para além de uma alteração da imagem fundante de que os
filmes de Hitchcock seriam o paradigma- e Um corpo que cai aqui é o emblema-, a
crítica é em primeiro lugar uma modalidade dual. O que é uma imagem dual? Um
modelo é oferecido quando do primeiro encontro na capela entre Cliff Robertson
e Geneviève Bujold, quando esta lhe detalhe o dilema do restaurador. Dois
quadros compartilham a mesma superfície, sem poder serem vistos em conjunto e
ao mesmo tempo. É necessário restaurar o quadro e perder a presença que este
oculta? O que será necessário arriscar? Trata-se de uma aporia, que faz da
imagem um lugar de questionamento. Ela demanda uma fenomenologia: como fazer
para que o invisível se torne visível? A visão de uma imagem pressupõe o
desaparecimento de outra? Ela demanda também uma semiologia: como produzir o
sentido, e podemos perdê-lo de vista? A imagem funciona finalmente como um
quiasma, instituindo um jogo dialético entre o invisível e o visível, a
produção de sentido e a perda de sentido, entre o exterior ( ou o que o
espectador vê) e o interior ( o que a imagem recobre), entre o muro ( como
suporte sólido da imagem) e o tecido ( como dilaceração da imagem). O signo
existe nos limites de seu dilaceramento; é estrutura e estilhaçamento.
Segunda modalidade do maneirismo de De Palma: a esquizofrenia,
de que O espírito de Caim constituirá o paroxismo. Quando Gilles Deleuze fala de
maneirismo, ele o associa sistematicamente ao conceito de esquizofrenia. De
fato, ele separa o maneirismo de uma única forma de relação com a imagem ( fala do maneirismo de Mallarmé, de
Leibniz, etc); trata-se aqui de uma relação à Idéia. Ele separa a esquizofrenia
também de um sentido psiquiátrico estrito, fazendo dela o emblema de
estilhaçamento próprio a todo pensar. Em Dobra, ele define o maneirismo como
“uma hybris dos princípios, uma hybris própria aos princípios”. A prática
maneirista de De Palma consagra em efeito uma hybris, uma desmesura da imagem,
que se traduz pela multiplicação de impasses e de logros perversos. É preciso
cindir a imagem para ver como é um rico continente de imagens possíveis (
vistas ou não, identificáveis ou não). Toda imagem é entrelaçamento de várias
imagens, e se impõe como um lugar de intermediação referencial ( a junção entre
Scarface e White heat é uma proposição crítica) ou fantasmática ( a trajetória
do sangue em Carrie). A imagem a tudo deseja: ela quer dizer tudo ( tudo e seu contrário: uma mesma atriz interpreta a
mãe e a filha, um corpo adulto interpreta o papel de uma criança), tudo tomar
para si ( o dinheiro, a vida, a moça), colocar tudo no plano ( o incesto, o
desejo, a culpabilidade, a traição, a satisfação). Nesta megalomania da imagem,
reencontramos o princípio de Scarface, onde se reencontra sobretudo o efeito do
split screen. A imagem possui uma
divisão intrínseca, ontológica a exacerbar.
Assim, desde os créditos no início, onde podemos ver uma
circulação, um movimento de conotação entre uma capela de San Miniato
inquietante, uma Ponte Vecchio desencarnada e uma reminiscência da casa de
Psicose. Podemos também, mas sobretudo, ver a exaustão de uma linha de
montagem, a glorificação de uma ordem que a imagem cinematográfica permite,
distinguindo radicalmente este maneirismo de suas origens pictóricas. O
maneirismo de De Palma é a evidenciação da imagem como montagem; ele funda uma
fascinação pela imagem como montagem. Toda imagem então supõe uma montagem, toda
imagem já é montagem. A esquizofrenia constitui então uma proteção, uma
exaltação, não uma destruição, o que nos diz esta passagem de Mil platôs: “A
distância crítica é uma relação que decorre das matérias de expressão. Trata-se
de manter à distância as forças do caos que batem à porta.Maneirismo: ao mesmo
tempo habitação e maneira, pátria e estilo. (...) Dois esquizofrênicos se falam
seguindo as leis de fronteira que podem nos escapar. É importante, quando o
caos a tudo ameaça, traçar um território transportável”.
Assim que, por exemplo, o split screen, que compreende a
essência do maneirismo depalmiano, certamente não destrui a montagem; antes
pelo contrário. Ele a exalta, mostrando no plano como uma imagem é por essência
um entrelaçamento, e como a montagem protege do caos e das forças pulsionais.
Aliás, os créditos contém o único split screen do filme. O maneirismo é uma
organização, uma proteção contra o caos e
a pulsão para De Palma; para Argento, é a expressão de um caos interior
e da pulsão. A imagem em um é momento lógico, em outro cosa mentale.
Se a viagem a Florença com Obsessão coincidia em De Palma com o início de
um novo período artístico, a que faz Argento em Síndrome de Stendhal em 1996 é
um retorno. Retorno às vilas italianas que não tinha filmado desde 1975, com a
Turim de Profondo Rosso, se esquecermos a Roma pós-moderna de Tenebrae. Retorno
a Itália, com várias produções discutíveis no caminho ( penso aqui em Trauma,
Two evil eyes, e até mesmo em Ópera). Retorno às origens, portanto. E no Síndrome
de Stendhal, que é seu manifesto estético, esta origem será para Argento aquela
das pulsões e de sua vocação. Assim, a um jornalista de Libération, ele conta
que em sua juventude tinha sentido mal-estares diante do Partenon. “Meu pai
dizia que a culpa era da comida grega, muito pesada. Mas não, era o Partenon”.
Argento faz aqui o retrato do artista como vítima da Síndrome de Stendhal.
Que sintoma é este? É um conceito clínico evidenciado por
uma psiquiatra e psicanalista, Graziella Magherini. Aliás, ela trabalha em
Florença, como se Florença fosse exatamente o lugar de eleição de semelhante
síndrome. Esta corresponde a uma fortíssima emoção provocada pela obra de arte.
Leiamos a descrição:
“O quadro exige do visitante ser visto não do exterior, mas
do interior. Subitamente, o indivíduo não conhece mais a fronteira entre o
lícito da admiração passional e o ilícito do fantasma agressivo e venal. As
sensações de prazer e de dor se mesclam, estranhas curiosidades o devoram. Ele
quer saber o que existe dentro, detrás ,não diante: dentro do quadro, dentro de
si mesmo. Gozo e pânico, os quadros vem e vão diante e em torno dele,
suscitando um constante convite a possuí-los. Eles respiram como seres humanos.
O espectador sente uma grande capacidade, uma sensação de poder e de riqueza”.
Para Dario Argento, a idéia do quadro vivo é a origem de uma
nova concepção da imagem cinematográfica.: esta explicita e descreve os poderes
da imagem pictórica. Desde aí, as relações de origem são redefinidas. Como? Em
que este maneirismo difere do de De Palma? Estudemos a representação da
síndrome que nos oferece Argento desde o começo do filme.
Contrariamente a De Palma, que isola e esvazia cada aspecto
da origem, Argento mostra como eles se articulam e como passam de uns para os
outros. Como passar do originário ao original? É o papel desempenhado pela
Galeria dos Ofícios: esplendor de Florença, ela coleciona todas as imagens,
quaisquer que sejam. Se ela constitui um caleidoscópio quase delirante, tenta
guiar o visitante por um labirinto cultural. Como passar do original ao
originário ( da pulsão)? É o papel do quadro. Este é por essência inquietante.
Argento havia advertido: “As imagens podem se voltar contra nós. Van Gogh, suas
imagens o mutilaram e depois mataram. Botticelli, sua Vênus parece gentil. No
entanto, ele morreu louco”. O que é um quadro para Argento? Um objeto
fascinante e proteiforme. É a princípio um cadre que, suscitando na imagem as
bordas da tela cinematográfica, hipnotiza o olhar. É também um espelho: a camada
de vidro que a protege permite que se reflita a imagem do espectador: imagem de
Ásia Argento, como se esta já não fosse feita de carne, mas elemento do quadro,
como se o quadro, quer seja o de Ucello ou o de Botticelli, a vampirizasse;
imagem do serial killer , na câmara do hotel, o que reforça a analogia; pois é
o quadro que é uma força mortífera, é o quadro o serial killer. É ele que viola
e mata: Argento se coloca na continuidade do Lang arquiteto do Segredo da porta
fechada, que mostrava câmaras mortíferas. O quadro é mesmo um ser vivo, uma
matéria sensual: é o vento, os ruídos, a tinta gouache na qual Anna Manni rola.
Anna o escuta, o sente, queria tocá-lo. Ele é enfim e sobretudo um espaço
fantasmático: ir em direção ao quadro suscita um devaneio fetal. O movimento é
menos um mergulho na matéria que uma “invaginação” neste quadro que é um
borrascoso mar: mãe e mar ( mère et mer, ambos femininos em francês).
“Mater materia” é o título de um artigo de Jean-Pierre
Richard que se aplica muito bem a esta concepção do quadro. O quadro se torna
este espaço que atrai para si todo o campo possível do fílmico, estabelecendo a
conjunção entre o material, o maternal e o matricial. Esta interpretação
psíquica é solicitada pela seqüência; mas o espaço do quadro ( no qual Anna
mergulha, atravessa, ou que desejaria estilhaçá-la) é sobretudo um espaço de
figuração, ou mesmo de desfiguração. Como o diz Georges Didi-Huberman, ao falar
do pequeno pano de muro amarelo que Proust viu na Vista de Deft de Vermeer: “é
questão de matéria e de camada, por um lado; e aí, somos reconduzidos ao leito
de cores de que toda representação em pintura tira seu fundamento; por outro
lado, de comoção e abalo mortal- algo que se poderia nomear de trauma, um
choque, uma revoada de cor”. A Síndrome de Stendhal diz-nos claramente que o
trauma possui a princípio uma origem estética: um evento criado pela imagem, e
que suscita outras imagens. É por esta razão que o maneirismo de Argento faz do
trauma sua matéria figurativa primeira. Este permite decompor as causas da
perturbação estética, e tenta dele originar as imagens, todas as imagens,
imagens do sublime ( o rosto de Ásia Argento), imagens grotescas ( o corpo de
Alfredo Grossi), imagens baixas (a complacência com o gore), imagens degeneradas
( a pílula no esôfago). Este maneirismo cria em torno do trauma três momentos
figurativos: a pan, a esquadra, a pulsão.
O que é uma pan? Uma imagem que deseja o movimento, uma
imagem pictórica que deseja tornar-se ( devenir) cinematográfica. Didi-Huberman
diferencia em primeiro lugar a pan do detalhe:
“O pesquisador de detalhes é o homem que vê a menor coisa, e
também o homem das respostas; ele pensa que os enigmas do visível tem solução,
que pode apreender a menor das coisas,
por exemplo um fio, uma faca. (...) ele se toma por Sherlock Holmes. Aquele que
se deixa afetar pelas pans, pelo contrário, é o homem que contempla; ele não
espera do visível uma solução lógica ( antes, ele pressente o quanto o visível
dirime qualquer lógica). (...) O homem do detalhe, portanto, escreve romances
fechados, com questão colocada no início e resposta entregue ao fim. Se lhe
permitissem, o homem da pan escreveria listas sem fim, nem lógica. O pan só
expõe a própria figurabilidade, ou seja, um processo, um ainda-não, uma
incerteza, uma existência quase da figura”.
Esta passagem permite compreender como evoluiu todo gesto
artístico de Dario Argento, e em que sentido O Síndrome de Stendhal é uma
realização. Em Pássaro das plumas de cristal, o quadro é um índice da enquête
que estrutura apenas um campo-contracampo entre um olhar e fragmentos do
quadro; de forma alguma retomado pela narração, este é um detalhe da história.
Profondo rosso estabelece uma ambigüidade entre o ser humano e o objeto
figurativo: o humano se confunde finalmente com a figura, tornando a noção de
detalhe incerta. O que é, então, o detalhe: o rosto posicionado no quadro ou o
quadro colocado no corredor? Uma estranha cisão se instala. Se Tenebrae é a reviravolta
desta concepção do detalhe, A Síndrome de Stendhal é atualmente o último
estádio da evolução das relações entre quadro e imagem cinematográfica: o
humano se funde na figura. O quadro não é mais um detalhe, mas uma pan,
colocando o pensamento em perigo, e foi o espectador que tornou-se detalhe.A
Síndrome consagra um maneirismo da pan, desde seus créditos iniciais, que são
justamente esta lista sem sintaxe de que fala o filósofo, uma banda alógica e
fascinante. A pan é assim, portanto, ligada à origem: ao trauma e à pulsão. A
pan deseja e reinventa o plano.
O que induz um efeito cinematográfico essencial: a invenção
de uma nova temporalidade. Quando tempo Anna Manni permanece imersa no plano? A
que origem ou história pertence o peixe? A uma ordem do fantasma ou do real?
Mais que uma imersão em um outro espaço, trata-se do encontro com uma outra
cronologia. Ao entrar no quadro, Anna se perde em um instante, arrancando-se à
servidão do real e à escravidão do tempo humano. Não se trata mais de um tempo
linear, mas de um tempo onde cada unidade disjunta as outras, onde cada
unidade- como uma mônada- instala sua própria medida de tempo, seu percurso
labiríntico. O único cineasta próximo de Argento não é então De Palma, mas
antes Raoul Ruiz, o Ruiz da Hipótese do quadro roubado ou de Combate de amor no
sonho, faz a diversidade das histórias e o estilhaçamento dos quadros o
princípio de uma invenção sempre renovada da temporalidade. Para ambos, a
confusão entre imagem pictórica e cinematográfica transforma o real em um
labirinto temporal. De fato, Argento reencontra aqui por intermédio do quadro o
que havia buscado em outro lugar, por exemplo em seu Phenomena , ao
figurar o sonho e o medo.
A imagem cinematográfica faz da multiplicidade dos quadros
uma série de fragmentos de tela ( écraniques). Mas Argento não filma tanto um
olhar dirigido a uma multiplicidade de quadros- e sim uma esquadrilha de
quadros que agride um indivíduo isolado. Baudelaire, em uma passagem do Pintor
da vida moderna, que aliás Daniel Arasse cita no início de Detalhe, fala de um
artista “assaltado por uma multidão de detalhes que demandam todos justiça com
a fúria de uma multidão amorosa, em absoluta igualdade”. O quadro em Argento é,
concedemos, uma vontade furiosa, e existe bem um desejo do quadro pela
espectadora ( aqui, Anna Manni). Mas ao invés de uma multidão, trata-se aqui de
uma esquadrão, e este nome me parece definir com justiça a estética de seu
cinema. Trata-se, em efeito, do nome dado a um agrupamento de insetos, o que me
evoca as lucíolas de Phenomena. É também o nome dado pelos médicos-legistas ao
conjunto de equimoses descobertos sobre um cadáver, o que remete ao universo
mórbido de Argento. E mesmo quando ele filma uma revolta, como no Cinque
giornate, ele a filma justamente como uma esquadra, mostrando como os indivíduos
agregam-se com ordem uns aos outros, formando progressivamente uma multidão. A
esquadra constitui em Argento o modo principal da agressão, da insubmissão ao
real. É um regime de signos que busca quebrar o continuum cinematográfico, a
homogeneidade das imagens, assim como a continuidade temporal, constituindo a
pedra de toque de seu maneirismo.
A esquadra manifesta a violência intrínseca da imagem. Esta
não é mais uma pura superfície, neutra e ineficaz. Ela possui uma força e uma
intensidade próprias. É, segundo a expressão de Jean-François Lyotard, “um
corpo volumoso”: uma massa orgânica e organizada, viva e desejante,
pluridimensional. A imagem possui uma profundeza e fundos insuspeitos. Como
explorar estes limites e estas bordas? É este sem dúvida o trabalho do
maneirismo de Argento: pôr a imagem à prova e atingir seus limites. Também é
necessário figurar este peixe antropomorfo: ele mostra que investir o espaço da
imagem é forçosamente remontar a uma origem mítica. Ele permite mostrar
sobretudo que as bordas da imagem são fantasmáticas: ou seja, que uma
representação da origem é sempre representação de um fantasma primitivo.
Segunda conseqüência, um fetichismo certo pela boca: boca do peixe, boca de
Alfredo Grossi, que balança entre seus lábios uma navalha; lábios de Asia
Argento fendidos na seqüência liminar, depois talhados pelo assassino. Trata-se
primeiro de filmar uma vagina, de fazer da boca uma meio de magnetização e uma
origem do plano, e de dar a este um sexo. Existiria portanto em Argento uma sexualidade
das imagens. Mas mais que uma figuração fantasmática, parece-me que, por esta
boca, Argento designa sobretudo os lábios da imagem. O maneirismo consistiria a
partir daí em um gigantesco dispositivo pulsional destinado a fazer tremular os
lábios da imagem.: fazê-la falar, fazê-la sangrar, fazê-la gozar.
À guisa de conclusão, esta leitura se propunha a dar uma
interpretação das origens de uma antipatia, um pouco como fez Philippe Berthier
em literatura em relação a Chateaubriand e Stendhal, já que se sabe que De
Palma e Argento se detestam, ou no mínimo se ignoram. Podemos mesmo considerar
Síndrome de Stendhal como uma resposta 18 anos depois a Obsessão. As diferenças
de seus maneirismos retomam finalmente esta diferença de concepção e de figuração
da origem. Imagem palimpsesto versus imagem limiar, relação crítica contra
movimento pulsional, uma retenção do caos oposta a um abandono ao caos; estes
três conflitos recobrem três modelos da origem: modelo documentário, modelo
ontológico, modelo psíquico. Ao final das contas, estes dois maneirismos
opostos colocam a mesma questão. O que implica uma figuração cinematográfica da
origem? Ela implica sem nenhuma dúvida uma figuração do psiquismo e da
interioridade. A imagem emana então de um fundo alucinatório, um domínio de
indistinção e de dúvida, onde o espectador não sabe mais o que diante dele é
subjetivo ou não, o que é pulsional ou não. Paradoxalmente, é ao desejar
representar a regressão e a origem que a imagem desdobra todas as suas
potencialidades, unificando o desejável ao repulsivo, o grotesco ao sublime.
Haveria uma outra diferença neste maneirismo, se acharmos
precioso conservar a todo custo esta expressão, cuja chave nos é dada por uma
observação de Serge Daney:
“Entramos no maneirismo quando recuamos ( do interior), e
saímos dele quando agitamos ( do exterior). O maneirismo é um jogo por ser
muito próximo do prazer da criança, que brinca em arrancar o fígado de suas
bonecas ou a desmantelar seus brinquedos. O maneirismo é portanto destinado a uma
certa decepção ( não saber refazer o que foi quebrado). É o momento onde , de
um aquário-indigesto de cultura e catálogo de efeitos já produzidos, tiramos
alguns peixes do aquário e prolongamos o tempo deles para vê-los fazer alguns
movimentos fora de seu meio natural.”
Esta condenação virulenta resume perfeitamente o maneirismo
segundo Daney, que já havia qualificado a cenografia de Ingerno de “Grande
Nada”. Associando o prazer de fazer um filme ao prazer do evisceramento, ela se
adequa bem aos filmes de Argento ( penso nesta cena de Ópera, onde o assassino
degola a vítima para encontrar a pista que ela havia engolido). Descreve mesmo
as condições de desenvolvimento do maneirismo: a fabricação da imagem como jogo
malsão; a memória como princípio de escavação ou exumação de uma imagem. Enfim,
ela prefigura estranhamente a abertura de Síndrome, com seu peixe gigante e
estas caixas de vidro que retém os quadros, como o vidro dos aquários os
animais. Mas este “plano aquário”, recentemente teorizado por Alain Bergala,
define imperfeitamente nossos dois maneirismos. Se o gesto cinematográfico se
liberta das contingências do real, vampirizado por um culto pela referência;
para De Palma, a imagem esvazia o real, sem ter por efeito uma decepção, pois
De Palma não refaz nada. Ele mostra que a imagem não pode, não quer ser
desfeita, ser desconstruída tanto quanto vencida. Para Argento, a contestação
de Daney é diferente. O maneirismo é menos a assunção de um espaço ( o
aquário) que de uma matéria ( a água, a
cor). Não há movimento ( de dentro para fora). Trata-se aqui de tocar, de
trabalhar, de informar esta matéria da imagem de que um dos nomes possíveis
será “pulsão”.
Jean-Marie Samocki
Tradução: Luiz Soares Júnior.
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