quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

O fantasma apaixonado, Joseph Mankiewicz

Uma das obras-primas de Mankiewicz e um dos mais belos filmes hollywodianos. Neste terceiro filme realizado para a Fox, cujo roteiro não foi escrito por ele, mas apenas corrigido, refinando (peaufinant) notadamente o personagem de Miles Fairley. Mankiewicz se expressa tão profundamente quanto nas obras que ele tirou dos seus próprios scripts. O Fantasma Apaixonado oferece uma mistura rara, quase única, entre a expressão de uma inteligência solta (deliée) e satírica (caustique) e um gosto romântico pelo devaneio, demorando-se sobre as decepções, as desilusões da existência. O filme não pertence a qualquer gênero conhecido e cria ele mesmo o seu gênero para contar, com uma poesia dilacerante, a superioridade melancólica do sonho sobre a realidade, o triunfo daquilo que poderia ter sido sobre aquilo que foi. É igualmente um filme sobre a solidão, sobre essas almas insatisfeitas e sonhadoras para as quais a solidão abre o caminho em direção a natureza, a uma forma quase imaterial de felicidade. Todos os elementos da mise em scène, dos atores ao cenário, dos diálogos à fotografia, são soberbos e marcantes do selo da perfeição. Sublime composição de Bernard Herrmann. Acompanhando a meditação do autor, ela sublinha às vezes até o limite da explosão o contido lirismo da obra. Graças a ela, por exemplo, os planos de gaivotas e de ondas ou aqueles onde Gene Tierney caminha ao longo da praia e que indicam a passagem dos tempos figuram entre os mais belos do filme; no entanto, poderiam passar como momentos dos mais banais.
Jacques Lourcelles
Tradução: Matheus Cartaxo

Hércules na conquista da Atlântida, Cottafavi

Apesar da sua popularidade, o péplum italiano dos anos 60 foi um gênero sacrificado, até mesmo massacrado pela pobreza dos orçamentos e pelo descuido técnico da realização. Por isso, os dois mestres do gênero (Cottafavi e Freda), que só foram reconhecidos como tal após seu desaparecimento, tiveram que recorrer à astúcia para fazer uma obra pessoal e criativa. Cottafavi utilizou, como aqui, com uma certa verve vingativa, o humor e a piscadelas de olho ( clins d’oeil) das histórias em quadrinhos, onde alguns quiseram ver uma forma de distanciamento brechtiano. Freda preferiu reencontrar, no interior do gênero, os caminhos da aventura (Le Géant de Thessalie, 1960) ou um certo barroquismo (ou un certain baroque), bizarro e compósito (composite) (Maciste em enfer, 1962), que reatava com as origens do pépum, na época do cinema mudo.
Jacques Lourcelles
Tradução: Matheus Cartaxo

Minha vingança, Shoei Imamura

Em seus filmes, Imamura pinta a emergência das pulsões e dos instintos mais primitivos nos seres pertencentes às sociedades ditas civilizadas. Ele adora contar a história ( ou a contra-história) do Japão ao longo de várias décadas. O período do pós-guerra fascina-o particularmente. Seu Japão é um mundo bárbaro, onde cada personagem tenta sobreviver através do comércio de corpos e de bens, a astúcia, a violência. A história de Enokizu, o herói de Minha vingança, que se vinga de estar vivo naqueles que transmitem a vida ( seu pai, sua amante, grávida dele), é uma história de sexo e de sangue, descrita, ao longo de uma narrativa entrecortada e ziguezagueante, por um clínico, um entomologista que só acredita no behavorismo. Imamura desconfia de toda explicação referente à psicanálise, à sociologia, embora seus filmes estejam repletos de fatos suscetíveis de enriquecer estes diversos domínios. As causas, as intenções que se poderiam descobrir sob cada ato humano são para ele um abismo, impossível - e portanto, inútil- de sondar.
Sua temática, no interior do cinema japonês, não é exclusividade sua, mas ele a eleva, na mise-en-scéne, a um nível de brutalidade, intensidade e impassibilidade impressionantes. Ele busca sobretudo que seus filmes- particularmente Minha vingança- sejam tão obscuros, impenetráveis e opacos quanto o próprio universo. Sob esta ótica, Minha vingança é um dos poucos filmes da história do cinema que se poderia qualificar de faulknerianos.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

O homem errado, Hitchcock

A liminar declaração de Hitchcock é clara: ele não usou o realismo de um fato qualquer para obter um grau suplementar de verdade, mas para fazer a economia da verossimilhança. Somos mergulhados em uma história cuja verossimilhança não precisa ser demonstrada ( o que é o papel, com freqüência ingrato, de todo autor de ficção), uma vez que ela realmente aconteceu. Richard Fleischer vai utilizar o mesmo procedimento em O estrangulador de Boston, 1968, e em 10 Rillinghton Place, 1971.
Em um primeiro nível, o filme, utilizando genialmente a câmera subjetiva e os cenários reais, é como o monólogo interior de um indivíduo médio, perturbado pelo que lhe sucede, desprovido de cólera, cedendo e depois recusando-se a ceder ( é aí que sua mulher assume a situação) à idéia que o destino fatal sofrido foi especialmente preparado para ele e torna, em consequência, toda revolta e iniciativa inúteis.
Neste nível, O homem errado é o mais belo filme kafkiano da história do cinema. Em um segundo nível, o filme desenvolve uma reflexão sobre a culpabilidade do homem: esta é mostrada como cúmplice de sua inocência. Esta reflexão, contemporânea e diferente daquela de Lang, pode no entanto ser-lhe comparada. Lang chegou, na última parte de sua obra, a ser assombrado pela noção de indiferenciação ( pelo caráter intercambiável) da inocência e da culpabilidade do indivíduo. Ele pensava ( vide While the city sleeps, Beyond a reasonable doubt) que a humanidade é tão culpada, tão corrompida que a inocência ou a culpabilidade de um indivíduo tornava-se algo de imponderável e finalmente indiferente na economia geral do mundo. Hitchcock é mais maniqueísta e menos desesperado. Seu maniqueísmo quer que a metade inocente da humanidade não possa “lavar as mãos” da culpabilidade da outra metade e deva, de qualquer maneira, responsabilizar-se por ela, pois de qualquer maneira a inocência não poderia deixar de lhe sentir os efeitos. O sósia de Manyy é também seu duplo. É relacionado a ele por uma ligação profunda que faz o mistério do filme. Hitchcock adere aqui a uma visão cristã do mundo, da qual o pecado original é a pedra angular. E a especificidade de O homem errado vem finalmente do fato de ser um filme kafkiano originado por um filme cristão, resumo impressionante e sem dúvida invertido da história espiritual do século 20. O sentido da obra, tanto quanto as peripécias da intriga, reduzidas aqui a uma fascinante nudez, nutrem o suspense veiculado pelo filme. Robert Brucks e Bernard Herrmann fizeram prodígios para colocar seu talento e sobriedade a serviço do gênio de Hitchcock, que nunca foi tão evidente e empolgante como aqui ( salvo talvez em Murder). Henry Fonda à altura de si mesmo.

Biblio: importante artigo de Jean-Luc Godard ( sua melhor contribuição ao cinema) aparecido , no lançamento do filme, em Cahiers du Cinema, número 62.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior

Fat City, John Huston

Primeiro filme rodado por Houston nos Estados Unidos depois de Os desajustados ( 1961). Como na maioria de seus filmes, este aqui, em forma de balada melancólica, possui pouquíssima intriga, e Huston manifesta em relação a ela uma quase total indiferença. Isto tornou-se cada vez mais corrente em seu cinema desde The asphalt jungle. O que lhe interessa são os personagens, suas errâncias, suas conversações, ainda mais erráticas que seus deslocamentos no espaço ( aqui Huston quase vence seu “irmão caçula” neste domínio, Cassavetes), suas ligações amorosas, camaradagem, sua solidão, e, é claro,a atmosfera social na qual eles se situam. O tema, hustoniano por excelência, do fracasso aqui é completamente interiorizado nos dois personagens principais. Suas reações, apesar de terem apenas dez anos de diferença, permitem mensurar o abismo que separa a adaptação desvairada ao fracasso ( Tully) de sua descoberta ainda matizada de esperança ( em Ernie). Contudo, é mais ou menos certo que Ernie, em dez anos, estará na mesma exatamente na mesma situação de Tully. De forma acessória- mas será tão acessória assim?-., o filme fala também do alcoolismo; os personagens bebem para se consolar da realidade e em seguida falam interminavelmente, para se consolar por haver bebido.
A partir dos anos 70, a obra de Huston encontra uma nova juventude, e vai se tornar uma das mais tocantes do cinema americano, em uma época em que este havia empobrecido terrivelmente.O que nos parece mais valioso nesta evolução não é uma renovação dos temas ou dos assuntos, mas do olhar, como se Huston tivesse enfim encontrado, depois de tantas tentativas, o ângulo justo ( justo de seu ponto de vista) de onde observar a condição humana. Neste olhar, encontramos muito de compaixão viril ( o contrário de miserabilismo), um conhecimento íntimo do assunto mas também uma certa distância crítica, que mescla amizade e ironia. O mais espantoso neste olhar é que ele seja absolutamente o mesmo quando Huston pousa os olhos sobre personagens, situados em algum lugar entre O’Neil e Steinbeck, que são como irmãos para ele ( Huston praticou boxe com 18 anos em lugares semelhantes aos descritos aqui); ou quando ele examina “bonshommes” cuja experiência se encontra a anos luz da sua, como os fanáticos e os obcecados religiosos de Wise Blood. É o olhar, estranhamente sereno, de um cineasta clássico que entra em seu período pós-clássico e testamentário. Interpretação fantástica. Fotografia soberba de Conrad Hall, que alia o realismo a uma sutil sofisticação crepuscular para iluminar os lugares e as pessoas que Huston conheceu, assim como vários intérpretes não profissionais. Um dos grandes filmes em cores dos anos 70.
Jacques Lourcelles, Dicionário de Filmes.
Tradução: Luiz Soares Júnior

Os dez mandamentos, DeMille 1956

É, segundo suas declarações, a atualidade da mensagem bíblica que conduz DeMille a empreender, no meio dos anos 50, um remake do seu primeiro filme bíblico de 1923. Os Dez Mandamentos conta, com efeito, a odisséia alegórica do combate da Liberdade contra todas as formas de autoritarismo. O destino quis que DeMille assinasse ali o seu testamento, elaborado com mais cuidado ainda e numa liberdade de manobra, uma tranqüilidade de espírito tão grandes como em nenhum de seus outros filmes. A Paramount assinou, por assim dizer, um cheque em branco. Estimado em 8 milhões de dólares, o orçamento subiu, sem problemas, até 13. A escrita do roteiro se estendeu sobre três anos e uma preparação extremamente estimulada (poussé) e meticulosa precedeu em dois as filmagens propriamente ditas. Um resumo das pesquisas e da documentação reunida foi publicado por Henry S. Noerdlinger em um volume que faz um apanhado do caráter polivalente e aprofundado das diferentes investigações efetuadas antes das filmagens. Instintivamente, DeMille procurou sintetizar os aspectos desconjuntados da primeira versão: a força ditatorial, a dramatização da intriga, a estilização plástica da imagem, a busca pelo épico e pelo espetacular. No que concerne à dramatização, ele escolheu contar a história do indivíduo Moisés, quer retomando algumas teorias feitas por historiadores para preencher as lacunas biográficas da Bíblia, quer formulando outras para o filme. « O dever de todo historiador é de fazer um relato exato de fatos conhecidos e comprovados. O dever de todo dramaturgo é preencher as lacunas entre esses fatos. » Uma parte da imaginação entrava assim no filme, dando ao maravilhamento (ou maravilhoso) cristão uma nova juventude expressiva. Inventados de todas as peças ou tirados da História e reinterpretados, diversos personagens ganharam então uma sutileza, ou mesmo uma ambigüidade inesperada (cf. o personagem de Nefertiri). Esta vez, contrariamente ao que se tinha passado em 1923, DeMille pôde ir ao lugar e beneficiou o filme com recursos (moyens) mais colossais ainda.
Inultrapassável no plano do espetacular ( a partida dos Hebreus do Egito é sem dúvida a sequência mais “povoada” de toda a história do cinema), Os dez mandamentos, no entanto, permanece fiel no plano plástico ao estilo voluntariamente arcaico de DeMille e à sua visão de um espaço de duas dimensões. “ A disposição dos volumes e de sua apreensão (...), escreve Michel Mourlet ( Cahiers du Cinema, 97) fazem de seus planos, com frequência, uma pintura plana. Mas, em suma, por que DeMille preocupou-se tanto com o espaço? Um homem e uma mulher , desnudos “à antiga”, palmas ao vento, uma paixão simples lhe seriam suficientes para estabelecer, na ordem dos gestos, um equivalente aos afrescos egípcios, dos quais a perspectiva está ausente, mas não o coração”.
Sendo um dos mais sóbrios e menos delirantes de seus filmes, Os dez mandamentos manifesta também a aptidão única de DeMille em manipular, dispor, integrar no formato 1,33 dezenas de milhares de figurantes e de animais ( 20 000 figurantes e 15 000 animais) com a precisão maníaca de um miniaturista. Reconhecemos enfim a dimensão mais preciosa de seu estilo nesta arte de estriar de detalhes familiares e tocantes uma trama histórica e religiosa que, sem estes detalhes, arriscaria desabar sob o peso do gigantismo e da desumanidade.
Nota: O prólogo ( cerca de 2 minutos) no qual DeMille vem apresentar seu filme ao público diante de uma cortina de teatro é geralmente omitido das cópias de relançamento e das que passaram na televisão. Ele figura em uma tiragem do filme em vídeos americanos.
Jacques Lourcelles
Tradução: Matheus Cartaxo e Luiz Soares Júnior.

Cat people, Tourneur


Antes de tudo, não esquecer que se trata aqui de um filme essencial, não apenas na carreira de seus dois principais artesãos ( o produtor Val Lewton e o realizador Jacques Tourneur), na história do gênero fantástico mas também e sobretudo na evolução do cinema como um todo. Borges consagrou uma de suas enquètes “, O pudor da História”, a mostrar que as datas mais importantes da história não são forçosamente as mais espetaculares. ‘Veio-me a suspeita , escreve ele, que a história ,a verdadeira história, é mais pudica, e que as datas essenciais podem também permanecer por longo tempo secretas”. Se isto é verdadeiro em relação à história política e social, o é ainda mais em se tratando da estética. Cat people representa no cinema uma destas datas essenciais e secretas. A gênese do filme é demasiado conhecida, já que Jacques Tourneur e o roteirista DeWitt Bodeen a contaram ( respectivamente, em Présence du Cinema número 22-23 e Films in Review, 1963) e que Joel Siegel, em seu notável “Val Lewton. The Reality of Terror”, recolheu os testemunhos mais próximos do produtor. Charles Koerner , o novo responsável pela RKO, pede a Val Lewton para realizar um filme a partir do título Cat people, que lhe parece suficientemente excitante e atrativo. Ele julga que os monstros do pré-guerra ( vampiros, lobisomens) já tiveram sua época e que é preciso buscar alguma coisa nova e insólita.
Val Lewton encomenda o roteiro a DeWitt e a direção a Tourneur. Mas a história propriamente será pensada a três. Val Lewton tinha primeiro pensado em adaptar uma novela de Algernon Blackwood, depois decide contar uma história contemporânea, inspirada de uma série de desenhos de moda franceses que mostravam modelos carregados por manequins com cabeças de gatos. Cada um dos três autores trará sua pedra à construção do filme e, por exemplo, a cena da piscina será suscitada por uma lembrança de Tourneur, que quase tinha se afogado, sozinho numa piscina. Lewton aprecia particularmente estes momentos de angústia, como na cena em que Alicem se sente perseguida por uma presença invisível. Tudo passará, no estágio da escritura do roteiro como na realização, pela sugestão, pela sábia progressão das cenas que exprimem o terror e a violência sem que elas jamais sejam totalmente representadas na tela. Os paroxismos serão obtidos por uma certa doçura insidiosa e paradoxal do estilo, que se põe a seguir de muito perto os personagens e os mergulha em uma atmosfera cada vez mais irrespirável, atmosfera esta que o espectador é levado a partilhar com eles, embora esta não provenha de nenhum elemento horrífico concreto.
Rodado em 21 dias e ao custo de um orçamento bem modesto de 130.000 dólares, Cat people será o primeiro de uma série de quatorze filmes produzidos por Lewton ( dos quais 11 para a RKO) e, na carreira de Tourneur, o primeiro no qual ele se tornou verdadeiramente ele mesmo, graças à influência ultra-criativa de seu produtor, Lewton. Este o inicia, disse Tourneur, em uma “poesia da qual ele tinha muita necessidade” ( vide sua entrevista televisionada para FR3 por Jean Ricaud e Jacques Manley, maio 1977).
Uma vez terminado, o filme foi muito pouco apreciado pelos chefões da RKO ,e vai sair como “tapa buraco” no Hawai Cinema de Los Angeles , que tinha acabado de terminar sua exibição de Cidadão Kane. Cat people teve mais sucesso que seu ilustre predecessor, e seu triunfo tirou da lama a RKO em 1941, ano muito difícil para a empresa.
Cat people permitiu a Val Lewton produzir entre 1942 e 1946, sempre com orçamentos muito reduzidos que lhe asseguraram uma total liberdade de concepção e execução, um dos mais extraordinários conjuntos de filmes fantásticos do cinema hollywoodiano ( dentre os quais se destacam particularmente o sublime A sétima vítima e Bedlam, que fecha a série). Cat people lança também a verdadeira carreira de Tourneur , que dará em seguida na mesma linha duas obras ainda mais perfeitas ( I walked with a zombie e Leopard man), antes de impor um olhar extremamente inovador sobre os outros gêneros hollywoodianos que ele ilustra.
Com o passar dos anos, mais a contribuição do filme parece incalculável. Com ele, o fantástico- que nunca será como antes- descobre que pode retirar sua máxima eficácia da discrição, que pode inventar novos meios de empolgar o espectador dirigindo-se à sua imaginação. A riqueza do trabalho sobre a luz sobretudo vai contribuir para interiorizar o conteúdo do filme nos personagens e a provocar uma identificação mais sutil e marcante do espectador com os personagens. É aí que, de forma pudica, se situa a revolução radical do filme. Pode-se resumi-la com uma única palavra: é a revolução do intimismo. Ela delineia, por assim dizer, uma linha de fratura entre o cinema do pré-guerra e o cinema moderno. O que o cinema vai ganhar é uma maior proximidade, uma maior intimidade- que se poderia quase qualificar de psíquica- do espectador com os personagens, explorados nas profundidades de seus medos, suas angústias, seu inconsciente. Esta contribuição não é contraditória- -longe disso- com o neo-realismo , que vai chegar igualmente, ao menos em Rossellini, a intensificar a intimidade do espectador, sob o plano social e em seguida espiritual, com os personagens.
O recuo agora é suficiente para que Cat people e os primeiros filmes de Rossellini depois da guerra apareçam, um secreta e subterraneamente,os outros de maneira espetacular e talvez um tanto quanto tonitruante, como os filmes mais fecundos destes últimos cinqüenta anos. O caso de Cat people é particularmente estranho, uma vez que ele nos leva a privar de mais intimidade com uma personagem ( aquela de Simone Smon) que não pode ser íntima de ninguém. Sua maldição está de tal maneira engastada na profundidade de seu ser que apenas uma investigação aprofundada pode permitir entrevê-la. Antes desse filme, o cinema era um espelho mais ou menos fiel , atravessado ao longo do caminho. A partir de Cat people, ele tende a se tornar este instrumento de mergulho que penetra no mais profundo dos personagens como em um poço. Durante os anos que se seguiram, o filme noir vai reforçar esta evolução, colocando a seu serviço, sob uma forma atual e contemporânea, as aquisições distantes do expressionismo, casadas à uma descoberta recente e com freqüência rudimentar da psicanálise. Ponto de partida da obra real de Tourneur, Cat people estabelece o que será o credo dessa obra e seu modo de abordagem da realidade. Toda realidade é da ordem do mistério, do estranho e do inefável. É preciso apreendê-la do interior, pela sugestão e pela imaginação. O olhar que penetra mais profundamente nela tem todas as possibilidades de ser o olhar de um estrangeiro, e Tourneur vai permanecer na América um dos cineastas mais estrangeiros a este país, aberto a uma contínua surpresa, a uma engenhosa e total engenhosidade. Elas vão fazer dele o pioneiro secreto, um explorador radical de vários territórios diante ( e antes) do mundo.

Nota: a filmagem de Cat people é evocada sob forma de referência nos primeiro dos três flash-backs que constituem a trama de Assim estava escrito, filme demasiado brilhante mas um tanto convencional que queria ser para Hollywood o que A malvada de Mankiewicz foi para a Broadway. O personagem do produtor Jonathan Shields ( Kirk Douglas), arrivista e perfeccionista, não tem quase nada a ver com Val Lewton, e se assemelha muito mais a David Selznick. No entanto, é este personagem que decide que será preciso criar a atmosfera fantástica pela sugestão, pela discrição, a obscuridade e mostrando o menos possível. Uma continuação bem distanciada foi dada a Cat people em The curse of the cat people ( saído na França em 1971), com uma parte dos atores e personagens de Cat People. O filme é um conto de fadas, aliás muito bem realizado, que tem mais a ver com o maravilhoso do que com o horror. Ele foi começado por Gunther Von Fritsch e terminado por Robert Wise, que assina aí, como co-realizador, seu primeiro trabalho de direção. Remake homônimo de Cat people sem nenhuma magia por Paul Schrader ( 1982) com Nastassja Kinski.

Jacques Lourcelles.
Tradução: Luiz Soares Júnior

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Os incompreendidos, François Truffaut 1959

Lançado em Paris em junho de 1959, Os Incompreendidos, primeiro longa-metragem de François Truffaut, é, com Ascensor para o Cadafalso (janeiro 1958), Le beau Serge (fevereiro 1959) e Acossado (março 1960) um dos principais filmes na origem do movimento da Nouvelle Vague. Nota-se que ele obteve uma fama imediata graças ao prêmio pela direção no Festival de Cannes, no mês anterior. Os Incompreendidos não é, entretanto, uma obra revolucionária, ou mesmo inovadora. Está ligada por um lado à Zero de Conduta ,de Vigo (revolta da infância e da adolescência contra o mundo dos adultos) e por outro às aquisições do neo-realismo, tendência De Sica (cf. Vítimas da Tormenta), com uma menor atenção ao contexto social. Truffaut procura romper com os estereótipos do melodrama tradicional, dando ao seu filme o ritmo de uma crônica. Sua narrativa, que ele pretendia relativamente não-dramatizada (dédramatisé), é frequëntemente frouxa, distendida e carente de invenção no detalhe das cenas. Seu principal mérito é chegar a suscitar, nas últimas sequências, uma emoção não solicitada e até mesmo se apoiando sobre uma certa frieza de tom. A cena mais celebrada é também a melhor: é a do interrogatório de Doinel por um psicólogo de quem se ouve somente a voz. Nessa sequência, onde triunfa a espontaneidade de Jean-Pierre Léaud, o filme transpassa o neo-realismo para encontrar o estilo de reportagem televisiva. Os Incompreendidos é a primeira parte de um ciclo Doinel que continua em Antoine e Colette, sketch de O Amor aos Vinte Anos (1962), Beijos Proibidos (1968), Domicílio Conjugal (1970), O Amor em Fuga (1978). Junto com O Quarto Verde, o ciclo constitui, notadamente por causa de seu caráter autobiográfico e da presença do mesmo intérprete em todos os filmes durante vinte anos, a parte mais original da obra de Truffaut.

N.B.: Contrariamente à opinião geralmente aceita, esse não é o filme em que Jean-Pierre Léaud faz sua primeira aparição no cinema, e sim em La Tour, prends garde! de Georges Lamplin, filmado no verão de 1957.

Jacques Lourcelles - Dicionário de Filmes.
Tradução: Matheus Cartaxo.

Blackbeard, the pirate, Raul Walsh

Obra totalmente menor de Walsh ( roteiro complicado e confuso, orçamento insuficiente) e apesar disso indispensável à sua filmografia. É que a figura do Barba Negra, a partir de uma série de episódios confusos e sem grande interesse, se sobressai( sort) admiravelmente. Este monstro alegre e feroz, espécime de humanidade como que vinda de outro planeta, nunca foi tão bem descrito em sua vitalidade, sua truculência, sua amoralidade, sua desmesura. Criatura solitária, ele pertence a uma raça da qual ele seria, por assim dizer, o único representante. Possui todos os vícios e todos os apetites do homem, mas levados a uma dimensão sobre-humana que claramente fascina e entusiasma de alegria nosso cineasta. Walsh o pinta em uma atmosfera plástica refinada, que aparentemente não lhe custa nenhum esforço. Com apenas alguns elementos de cenário, um mastro, uma vela, um pedaço de céu, mas também com a beleza de Linda Darnell, ele desenha no movimento fugitivos tableaux de mestres dignos, por seu esplendor, dos grandes pintores espanhóis.
Dicionário de filmes, Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Anjos do pecado, Robert Bresson 1943

Primeiro longa-metragem de Robert Bresson. O cineasta, que nesta época está longe de ser um teórico, sente instintivamente que sua obra tem necessidade para se realizar de um material forte, rico e ardente de um intenso fogo interior.Giraudoux, Cocteau, Bernanos lhe fornecerão. Aqui,a língua pura, límpida e no entanto rutilante do autor da Ondina ( em um de seus últimos textos antes de morrer), assim como uma intriga fina mas fortemente dramatizada permitem ao cineasta realizar esta ascese visual em direção à qual ele tende. O despojamento, que aqui é sobretudo questão de luz, se aplica lógicamente a uma matéria rica; de que, sem isso, esta se despojaria? Se o teatro está presente no filme pela construção da narrativa, a importância dos diálogos e dos monólogos, não se deve negligenciar, em relação a Bresson, a parte, ainda mais importante, do romancista, do criador de caracteres, já que nele o caráter é como se fosse a “casca” ( écorce) da alma dos personagens. Com Anne-Marie, alma agitada, orgulhosa, obstinada, que sua sede de Absoluto conduzirá a se destroçar contra os obstáculos do mundo, Bresson nos dá neste filme um esboço do personagem do cura de Ambricourt, o herói de Diário de um padre. Esboço também, de certa maneira, de todos seus personagens ulteriores. Anne-Marie e o jovem padre são o testemunho desta juventude eterna, ainda próxima da infância ( Renée Faure , em sua interpretação, demonstra isso admiravelmente), a respeito da qual Bernanos escreveu: “Eu me digo também que a juventude é um dom de Deus, e como todos os dons de Deus, ele é sem arrependimento. Só são jovens, verdadeiramente jovens, aqueles que Ele designou para não sobreviver à sua juventude”.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Pocilga, Pier Paolo Pasolini




Esta nova “máquina de sentido” é o pôr em obra de um jogo de palavras muito simples: as palavras corpos e porcos entretém uma ligação anagramática , duas distribuições diferentes das mesmas letras, de uma mesma Letra ( veremos qual é), assim como Pocilga se coloca como a dupla narrativa de um mesmo evento.
1. O que há de comum – tirando as letras- entre Porcos e Corpos? São objetos de prazer: os corpos são feitos para serem amados e os porcos devorados. Mas sob uma condição: que eles sejam, por esta razão, desprezados. Sobretudo se são - como é o caso aqui- inteiramente votados ao prazer, “prostituídos”: nenhuma parte do corpo que não seja (mais ou menos) erógena, nenhuma parte do corpo que não seja ( mais ou menos) comestível. Reconhecemos aí a moral cristã, que faz do ressentimento a condição do prazer, tela de fundo de toda obra pasoliniana. Corpos e porcos serão, portanto, objetos de uma mesma ocultação, de uma única depreciação: escondidos, negados, humilhados, censurados. Refrão conhecido demais para que nos demoremos nele.

2. Oras, em Pocilga, um jovem, ao invés de amar um corpo, devora-os; um outro, ao invés de devorar os porcos, ama-os. A razão disso é que eles se enganaram de palavra; logo, de filme. Sua transgressão é em primeiro lugar o resultado fortuito de uma inversão dos termos, de uma má leitura, de um erro de distribuição, dos quais Pasolini assume todas as conseqüências, atento ao nascimento obrigatório de ( ao menos) um sentido. O escândalo não está tanto na gravidade ou no horror dos temas abordados, mas em que eles(o canibalismo, a zoofilia, ) tenham sido suscitados sem necessidade , por jogo.

3. “ Eu disse: Deus, se soubesse, seria um porco. Aquele que ( suponho que, no momento, ele estivesse mal lavado, despenteado) se imbuísse desta idéia até os seus limites , o que teria de humano? Para além de tudo, distante e ainda mais distante, o próprio sujeito em êxtase, à beira de um vazio. E agora? Tremo."( Georges Battaille).

4. Condenado e prestes a morrer, Clementi, em um momento magnífico, diz: “Matei meu pai, comi carne humana; tremo de alegria”. Aliás, o pai de Léaud voluntariamente se compara a um porco. Se aceitarmos ver por detrás dos Corpos e dos Porcos a imagem única do Pai, os dois lados da alegoria se iluminam um pouco, mas em sentido inverso. No primeiro, não é interdito a ninguém ver no personagem de Clementi o Cristo se recusando a ser o filho de Deus: ao invés de se oferecer em repasto aos fiéis ( eucaristia), é ele quem come os outros ( inclusive alguns discípulos). Estranha reconciliação entre o Crucificado e Dionísius. À morte do Pai corresponde a morte do Logos, daí o silêncio de um filme sem Palavra. O logos, os discursos, a logorréia triunfam, ao contrário, no filme de Léaud; é que, por seu amor aos porcos, Léaud afirma sua submissão ao pai ( nazista). Também ele será devorado.

Serge Daney
Cahiers du Cinema 217, novembro 1969.
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Sétima viagem de Sinbad, Nathan Jura 1958


Segundo de três filmes de Nathan Juran realizados com Ray Harryhausen (entre 20 Million Miles to Earth, 1957 e First Men in the Moon, 1964). Segundo filme de Harryhausen em cores. Junto com Jasão e os Argonautas, realizado cinco anos mais tarde, esse é o melhor êxito (meilleure réussite) do maior criador de efeitos especiais dos últimos trinta anos. Foi na sua época um filme único e que, em seu domínio, nunca foi ultrapassado. Um equilíbrio raramente atingido existe aqui, entre a invenção tão rica e, com frequência, plena do humor do cenário, uma memorável interpretação (Torin Thatcer e Kathryn Grant estão excelentes), a qualidade da cor e da música, a vivacidade visual extraordinária dos efeitos especiais e do emprego de técnicas de animação das mais sofisticadas. Assim, por exemplo, a miniaturização da princesa Parisa é sabiamente utilizada tanto sobre o plano visual quanto no dramático (Parisa libera os prisioneiros da jaula; ela desce na lâmpada). A atmosfera de um conto de «As Mil e Uma Noites» (conflito de mitologia grega!) convém perfeitamente a Harryhausen, mais à vontade no insólito e no maravilhoso que no horror. O duelo com o esqueleto é um primeiro esboço da célebre sequência de Jasão. Harryhausen guarda um carinho especial (cf. seu album «Film Fantasy Scrapbook», New York, 1972, onde ele comenta todos os seus filmes) pela serpente-dançarina com quatro braços em que o mágico Sokurah transforma o servo da princesa.

N.B. Ray Harryhausen ilustra novamente as aventuras de Sinbad em The Golden Voyage of Sinbad, filme inglês de Gondon Hessler, 1974 (com bons efeitos especiais) e em Sinbad and the Eye of the Tiger, outro filme inglês de Sam Wanamaker, 1977, muito mais decepcionante.

Jacques Lourcelles – Dicionário de Filmes.
Tradução: Matheus Cartaxo

Johnny Guitar, Nicholas Ray

É uma destas obras-primas do cinema americano que, em seu lançamento, parecem só ter sido compreendidos na França. No entanto, tudo é excepcional neste western mítico frequentemente colocado, desde cerca de 20 anos, na frente da lista de melhores filmes do gênero, estabelecidos pelos críticos e cinéfilos do mundo inteiro. Podemos nos espantar que um filme tão original e pessoal como este tenha saído dos estúdios da Republic, a firma americana mais pobre em matéria de autores (Praticamente, nenhum autor da nova geração encontrou aí lugar. Dos antigos, só Dwan conseguiu se exprimir de forma constante , entre 1946 e 1954. Ford e Borzage realizarão alguns filmes importantes, e é necessário colocar à crédito da companhia a distribuição de House by the river, de Lang).
Não menos surpreendente é o fato de que o personagem principal seja uma mulher ( o filme foi concebido para Joan Crawford), mas também que os dois protagonistas mais determinantes e ativos na intriga sejam mulheres, ligadas entre si por um ódio visceral, um ciúme freudiano que se pode qualificar de único nos anais do western.
Quanto à Nicholas Ray, longe de buscar no western uma especificidade que os cineastas de sua geração vão encontrar frequentemente no aspecto histórico ou moral do gênero, ele escolhe utilizá-lo para contar uma história sentimental, lírica e desencantada, onde alguns se aventuraram a reconhecer elementos autobiográficos, já que o realizador tivera com sua estrela um caso alguns anos antes.
De qualquer modo, este “desvio” do gênero ( que inclui também uma parábola anti-maccarthysta , presente em diversos westerns do período, vide Silver Lode de Dwan) dá lugar a cenas de uma melancolia comovente. O amor, vivido como uma reminiscência, se exprime através de lamentos, de questões, de falsas confissões encadeados em diálogos soberbos e tornados célebres com justiça. Todos os personagens, mesmo os mais modestos, possuem um grande relevo ( vide o papel de John Carradine, empregado de Joan Crawford). Vários dentre eles servem à temática habitual do autor: um violento que tenta recalcar sua violência ( Sterling Hayden ), um adolescente vítima desta mesma violência que havia começado a praticá-la sem saber direito o que fazia ( Ben Cooper no papel de Tucker).
Enfim, temos também o uso do Trucolor, que foi rapidamente abandonado devido a seus defeitos, mas que suscita aqui interessantes pesquisas plásticas. Ray se esforça por eliminar ao máximo o azul, que o sistema reproduzia mal, para acentuar- fenômeno paradoxal num filme em cores- as tonalidades de preto e branco. O negro das roupas da multidão em fúria. O branco do robe de Joan Crawford tocando piano em seu saloon, semelhante a uma caverna.
Ao estreitamento clássico do tempo e dos espaço se opõem um conjunto de elementos barrocos, relativos sobretudo ao cenário no qual se movem os personagens. E este contraste, barroco em si mesmo, é um elemento a mais para a fascinação e originalidade provocantes do filme. Eles testemunham a extrema liberdade de um poeta que evolui no seio de um gênero ao mesmo tempo extremamente codificado e aberto a toda inovação.

Jacques Lourcelles, Dicionário de filmes.
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Anjo vermelho, Masumura


Representante prolífico e eclético de uma certa nouvelle vague japonesa ( vide também Paixões juvenis de Ko Nakahira, 1956), Masumura trabalhou para Daiei, a companhia das últimas obras-primas de Mizoguchi ( de quem ele foi assistente) até sua falência em 1971. Ele explora novos territórios na audácia e violência. O universo paroxístico, apocalíptico de Anjo vermelho se situa em algum lugar entre Goya e Céline. A utilização extremamente trabalhada do scope preto e branco, notadamente nas cenas de horror coletivo ( onde centenas de feridos uivam no hospital) confere à intriga uma grandeza trágica, sensível também nos diálogos, por exemplo nas cenas entre a enfermeira e o cirurgião. A pureza impassível dos traços da heroína imprime à sua composição e a seu jogo uma poderosa fascinação. Seu personagem não é, falando propriamente, nem benéfico nem maléfico. Compassiva em diversas circunstâncias, unindo o sexo e a morte, ela é um ser mais sutil: uma espécie de emanação atroz e lógica dos horrores da guerra, entre os quais ela evolui como um espectro, para além do Bem e do mal.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Rancho Notorius, Fritz Lang

Este filme sublime passa completamente desapercebido em sua saída. Mesmo o Cahiers du Cinema, apesar de atentos à carreira americana de Lang, não lhe consagraram nenhuma crítica. Último dos 3 westerns de Lang, é o único onde o cineasta integra completamente os dados do gênero a seu universo íntimo. Os temas languianos da vingança, violência, solidão, das sociedades secretas encontram aqui uma expressão ao mesmo tempo renovada e exótica, embora ela se insira admiravelmente no cadre tradicional do western. Sobre o plano formal, o tempo é objeto de uma utilização extremamente variada. Três tipos de tempo existem no filme: o tempo da narrativa propriamente dita; aquele- concentrado- da sequência acompanhada pela balada-leitmotiv do filme, que resume a longa busca de indícios empreendida por Vern; enfim, o tempo dos três flash-backs que recompõem a figura mítica da aventureira Altar Keane, um personagem inteiramente condiconado por seu passado ( o que vale também para a própria atriz, Dietrich).No plano do sentido, este tempo é contudo absolutamente uniforme, congelado, privado de projeto e liberdade: é o tempo da vingança e de um mundo reduzido às dimensões de uma obsessão e de uma idéia fixa. O espaço do filme reflete a mesma dualidade. Variado e rico no plano formal, suntuoso , pesado, exuberante, quase barroco, é também um espaço fechado, morto, que não leva a nada senão à repetição cíclica, fatal, sangrenta dos fatos que deram origem à narrativa. A morte de Altar Keane no fim é um eco, entre outros, da morte da jovem assassinada na segunda seqüência.
O cenário de estúdio ultrajosamente artificial, que marca a fronteira entre o mundo exterior e o rancho, foi objeto de discussões e polêmicas entre os cinéfilos.Sem dúvida, Lang , se estivesse mais livre em relação a seus meios, teria escolhido um cenário natural. Mas tal como está, este cenário só faz reforçar, talvez de uma maneira um tanto quanto demonstrativa, a estrutura asfixiante, fechada desta história “de ódio, assassinato e vingança”, o caráter de absoluta impermeabilidade deste western pessimista e, até certo ponto, expressionista. Pesa, com efeito, sobre os personagens uma maldição mais pesada que a que resulta do pecado original nos filmes de Hitchcock. Estes personagens, quer sejam animados de boas ou más intenções, se reencontram do mesmo lado da fronteira- o mau lado. Ao longo de seu périplo, Vern Haskell pode apenas se destruir e destruir aqueles que o circundam; mas ele também não pode deixar de se vingar. Pertence a uma humanidade decaída, para a qual a noção de perdão não tem mais sentido ou mesmo existência. Ele pertence, como todos os homens, a uma raça maldita.
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Madrugada da traição, Edgar Ulmer


Tudo o que o cinema pode exprimir se encontra neste “pequeno” filme, meio-western, meio-filme de aventuras, de uma limpidez e riqueza de sentido que se aproxima do sublime. Em vinte e cinco anos de carreira, Ulmer teve tempo de digerir as influências mais distantes e mais fecundas ( o Kammerspiel pela expressividade dos cenários reduzidos, Murnau pela universalidade e densidade cósmicas do tema). Pressionado pelas circunstâncias, ele cultivou igualmente, até os limites da genialidade, seu sentido de economia dramática; na verdade, senso de economia em todos os sentidos. Madrugada da traição representa a súmula de sua obra, mas ao mesmo tempo é um filme tão simples, tão acessível que pode lhe servir de introdução. É uma “morality play” ( fábula de dimensão moral, anterior à Renascença), gênero tão amado por seu autor, que conta a história de um homem cheio de defeitos mas ainda maleável que entra, graças a um irmão mais velho, por um caminho no qual ele tenha talvez a chance de se aperfeiçoar. Seu mentor é um ladrão, personagem não-respeitável por excelência, mas que tem a seu favor a experiência e a lucidez.Ao contrário do jovem, este não é um falastrão e não se utiliza de “máscaras” na convivência social.
Isto é apenas a trama da obra, que contém também uma parábola de diversos níveis e oferece uma série muito rica de variações sobre a errância e a vida sedentária, a dilapidação e a acumulação de bens, a exclusão, a participação,a lucidez e a hipocrisia. Toda verdade, nesta narrativa de diálogos literários e plenos de sentido, é nuançada por seu contrário. Formalmente, o filme reflete esta dualidade. Para seu segundo filme em cores ( o primeiro, Babes in Bagdad, 1952, era uma farsa onde a cor era utilizada de forma burlesca), Ulmer confere às aparências uma doçura, uma luminosidade, uma redondez, uma riqueza de pátina que poder-se-ia chamar de renoiriana ( ver com efeito sua pintura do personagem de Betta St. John). Ao mesmo tempo, através do personagem de Arthur Kennedy, o filme destila uma melancolia pungente, que facilmente se alça ao nível do trágico. O talento único do cineasta está completamente contido na primeira seqüência ( um aventureiro ajuda seu companheiro morrer). Aqui, a emoção atinge seu auge, já se mostra uma emoção de fim de filme, embora a história mal tenha começado.
O grande Herschel Burke Gilbert ( Carmen jones, While the city sleeps, Beyond a reasonable doubt) compôs a música do filme.
Nota: Nina e Herman Schneider: estes dois nomes nos créditos do filem durante muito tempo constiruíram um enigma para os cinéfilos. Eles são de fato o pseudônimo de Julian Harvey, roteirista posto na Lista Negra do qual o verdadeiro nome aparecerá mais tarde nos créditos de Circus World ( Henry Hathaway, 1964) e de Custer of the West ( Robert Siodmak, 1957).
Dicionário de filmes, Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior

Josey Wales, fora da lei, Eastwood

A maioria dos filmes realizados por Eastwood são interessantes, e ele se revelou, desde seu primeiro filme ( Play Misty for fire, 1971) como um dos maiores metteurs em scéne americanos contemporâneos. The outlaw Josey Wales é até aqui o seu filme mais rico e bem acabado- obra marcante da década de 70. Ela possui a dupla dimensão de uma aventura individual e de um afresco cativante dando a ver, na desordem pós-Guerra Civil, o fluxo inumerável de emigrados do interior que passam de um Estado a outro, traficantes de todos os gêneros, desempregados e miseráveis improvisando expedientes para ganhar seu pão.
No centro desta afresco, Josey Wales, camponês vítima da guerra, que se tornou um fora da lei lendário. Contra sua vontade, ele se encontra à frente de um pequeno grupo de losers, desclassificados, de Índios e desenraizados que obtém rapidamente, graças à vontade do metteur em scène, a simpatia infalível do público. Um tom único de crueldade e humanismo mesclados percorre este filme comovente e ao mesmo tempo despido de toda sentimentalismo. O ponto de partida da intriga apresenta uma analogia provisória com Run of the arrow ( Fuller, 1956). Desgostoso com os vencedores, um vencido da Guerra Civil se imiscui nos territórios indígenas. Mas o que era fascinação pelo impossível, tentativa suicida e tragicamente patética para mudar de identidade da parte de Rod Steiger, o herói de Fuller, torna-se em Josey Wales projeto de vingança, eliminação dos fantasmas do passado e reconversão inteiramente bem-sucedidas.
É que a personalidade de Josey Wales é feita de realismo e justa apreciação do possível. Solitário na alma, individualista absoluto, buscando não se aliar a nenhum grupo racial ou social definido, ele consegue, contra sua vontade, fazer adeptos que reconhecem neste homem um companheiro seguro e um protetor. Este realismo, no entanto, só representa uma pequena parte do personagem, pois no tocante ao resto, tanto por sua força física, que beira a invulnerabilidade, quanto por sua força moral, que beira a infalibilidade, o mítico Josey Wales possui qualquer coisa de um deus. Característica habitual dos personagens encarnados por Clint Eastwood e que os faz ultrapassar os limites do racional. ( Este salto qualitativo fora do racional é o próprio tema de outro western seu, High Plains Drifter, 1973).
Formalmente, Clint Eastwood observou bem seus mestres. A Sergio Leone , que o “inventou” mas que não vale um décimo dele, ele assimila esta dilatação do tempo nos momentos de violência , através qual o personagem adquire uma dimensão quase sobrenatural. De Don Siegel,ele aprendeu o gosto da meticulosidade e esta busca pela tensão que progride de forma contínua de uma sequência à outra. Estas qualidades lhe permitem dar a unidade a um filme no qual as peripécias, os personagens se assemelham a um patchwork. Eles encarnam, com efeito, os fragmentos esparsos de uma América em farrapos, que apenas poderia reconstituir e retomar seu tecido vital se assimilasse todos seus excluídos. A dramaturgia e a mise em scène do filme estão, assim como suas intenções, em busca de uma unidade perdida.
Jacques Lourcelles, Dicionário de filmes.
Tradução: Luiz Soares Júnior.

No future. Fuga de Los Angeles

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Escape from Los Angeles pertence à veia mais iconoclasta do cinema de Carpenter e marca seu retorno a uma forma voluntariamente mais rica, depois do rigor classicista de Village of the damned. Esta continuação do seu Escape from New York ( 1980) toma algumas distâncias em relação ao original: para utilizar a analogia de Bill Krohn sobre Scorsese, Escape from L. A. é para Escape from New York o que El Dorado é para Rio Bravo. Onde a Manhattan de New York 1997 representava uma figura alegórica, , a Los Angeles de 2013 imaginada por Carpenter se distancia pouco da realidade. Como diz Snake Plissken, o herói do filme, “the future is now”: o futuro é agora.

Snake Plissken ( Kurt Russel), sobrevivente de Escape from New York, é chamado a cumprir uma missão quase similar à precedente. Este processo de retomada, de repetição, inerente a todo filme seqüência, torna-se para Caepenter uma metáfora de sua própria situação de cineasta a quem se encomenda repetir seu grande sucesso. Escape from Los Angeles retoma a estrutura de New York 1997, a da aventura picaresca, pontuada de etapas e encontros: ocasião para Carpenter de zombar dos clichês do modo de vida californiano, do culto ao corpo ao surf. Sucedem-se assim uma série de episódios irresistíveis, que conduzem Snake pelos quatro cantos da cidade: um centro cirúgico estético povoado de zumbis, uma Disneyland transformada em campo de batalha.

A América mudou, portanto e, em 2013, mostra-se mais moralista e puritana que nunca. Escape from los Angeles visa à ditadura do “politicamente correto”, a fim de imaginar os seus efeitos desastrosos sobre a sociedade americana. A personagem de Snake torna-se então mais que um herói de filme de ação; ele é o porta-voz de um discurso virulento, niilista que é o de Carpenter diretor: não se trata aqui de se conformar às regras arbitrárias que poderiam lhe ser impostas pelo projeto do filme.

O filme pode também ser visto como um anti-Independence Day, uma vez que o medo do Outro não é simbolizado por extraterrestes maléficos, mas por uma oposição flagrante entre terceiro mundo e capitalismo. A América transformou los Angeles em centro de deportação que as nações mais desmunidas utilizam para preparar a invasão do país, graças à ajuda da filha do presidente, que se juntou aos rebeldes. Em uma das mais belas seqüências do filme, os líderes da missão suicida de Plissken projetam-lhe uma gravação em três dimensões da fuga da jovem: Snake é quase um prisioneiro da imagem, assim como já aprisionado em uma ficção à qual ele está longe de desconhecer ( être le dupe).

Snake Plissken está em um “entre-deux” ( entre duas dimensões, dois mundos, no meio de), tão desgostoso da hipocrisia dos políticos conservadores quanto do oportunismo de ditadores de pacotilha. O que poderia se mostrar como uma contradição ideológica de Carpenter , ao invés disso deve ser interpretado como uma espécie de manifesto político impossível, aquele de uma sociedade ideal onde todos os indivíduos poderiam coabitar , para além das ideologias: não é por acaso que o personagem mais positivo do filme, a filha do presidente, se chama Utopia. Cineasta hawksiano ( mais pela aproximação dos temas que pelo estilo), Carpenter presta talvez homenagem aqui à poderosa mensagem de Hawks em The big sky, filme onde os indivíduos se revelam mais fortes que os modelos de sociedade de onde vieram. Em seu caminho, Plissken faz aliança com os excluídos, ladrões, vigaristas, traficantes de todos os gêneros, até um transexual especialista em guerrilha urbana. Carpenter toma deliberadamente o partido destes “perdedores”, estes losers, no fundo mais envolventes que o presidente e seus conselheiros, situados em uma base militar.
Carpenter faz prova aqui de um humor negro já presente em In the Mouth of Madness ( À beira da loucura, 1995), e opta por um estilo por instantes exuberante, em total adequação com a virulência de suas intenções. Escape nos mostra um universo caótico, quase carnavalesco, nas antípodas do bom gosto e do aspecto excessivamente “suave”( lisse) das novas tecnologias do cinema de ficção científica. Los Angeles é descrita como uma espécie de corte dos milagres, anunciadora de uma nova Idade Média , prestes a se abater sobre o planeta.
Escape aliás pode ser visto como uma versão moderna da Ópera dos três vintéms, com seu desfile variado de personagens ricos em cores, interpretados por atores magníficos ( Kurt Russel, Valeria Golino, Cliff Robertson, Stacy Keach e Steve Buscemi). Sem dúvida, uma das grandes forças do filme é nos tornar quase familiar esta visão de Apocalipse, como se este já estivesse às nossas portas; basta ver o admirável prólogo, que mostra a destruição de Los Angeles por um tremor de terra titânico. Os planos são filmados como arquivos, reforçados por uma voz-off feminina, quase neutra, que descreve o fim de um mundo. Carpenter consegue criar um sentimento de conivência entre o espectador e este imaginário pessimista, à maneira de Hyeronimus Bosch, no qual o filme faz pensar às vezes. Mas Escape é também uma espécie de western urbano, que progride com um ritmo regular, sem jamais se perder em demonstrações pesadas ou precipitadas. É neste equilíbrio constante entre o aspecto lúdico do gênero e o pessimismo da mensagem que Escape consegue se reconciliar com uma energia destrutiva à qual o cinema americano parecia ter renunciado.
Sabia-se desde alguns anos que Carpenter estava prestes a se tornar um dos metteurs-en-scène mais apaixonantes de sua geração. Sabe-se agora que ele é também um dos mais importantes. Certo, Escape from Los Angeles é talvez menos “sustentado” ( tenu) formalmente que alguns de seus últimos filmes, mas suas imagens são tão singulares e poéticas quanto: um ballet de helicópteros em plena noite, uma corrida de surf nas ruínas, uma viagem submarina nos destroços de uma cidade submersa... Os efeitos especiais, com frequência utilizados de forma exagerada nas grandes produções, servem aqui a colocar em relevo um mundo dominado pela mentira e pela ausência total de comunicação entre os seres. Nesse sentido, a cena final do filme, que repousa sobre um jogo de “faux-semblants” e de hologramas, é um modelo de inteligência e economia.
Mas com os anos Carpenter tornou-se um cineasta mais grave, mais lúcido, portanto mais insolente. Snake encontra, ao longo de seu périplo, Taslima, uma jovem aventureira que o salva das garras de um espantoso agressor. Ao curso de um curto monólogo, Taslima descreve sua existência em Los Angeles , explicando que, apesar da guerra e da violência, é-se mesmo assim livre. Sob os olhos de Snake, ela se deixa subitamente matar por uma bala perdida. Cena trágica, dirigida sem pathos, e que nos confronta com qualquer coisa de fugitivo, brutal e absurdo que é simplesmente a própria vida. Esta breve sequência é o espelho do filme, de uma invenção e simplicidade prodigiosas. Saímos de Escape com o sentimento inesperado de que o cinema pode ainda ser febril, livre e jubilatório. Pois sob seus dilúvios de explosões e ruídos, penetra paradoxalmente uma força e uma imaginação extraordinárias, aquelas de um dos maiores cineastas de sua geração.

Nicolas Saada sobre Fuga de Los Angeles
Tradução Luiz Soares Júnior.