O mais intrigante dos filmes de Chaplin; seu caráter enigmático- ninguém pode se vangloriar de ter exatamente captado o sentido do filme- preservou-o intacto do envelhecimento. Uma parte do enigma reside na relação existente entre Verdoux e as diversas encarnações passadas de Carlitos. A priori, o vagabundo e o assassino de mulheres não possuem nada em comum. Porém, um exame mais atento revela que sim. Verdoux conserva ao menos duas características de Carlitos, uma débil e inútil, a outra monstruosamente intensificada. Como Carlitos, Verdoux é um ser sensível, dotado de compaixão, mostrando em certas ocasiões um grande coração. Ele possui também o sentido da adaptação social e a ferocidade de Carlitos, tão característica dos primeirtos curtas. De fato, ele estende à sociedade o seu espelho: negocismo diabólico, destruição, exterminação. "Von Clausewitz afirmou que a guerra era uma extensão lógica da diplomacia. Monsierur Verdoux pensa que o assassinato é a extensão lógica dos negócios"( comentário de Chaplin pouco antes do lançamento do filme). Verdoux é o produto lógico-e lúcido- da sociedade e da época onde vive. Justamente porque Verdoux é um personagem lúcido- que ele se refrata e se contempla agindo-, é que o filme pode tornar-se cômico. Sua comicidade está mais próxima de De Quincey que do humor inglês tradicional, e dá a este retrato de assassino uma dimensão profundamente perturbadora, em particular em razão desta estranha serenidade que o herói manifesta em seus crimes, no seu processo e diante da morte. Sem dúvida, ele se concebe como inocente, e Chaplin não está longe de compartilhar seu ponto de vista.
A idéia de Verdoux veio a Chaplin pelo intermédio de Orson Welles, que projetava filmar uma vida de Landru. Welles pediu a Chaplin para interpretar o papel principal. Mais tarde, Chaplin retomou o projeto por conta própria, e creditou Welles nos créditos para evitar toda acusação de plágio. Ele trabalha no roteiro de novembro de 42 a maio de 46. A filmagem se desenrola num rompante em 77 dias, com um ultrapassamento mínimo- para Chaplin!- de 17 dias em relação aos 60 previstos. Pela primeira vez em sua carreira, Chaplin utiliza e respeita um plano de trabalho. Ele recorrera à colaboração técnica de Robert Florey, que foi sem dúvida em parte responsável por esta unidade e rapidez da filmagem, até aí desconhecidas de Chaplin. Este pensara em engajar Edna Purviance, sua primeira parceira, no papel de Madame Grosnay. Ela falta aos ensaios, e é substituída por Isobel Elsom. O filme obteve um sucesso comercial medíocre nos Estados Unidos e um sucesso de estima na Europa. ( Nos Estados Unidos, as reações oficiais muito negativas terminaram de realizar o divórcio entre Chaplin, acusado de comunismo, e o país).
Incrivelmente surpreendente em relação ao que se esperava dele- como aliás foi o caso de todos os seus longas metragens- , Monsieur Verdoux desta vez ia longe demais para poder ser compreendido e assimilado imediatamente. Sua audácia, embora menor que a do Grande ditador, consiste na relação do filme com sua época. O filme é situado nos anos 30, mas a imensa perturbação que testemunha demonstra até que ponto Chaplin não digerira a Segunda Guerra mundial. Lemos em filigrana o quanto a decadência geral dos valores do antigo mundo o haviam afetado e transtornado. A isto se somam evidentemente , para intensificar sua amargura, certos eventos de sua vida privada e as campanhas difamatórias a que haviam dado pretexto.
No plano formal, seu domínio permanece o mesmo, mas aqui com um caráter confinado, uma voluntária estreiteza, uma tendência à abstração- em particular pelo uso intenso da litote (elipse)-que se conjugam bem ao clima de asfixia moral do filme. Os diálogos possuem uma extrema importância: eles permitem, sobretudo nas cenas espantosas com a jovem desesperada, a alternância entre o pessimismo e o otimismo de Chaplin, captados num equilíbrio particularmente instável. E é unicamente pelo diálogo que este velho inimigo do cinema falado consegue imprimir um diapasão original a certos detalhes, certas cenas, como aquela da florista confusa pela corte insistente que Verdoux faz ao telefone a Madame Grosnay. Monsieur Verdoux se caracterize enfim por uma verve cômica negra, muito caricatural, que emerge por exemplo nas cenas onde figura Martha Raye ( seu papel tinha sido escrito por Chaplin especialmente para ela). Isto não impede o conjunto dos retratos femininos de possuírem uma tal variedade de nuances que foram com frequência subestimadas. É certo, Monsieur Verdoux se coloca antes de tudo como jeu de massacre. No entanto, a permanente tentação humanista de Chaplin ainda se manifesta, frágil luar flutuando sobre um oceano de cinismo e derisão.Jacques Lourcelles, Dicionário de filmes, páginas 978-979
Tradução: Luiz Soares Júnior