quinta-feira, 5 de março de 2009

O gênio de Howard Hawks. Jacques Rivette, Cahiers du Cinéma 23 ( maio 1953)

A evidência na tela é a prova do gênio de Hawks: basta assistir a O Inventor da Mocidade para saber que é um filme brilhante. Alguns recusam-se a admiti-lo, no entanto; eles recusam a persuasão pelas evidências. Não pode haver outro motivo para que não o reconheçam.A obra de Hawks é igualmente dividida entre comédias e dramas – uma ambivalência notável. Ainda mais notável é a fusão desses elementos para que cada um, ao invés de danificar ao outro, sublinhe a reciprocidade: um afia o outro. A comédia jamais está ausente por muito tempo nos enredos mais dramáticos, e ela, longe de comprometer a sensação de tragédia, remove o fatalismo complacente para manter os eventos num equilíbrio perigoso, uma incerteza estimulante que colabora para a força do drama. O secretário de Scarface fala um inglês comicamente embolado, mas isso não o impede de ser baleado; nosso riso no decorrer de À Beira do Abismo é inseparável do receio do perigo; o clímax de Rio Vermelho, quando não estamos mais certos das nossos emoções, avaliando qual lado tomar e se devemos nos deleitar ou assustar, coloca nossos nervos em pânico e nos instala num estado tão atordoante e vertiginoso quanto o do equilibrista na corda-bamba cujo pé vacila sem escorregar, um sentimento tão inquietante quanto o término de um pesadelo.Enquanto a comédia confere à tragédia hawksiana sua efetividade, ela não consegue dissipar (não a tragédia; não vamos estragar nossos melhores argumentos ao ir longe demais) a forte impressão de uma existência em que nenhuma ação pode desatar-se da teia da responsabilidade. Poderíamos ser expostos a uma visão de vida mais amarga que essa? Tenho que confessar ser um tanto incapaz de aderir às risadas de uma sala lotada enquanto sou arrebitado pelas viravoltas da fábula (O Inventor da Mocidade) que retrata – alegre, lógica e impiedosamente – os decisivos estágios de degradação de uma inteligência superior.Não é um acaso que grupos semelhantes de intelectuais apareçam tanto em Bola de Fogo e O Monstro do Ártico. Hawks, porém, preocupa-se menos com a submissão do mundo à visão fria e enfadonha da mente científica que com o retrato das desgraças cômicas da inteligência. Hawks não está preocupado com a sátira ou a psicologia; para ele, as sociedades não significam mais que sentimentos; ao contrário de Capra ou McCarey, ele está exclusivamente interessado na aventura do intelecto. Se ele opõe o velho ao novo - o conhecimento humano acumulado do passado às formas degradadas da vida moderna (Bola de Fogo, A Canção Prometida), ou o homem à besta (Levada da Breca), ele se atém à mesma história – a intrusão do inumano, ou da manifestação mais crua de humanidade, na sociedade altamente civilizada. Em O Monstro do Ártico, a máscara finalmente cai: no confinado espaço do universo, alguns homens da ciência estão engalfinhados com uma criatura pior que o inumano, uma criatura do outro mundo; seus esforços pretendem enquadrá-la nos parâmetros lógicos do conhecimento humano.Mas, em O Inventor da Mocidade, o inimigo adentrou o próprio homem: o sutil veneno da fonte da juventude, a tentação do infantilismo. Esta sabemos há muito tempo ser uma das menos sutis astúcias do Mal – a um tempo na forma de cão de caça(hound), outrora na forma do macaco – quando enfrenta o homem de rara inteligência. E é a mais infeliz das ilusões que Hawks ataca com crueldade: a noção de que a adolescência e a infância são estados bárbaros dos quais somos resgatados pela educação. A criança é dificilmente distinguível do selvagem que a imita em suas brincadeiras: até o idoso mais distinto, depois de ingerir o precioso líquido, imita um chimpanzé com prazer. Pode-se encontrar nisso uma concepção clássica do homem, uma criatura cujo único trajeto para a grandeza reside na experiência e na maturidade; ao fim de seu percurso, sua avançada idade irá julgá-lo.Ainda pior que o infantilismo, degradação, ou decadência, no entanto, é a fascinação que essas tendências exercem na mesma inteligência que as percebe como más. O filme não é meramente uma história sobre essa fascinação; ele se coloca ao espectador como uma demonstração do poder da fascinação. Igualmente, qualquer um que critique essa tendência deve primeiramente submeter-se a ela.
Os macacos, os índios, o peixinho dourado não são mais que disfarce para a obsessão de Hawks com o primitivismo, que também ganha expressão nos selvagens ritmos da música tom-tom, na doce estupidez de Marilyn Monroe (o monstro de feminilidade que o figurinista quase deformou), ou no momento em que a envelhecida bacante Ginger Rogers retoma a adolescência e suas rugas esmaecem. A euforia instintiva das ações das personagens confere uma qualidade lírica para a feiúra e a asneira, uma densidade de expressão que eleva tudo à abstração: a fascinação por tudo isso confere beleza à respectiva metamorfose. Poder-se-ia aplicar a palavra “expressionista” para a maestria com que Cary Grant desdobra seus gestos em símbolos; olhando a cena em que ele se disfarça de índio, é impossível não se lembrar do famoso plano de O Anjo Azul em que Jannings olha o seu rosto distorcido. Não é de maneira alguma fácil comparar esses dois contos da ruína: recordamos como os temas de danação e maldição no cinema alemão impuseram a mesma variação rigorosa do agradável para o medonho.Do close-up do chimpanzé ao momento em que a fralda escorrega do Cary Grant bebê, a cabeça do espectador nada em constante turbilhão de imodéstia e impropriedade. E o que é essa sensação se não a mistura de medo, censura – e fascinação?
O encantamento pelo instintivo, a renúncia para as forças terrenas primitivas, a maldade, a feiúra, a estupidez – todos os atributos do Diabo são, nessas comédias em que a própria alma sofre a tentação da bestialidade, tortuosamente combinados com a lógica in extremis; o ponto mais afiado da inteligência é revertido contra si. A Noiva Era Ele toma como tema simplesmente a impossibilidade de encontrar um lugar para dormir e, em seguida, o prolonga até os extremos do aviltamento e da desmoralização.Hawks sabe melhor que qualquer outro que a arte deve ir aos extremos, mesmo os extremos da sordidez, porque essa é a fonte de comédia. Ele nunca teme usar bizarras guinadas narrativas, uma vez estabelecendo que elas são possíveis. Ele não tenta confundir as inclinações vulgares do espectador; ele as afirma ao levá-las um passo adiante. Isso é também o gênio de Molière: suas loucas relações lógicas são capazes de fazer o riso impregnar a garganta. É também o gênio de Murnau – a famosa cena com Dame Martha em seu excelente Tartufo e várias seqüências de A Última Gargalhada ainda são modelos de cinema molieresquiano.Hawks é o diretor da inteligência e da precisão, mas é também um maço de forças negras e fascinações estranhas; ele é um espírito teutônico, atraído por surtos de furor controlado que geram uma cadeia infinita de conseqüências. A existência de sua continuidade é a manifestação do Destino. Os heróis demonstram isso não tanto nos sentimentos, como nas ações, observadas por Hawks com meticulosidade e paixão. É as ações que ele filma, meditando sobre o poder autônomo da aparência. Não nos preocupamos com os pensamentos de John Wayne enquanto ele anda em direção a Montgomery Clift ao final de Rio Vermelho, ou nos pensamentos de Bogart enquanto ele bate em alguém: nossa atenção é direcionada unicamente para a precisão de cada passo – o exato ritmo do andar, de cada golpe - e o gradual colapso do corpo exaurido.
Mas ao mesmo tempo, Hawks exemplifica as mais altas qualidades do cinema americano: ele é o único diretor americano que sabe como delinear a moral. Sua maravilhosa fusão de ação e moralidade é provavelmente o segredo do gênio. Não é a idéia o que fascina em um filme de Hawks, mas a eficácia. A ação prende nossa atenção não tanto pela beleza intrínseca quanto por sua eficiência e pelos mecanismos internos que regem seu universo.Uma arte dessas exige uma honestidade básica, e o uso que Hawks faz do tempo e do espaço é testemunha disso – sem flashbacks, sem elipses; a regra é continuidade. Nenhum personagem desaparece sem que o sigamos, nada surpreende o herói se não nos surpreender ao mesmo tempo. Parece haver uma lei por trás da ação e edição de Hawks, uma lei biológica, porém, como a que regula a vida de qualquer ser vivo: cada cena tem uma beleza funcional, como um pescoço ou um tornozelo. A deslizante e regular sucessão de planos têm o ritmo da pulsação sangüínea e o filme todo é como um belíssimo corpo mantido vivo por uma respiração profunda e resiliente.Essa obsessão pela continuidade impõe aos filmes de Hawks a impressão de monotonia, do tipo geralmente associado à idéia de uma jornada a ser cumprida ou um curso a ser percorrido (Águias Amaricanas, Rio Vermelho), porque tudo é apreendido em conexão com todo o resto, tempo ao espaço e espaço ao tempo. Daí em filmes predominantemente cômicos (Uma Aventura na Martinica, À Beira do Abismo), os personagens são confinados em poucos cenários e se locomovem um tanto desgraçadamente dentro deles. Começamos a sentir a gravidade de cada movimento que fazem e somos incapazes de escapar à sua presença. Mas o drama hawksiano é sempre expresso em noções espaciais e as variações nos cenários são acompanhadas das variações temporais: seja no drama de Scarface, cujo reino encolhe da cidade que outrora governava para o quarto em que é finalmente enclausurado, ou o dos cientistas que não se atrevem a deixar a cabana por temerem a coisa (O Monstro do Ártico); dos pilotos de Paraíso Infernal, presos na sua estação pela névoa e conseguindo escapar para as montanhas de tempos em tempos, assim como Bogart (Uma Aventura na Martinica) escapa para o mar partindo do hotel que ele ronda impotentemente, entre o porão e seu quarto; mesmo quando esses temas são tornados burlescos em Bola de Fogo, com o gramático saindo de sua biblioteca hermética para encarar os perigos da cidade, ou em O Inventor da Mocidade, em que os passeios dos personagens indiciam a reversão para a infância (A Noiva Era Ele trabalha o motivo da jornada de outra forma), sempre os heróis caminham em direção ao seu destino.A monotonia é apenas uma fachada. Sob ela, sentimentos estão amadurecendo lentamente, evoluindo passo a passo rumo ao clímax violento. Hawks utiliza lassidão como dispositivo dramático – para transmitir a exasperação dos homens obrigados a se reter por duas horas, pacientemente contendo raiva, ódio, ou amor diante dos nossos olhos para repentinamente libertá-los, como baterias lentamente carregadas que eventualmente soltam uma faísca. A raiva dos personagens é elevada pelo habitual sangue-frio; a fachada calma é impregnada da emoção, com o oculto tremer de nervos e almas – até que o copo transborda. Um filme de Hawks freqüentemente possui a mesma sensação da agonizante espera da queda de uma gota d’água.
As comédias mostram outro lado desse princípio da monotonia. O andamento da ação é substituído pela repetição, como a retórica de Raymond Roussel substituindo a de Péguy; as mesmas ações, eternamente recorrendo, que Hawks desenvolve com a persistência de um maníaco e a paciência de um obcecado, repentinamente embaralham, como que à mercê de um capcioso redemoinho.Qual outro homem de gênio, ainda que estivesse mais obcecado pela continuidade, poderia ser mais apaixonadamente preocupado com as conseqüências das ações dos homens, ou da relação dessas ações uma com a outra? A maneira com que elas influenciam, repelem ou atraem uma à outra se torna um mundo unificado e coerente, um universo newtoniano cujos princípios governantes são a lei universal da gravidade e a profunda convicção da gravidade da existência. Ações humanas são medidas e pesadas por um diretor-mestre, preocupado com as responsabilidades do homem.A medida dos filmes de Hawks é a inteligência, mas a inteligência pragmática, aplicada diretamente para o mundo físico, uma inteligência que retira sua eficácia do ponto de vista exato de uma profissão ou de alguma forma de atividade humana atrelada ao mundo e ansiosa por conquista. Marlowe em À Beira do Abismo pratica a profissão assim como o cientista ou o aviador; e quando Bogart aluga seu barco em Uma Aventura na Martinica, ele mal olha para o mar: está mais interessado na beleza de seus passageiros que na beleza das ondas. Cada rio existe para ser cruzado, cada rebanho é feito para ser engordado e vendido pelo preço mais alto. E as mulheres, não obstante sedutoras, por mais que o herói se afeiçoe a elas, devem juntar-se a ele na luta.É impossível evocar adequadamente Uma Aventura na Martinica sem imediatamente lembrar a batalha com o peixe no começo do filme. O universo não pode ser conquistado sem a luta, e a luta é natural para os heróis hawksianos: briga corpo-a-corpo. Que entendimento mais próximo do outro poderíamos esperar, se não uma batalha vigorosa como essa? Assim, o amor existe mesmo onde há oposição perpétua; é um duelo amargo cujos perigos constantes são ignorados por homens intoxicados pela paixão (À Beira do Abismo, Rio Vermelho). Da competição surge a estima - essa palavra admirável englobando sabedoria, apreciação e simpatia: o oponente vira um parceiro. O herói sente repulsa se tiver que enfrentar um inimigo que se recusa a lutar; Marlowe, tomado por amargura súbita, precipita os eventos para apressar o clímax de seu caso. Maturidade é a marca da qualidade desses homens meditativos, heróis de um mundo adulto, quase sempre exclusivamente masculino, cuja tragédia está nos relacionamentos pessoais; comédia advém da intrusão e mescla de elementos alienígenas, ou objetos mecânicos que lhes tiram a livre iniciativa – aquela liberdade de decisão pela qual o homem pode expressar-se e afirmar sua existência, assim como um criador faz no ato de criação.
Não quero parecer estar elogiando Hawks por ele ser um “gênio alienado do seu tempo”, mas é a obviedade de sua modernidade que me impede de detratá-la. Prefiro, ao invés disso, apontar como, mesmo ocasionalmente levado ao ridículo ou ao absurdo, Hawks concentra-se primeiramente no cheiro e na sensação da realidade, conferindo-lhe uma pouco usual e profundamente oculta grandeza e nobreza; como Hawks dá à sensibilidade moderna a consciência clássica. O pai de Rio Vermelho e Paraíso Infernal não é outro senão Corneille; ambigüidade e complexidade são compatíveis apenas com os sentimentos mais nobres, que alguns ainda consideram “tediosos”, mesmo que não sejam esses sentimentos os primeiros a serem exauridos, mas antes a natureza bárbara e mutável das almas brutas – eis o motivo de romances modernos serem tão chatos.
Finalmente, como poderia omitir menção às maravilhosas cenas de abertura hawksianas em que o herói se estabelece firme e tranqüilamente? Sem preliminares, sem dispositivos expositores: uma porta abre e lá está ele em sua primeira tomada. A conversação avança e silenciosamente nos familiariza com seu ritmo pessoal; depois de esbarrar nele assim, não podemos deixar de ficar a seu lado. Somos seus companheiros ao longo da jornada enquanto ela se desenrola com tanta certeza e regularidade quanto a película que atravessa o projetor. O herói move-se com mesma leveza e constância do montanhista que inicia com passo firme e o mantém nas trilhas mais árduas, inclusive até o final da marcha mais longa do dia.Partindo desses primeiros indícios, não estamos apenas certos de que os heróis nunca nos abandonarão, mas também sabemos que eles se agarrarão às suas promessas para além de qualquer limite, e nunca hesitarão ou desistirão: ninguém consegue parar sua maravilhosa obstinação e tenacidade. Uma vez estabelecidos, eles irão até o esgotamento das forças, levarão as promessas que fizeram às conclusões lógicas, seja lá quais forem elas. O que é iniciado precisa ser encerrado. Não importa que os heróis sejam quase sempre empurrados contra seus desejos: ao se provarem a eles mesmos, ao atingir seus fins, eles vencem o direito de serem livres e a honra de se chamarem homens. Para eles, lógica não é uma fria atividade intelectual, mas a prova de que o corpo é um todo coerente, seguindo harmoniosamente as conseqüências, em ato de lealdade a si. O vigor da força de vontade dos heróis é a garantia da unidade entre homem e espírito em nome daquilo que, duplamente, justifica a existência e lhe confere seu sentido mais elevado.Se é verdade que somos fascinados por extremos, por tudo que é ousado e excessivo, e que achamos grandeza na falta de moderação – então é dedutível que deveríamos nos intrigar com o choque dos extremos, porque estes agregam a precisão intelectual das abstrações e a magia elementar dos grandes impulsos mundanos, conectando tempestades com equações em afirmação da vida. A beleza do filme de Hawks advém desse tipo de afirmação, persistente e serena, sem remorsos e sobressaltos. É uma beleza que manifesta a existência pelo respirar e o movimento pelo andar. O que é, é. (That which is, is).
Tradução de francês para inglês por Russel Campbell e Marvin Pister, adaptado da tradução de Adrian Brine. Tradução de inglês para português de Nikola Matevski.

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