Foi há trinta anos atrás. A prosperidade crescia a olhos vistos, construíam-se auto- estradas. A França do crescimento industrial fazia o possível para esquecer. Esquecer Montoire e Auschwitz, esquecer Hiroshima, esquecer Dien-Bien-Phu, a Algéria. O estruturalismo começava a disputar as manchetes das revistas com a Nouvelle Vague. Era 1963, ou talvez em 1962, uma jovem chorava no cinema.
Neste mundo que queria esquecer a derrota, todas as derrotas, que se aturdia fascinado com o progresso infinito da vida material, o que poderia ainda provocar as lágrimas de uma jovem, um transbordar de lágrimas irreprimíveis, abandonadas, quase voluptuosas? Evidentemente, a contemplação de um rosto, nada mais. Um rosto em grande close, monstruosamente cortado de seu corpo, terrivelmente sofredor, torturado, isolado sobre um fundo branco que lhe acentuava o desespero. As lágrimas eram o signo visível de que alguma coisa se transmitia do sofrimento representado na tela àquela que o observava, que o atravessava: que a observadora havia se identificado ao sofrimento, que havia se tornado a sofredora.
O rosto da jovem em lágrimas também era um close de filme: Anna Karina, a Nana de Viver a vida, em contracampo de Falconetti, a Joanna D’arc de Dreyer. Depois de trinta e tantos anos, anos que viram tantas coisas se encenar na história do cinema e na história do mundo, um encontro permanecia eficazmente possível entre estes dois rostos de mulher, com a condição de que um pedaço de celulose os reunisse. A paixão de Jonna d’arc, apresentada então em uma versão degradada, com sonorização pesada, já era à época um eterno monumento. Hino à alma, à humanidade da alma humana, - apesar do kitsch sulpiciano de planos de vitrais, acrescidos ao filme por Lo Duca- , o filme parecia feito para tornar visível, de uma vez por todas, esta assustadora e essencial nudez da alma, do rosto da alma.
O rosto da jovem em lágrimas também era um close de filme: Anna Karina, a Nana de Viver a vida, em contracampo de Falconetti, a Joanna D’arc de Dreyer. Depois de trinta e tantos anos, anos que viram tantas coisas se encenar na história do cinema e na história do mundo, um encontro permanecia eficazmente possível entre estes dois rostos de mulher, com a condição de que um pedaço de celulose os reunisse. A paixão de Jonna d’arc, apresentada então em uma versão degradada, com sonorização pesada, já era à época um eterno monumento. Hino à alma, à humanidade da alma humana, - apesar do kitsch sulpiciano de planos de vitrais, acrescidos ao filme por Lo Duca- , o filme parecia feito para tornar visível, de uma vez por todas, esta assustadora e essencial nudez da alma, do rosto da alma.
A alma tem um rosto? Sim, respondem os místicos, é o rosto do “homem interno”, que vive para além da morte. Seu rosto, sua face tornam-se então uma imagem, semelhante “à sua afecção dominante ou a seu Amor reinante”, de que o rosto só constitui a forma exterior:
“Todos, quaisquer que sejam, são reduzidos a este estado, de falar como pensam, e mostrar, através de seus rostos e seus gestos, a sua vontade. Daí resulta que as faces de todos os Espíritos tornam-se as formas e as efígies de suas afecções” ( Swedenborg, O Céu e as maravilhas do Inferno).
É um tal rosto, querido e posto como Absoluto, “com todos os pensamentos, as intenções, os prazeres e os temores que o haviam agitado” que oferecia Dreyer, realizando de uma forma quase ideal esta utópica perfeição do rosto humano, a transparência.É neste rosto absoluto que imergia Nana, e Godard, há trinta anos atrás, ainda acreditava que a alma pudesse falar à alma, até a dimensão física das lágrimas. No fim da primeira seção de Vivre sa vie, Nana e Paul disputam uma partida de fliperama. Paul ( André. S. Labarthe) comunica à Nana uma brincadeira de criança que ele acha muito divertida. Sua voz, de súbito muito próxima, abandona a ambiência do café onde se encontram, e ele recita: “A galinha é um animal que se compõe de exterior e interior. Se tiramos o exterior, resta o interior, e quando tiramos o interior, vemos a alma”. Um ano antes, Bruno Forestier, o “pequeno soldado”, anunciava à mesma Anna Karina ( ela se dizia chamar Veronika Dreyer então), no momento de fotografá-la:
“Quando fotografamos um rosto, fotografamos a alma que se encontra por detrás dele”.
“Quando fotografamos um rosto, fotografamos a alma que se encontra por detrás dele”.
Muito tempo se passou desde então, e não apenas sob a forma de uma leve suspeita. A alma pode realmente falar à alma, a humanidade de um rosto à humanidade de outro rosto? O cinema pode ainda crer neste encontro efusivo , mostrá-lo simplesmente, como se imediato e natural? Nada é menos certo: o potencial de humanidade, de alma não são mais no cinema um dado ( donné), e não apenas pelo fato da “alma” ter se tornado uma noção duvidosa. Na verdade, foi justamente no território onde ela possuía o valor mais eminente, no cinema de arte europeu, que a alma foi mais duramente posta à prova.
Alguns anos depois das lágrimas de Nana, um outro filme multiplicava os closes sobre um rosto de mulher à beira da crise. Mas nada era mais simples, imediato, nada mais “jorrava da fonte” ( ne coulait de source), nem mesmo as lágrimas. Esta mulher em crise não tinha mais diante de si a imagem mítica, sacralizada de uma Alma absoluta e santa- mas uma outra mulher, frágil e fraturada como ela, que ora lhe estendia um espelho acusador e desapiedado, ora ameaçava de tal forma o seu ser que chegava ao ponto de trocar com ela nomes e rostos, lhe disputava o espaço do plano. De qualquer forma, não era mais uma putinha ingênua e idealista, derretendo-se de simpatia ao impacto de uma grande dor, mas uma atriz célebre, à qual a dor do mundo havia imposto a afasia, sem que a ela fosse dada a chance de se reconhecer, e ainda menos esquecer.
O próprio título do filme, Persona, o dizia: era uma história de máscara, não se tratava mais de uma alma “por detrás de um corpo”, alma diante da qual a verdade estacaria.A “verdade” não passava de uma trama inapreensível, circulando de rosto em rosto sem jamais se fixar. Nos primeiros planos, víamos uma criança talvez morta tentar, de forma vã, ao tocar-lhes com os dedos, “dar uma alma” a rostos gigantes; nos últimos planos, a criança tateante ainda se encontrava lá, e os rostos não cessavam de lhe escapar definitivamente. O filme era a explicação desses rostos, mas o que ele explicava era apenas isso: um rosto é uma tela, uma superfície. Não há nada “por detrás”, e tudo o que nele se inscreve permanece-lhe alienígena – poderia da mesma forma se inscrever em outro lugar, sobre um outro rosto ( ou então os rostos podem se agregar, superpor, acoplar, como se fossem superfícies in-diferentes).
Neste curto espaço de tempo que separa os dois filmes, alguma coisa havia ( qual?) precipitado a situação de um estado a seu extremo oposto? E se Vivre sa vie é o “revelateur” que acrescenta a lupa de seus closes aos closes de Dreyer a fim de fazer ressurgir uma alma de suas bobinas, que filme hoje em dia nos permitiria elucidar as monstruosas “ampliações” bergmanianas?Seria preciso retornar ao cinema primitivo e suas “grosses têtes”?Ou ao contrário, procurar perto de nós, na ausência glacial de profundidade sob os rostos, que por vezes nos surpreende nos filmes, os últimos signos, enfim revelados, de um anti-humanismo que Bergman genialmente apenas pressentiu?
Este livro não constitui uma história do rosto, nem uma história das representações do rosto. Tomando o cinema por testemunha, ele visa a se interrogar sobre o papel ( suspeito) que artes eminentemente humanistas da representação desempenharam no sentimento atual de uma deserção (déreliction) da face e do humano. Em suma, ele tenta se questionar sobre como a representação afetou, no mais alto grau, o status de todos os seus objetos mais caros. Se houvesse uma tese a enunciar, seria a de que, de tanto nos deixarmos “dévisager” ( olhar longamente, escrutar, examinar), perdemos a face. Os cinco anos que separam o filme de Godard do de Bergman condensam esta perda, perda que é preciso agora desdobrar, dispor diante de nós, com o fito de compreendê-la um pouco. E com este objetivo, remontar bem antes de Godard, bem antes de Dreyer, à questão do rosto, questão humana eterna e essencialmente posta...
Jacques Aumont, Du visage au cinémaTradução: Luiz Soares Júnior.
Um comentário:
Tambem tenho um blog sobre cinema, embora um pouco mais específico pois trata apenas cinema gay. No entanto, estando Portugal no ranking dos 5 primeiros a nivel mundial em cinema gay, aproveito para divulgar aqui a minha selecção, concerteza que alguns serão do vosso agrado.
www.filmes-gay.blogspot.com
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